Direitos humanos dos pacientes ainda são um conceito pouco conhecido no Brasil, mas podem contribuir para formação da cidadania em saúde.
Direitos humanos são os direitos que garantem a concretização da dignidade humana na vida social, permitindo que todos, sem exceção, desenvolvam-se plenamente.
Com a Constituição Brasileira de 1988, o acesso à saúde passou a ser direito de todos e dever do Estado. Para garanti-lo, criou-se o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, que oferece acesso integral e gratuito a serviços que vão desde consultas médicas a procedimentos mais complexos, como transplantes de órgãos.
Nunca tantas pessoas tiveram, no país, acesso tão amplo a tantos serviços de saúde. Hoje, 70% da população brasileira recebe atendimento de saúde pelo SUS. Em alguns estados, como Roraima, esse número chega a cerca de 90%.
No entanto, o Brasil ainda não trata a questão dos direitos humanos dos pacientes com a devida atenção. As leis que protegem os pacientes estão espalhadas em diversos códigos e regulações que, muitas vezes, não consideram sua vulnerabilidade. Em muitos países, para garantir esses direitos, se fez necessária a criação de uma Carta de Direitos Humanos específicos para quem está sob os cuidados de saúde. É o caso de Portugal, Malásia, México, França, Espanha, Estados Unidos, Reino Unido e Hong Kong.
Conhecemos a aplicação dos direitos humanos, ou sua necessidade, às prisões e tortura, mas tratamos muito menos da aplicação dos direitos humanos aos cuidados de saúde.
A profa. dra. Aline Albuquerque, coordenadora do Observatório de Bioética e Direitos Humanos dos Pacientes da UnB (Universidade de Brasília), escreveu o livro “Direitos humanos do paciente”, lançado em 2016, pela Editora Juruá , de Curitiba (PR). Este é o primeiro livro em português a analisar os pacientes enquanto titulares de direitos, considerando a especificidade que eles acarretam às regulações que se fazem necessárias.
No prefácio do livro da dra. Albuquerque, Paul Hunt, relator especial da ONU sobre o direito à saúde, afirma: “Conhecemos a aplicação dos direitos humanos, ou sua necessidade, às prisões e tortura, mas tratamos muito menos da aplicação dos direitos humanos aos cuidados de saúde”.
“No Brasil, as primeiras regulações acerca dos direitos dos pacientes datam dos anos 1990, contudo, nunca houve a adoção de uma carta nacional dos direitos dos pacientes com força de lei, ainda que importantes iniciativas no campo precisem ser registradas. Sob o prisma legislativo, alguns estados-membros possuem legislações relevantes sobre os direitos dos pacientes. O estado de São Paulo, no ano de 1995, passou a contar com um Código de Saúde, no qual constam previsões acerca dos direitos dos pacientes, como o direito de decidir, livremente, sobre a aceitação ou recusa da prestação da assistência à saúde, salvo nos casos de iminente perigo de vida; o direito de ser informado sobre o seu estado de saúde e as alternativas possíveis de tratamento; e o direito de ter respeitado o sigilo sobre os dados pessoais”, explica a dra. Albuquerque.
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É da constituição dessa carta que trata o Projeto de Lei 5559/16 que está em análise na Câmara dos Deputados, de autoria do deputado federal e médico Pepe Vargas (PT-RS), e que recebe o apoio das principais associações de pacientes do Brasil. O projeto de lei garante uma série de direitos humanos dos pacientes, como: 1) a presença de um acompanhante para todo paciente; 2) o estabelecimento de um agente (legal) do paciente para que a vontade do paciente prevaleça, mesmo que ele não esteja em condições de julgamento; 3) acesso aos cuidados paliativos, a fim de que a dignidade do paciente seja preservada em todas as fases do tratamento; 4) que o conteúdo do prontuário médico seja de propriedade do paciente; e 5) que o paciente esteja ciente de todos os procedimentos e tenha o poder de decidir e mudar de ideia sobre a conduta médica a qualquer momento; entre outras medidas.
A dra. Albuquerque ressalta que o Brasil avançou em disponibilizar serviços de saúde à população, mas ressalta que, muitas vezes, o aspecto humano ainda é deixado de lado durante os cuidados médicos.
“Qualquer paciente está por definição vulnerável, preocupado com sua enfermidade. Quando hospitalizado, ele fica em ambiente não familiar e é submetido, algumas vezes, a procedimentos que lhe são incompreensíveis. Há um evidente hiato de comunicação entre o paciente e o profissional da saúde. Partilhar informação com o paciente pode aumentar a cumplicidade na relação com o profissional responsável pelos seus cuidados, porém também pode gerar maior dissenso”, afirma a dra. Albuquerque.
Dr. Allex Jardim, oncologista do Hospital Geral de Roraima, dá um exemplo de como a comunicação entre médico e paciente muitas vezes é falha. Ele afirma que, ao tratar pacientes indígenas em Roraima, estado que proporcionalmente tem a maior população indígena do país, ele precisa comunicar-se por sinais, pois o hospital não conta com nenhum serviço de intérprete para as línguas faladas pelos indígenas da região. Assim, os pacientes são submetidos a tratamentos invasivos e complexos que não conseguem compreender porque não há comunicação direta, em sua própria língua. Isso fere vários direitos, como à informação, a não sofrer discriminação, à saúde e à vida .
Mesmo contando com a assistência de um convênio médico (realidade que atinge apenas 30% da população brasileira), Karina Carelli enfrentou dificuldades durante o tratamento do marido Bruno Tomé, que faleceu aos 38 anos vítima de um câncer colorretal.
O casal morava em Sorocaba, no interior de São Paulo, onde foram realizados os primeiros tratamentos e os atendimentos de emergência. Durante o tempo em que o marido ficou hospitalizado, Karina teve bastante dificuldade em conseguir acompanhá-lo. “Cheguei a ‘bater boca’ com os profissionais de saúde para conseguir ficar ao lado dele”, conta.
Segundo Albuquerque, na maioria dos serviços de saúde falta atendimento qualificado ao paciente, composto por um grupo de profissionais, como assistentes sociais, que possa fazer valer os direitos dos pacientes e seus familiares.
Karina precisou da ajuda do Instituto Oncoguia, uma das associações não governamentais que advogam a favor dos direitos dos pacientes, para resolver questões burocráticas relacionadas à doença do marido. A existência dessas organizações garantiu diversos avanços em todo o mundo com relação ao envolvimento da sociedade com questões de saúde.