“Às cotoveladas, a literatura abriu espaço em minha agenda. Escrever só me traz alegria.” Veja artigo do dr. Drauzio sobre o ato de escrever.
Passei dois anos escrevendo o livro que acabo de terminar. A tarefa não foi realizada em tempo integral, mas nos momentos livres que ainda me restam.
Há escritores que precisam de silêncio, solidão e ambiente adequado para a prática do ofício. Se fosse esperar por essas condições, teria demorado 20 anos para publicá-lo, tempo de vida de que não disponho, infelizmente.
Por força da necessidade, aprendi a escrever em qualquer lugar em que haja espaço para sentar com o computador. Por exemplo, nas salas de embarque durante as viagens de bate e volta que sou obrigado a fazer. Consigo me concentrar apesar das vozes esganiçadas que anunciam os voos, os atrasos, as trocas de portões, a ordem nas filas, os nomes dos retardatários. Os avisos vêm aos berros, como se fossem destinados a uma horda de deficientes auditivos; mal termina um, começa outro. Suspeito de uma conspiração das companhias aéreas contra a integridade dos tímpanos dos passageiros.
Embora com dificuldade, sou capaz de escrever no meio daqueles idiotas que xingam as secretárias pelo celular, alguns dos quais o fazem andando nervosamente de um lado para outro, com a intenção declarada de atazanar o maior número possível de circunstantes. São executivos de terno que empregam adjetivos fortes: incompetente, burra, ignorante. Escutei um deles dizer: “Contratei você para cumprir ordens, se fosse para pensar escolhia outra pessoa”. Nunca os ouvi chegar perto desse tom ao falar com o chefe, ocasiões identificáveis pela voz melosa e submissa.
Mal o avião levanta voo, puxo a mesinha e abro o computador. Estou nas nuvens, às portas do paraíso celestial. O telefone não vai tocar, ninguém me cobrará o texto que prometi, a presença na palestra para a qual fui convidado, os e-mails atrasados; nenhum ser humano me pedirá para apoiar um projeto e não descobrirei que me incluíram num grupo de Whatsapp em que os trezentos participantes dão bom dia uns aos outros.
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Já escrevi por 13 horas consecutivas num voo de volta da Ásia. Num retorno de Salvador, escrevi uma coluna como esta, sentado na primeira fila, ao lado de um bebê com dor de ouvido que chorou sem dar um minuto de trégua. Só ficou quietinho, quando o comandante anunciou que o pouso em Guarulhos fora autorizado.
Minha carreira de escritor começou com “Estação Carandiru”, publicado quando eu tinha 56 anos. Foi tão grande o prazer de contar aquelas histórias, que senti ódio de mim mesmo por ter vivido meio século sem escrever livros.
A dificuldade vinha da timidez e da autocrítica. Para mim, o que eu escrevesse seria fatalmente comparado com Machado de Assis, Gogol, Faulkner, Joyce, Pushkin, Turgenev, Dante Alighieri. Depois do que disseram esses e outros gênios, que livro valeria a pena ser escrito?
A resposta encontrei em “On Writing”, que reúne entrevistas e textos de Ernest Hemingway sobre o ato de escrever. Em conversa com um estudante, Hemingway diz que ao escritor de nossos tempos cabem duas alternativas: escrever melhor do que os grandes mestres já falecidos, ou contar histórias que nunca foram contadas.
De fato, se eu escrevesse melhor do que Machado de Assis, poderia recriar personagens como Dom Casmurro ou descrever com mais poesia o olhar de ressaca de Capitu.
Restava, então, a segunda alternativa: a vida numa cadeia com mais de 7 mil presidiários, na cidade de São Paulo, nas últimas décadas do século 20, não poderia ser descrita por Tchekhov, Homero ou pelo padre Antonio Vieira. O médico que atendia pacientes no Carandiru havia dez anos, era quem reunia as condições para fazê-lo.
Seguindo o mesmo critério, publiquei outros livros. Às cotoveladas, a literatura abriu espaço em minha agenda. Há escritores talentosos que se queixam dos tormentos e da angústia inerentes ao processo de criação. Não é o meu caso, escrever só me traz alegria.
Diante da tela do computador, fico atrás das palavras, encontro algumas, apago outras, corrijo, leio e releio até sentir que o texto está pronto. Às vezes, ficou melhor do que eu imaginava. Nesse momento, sou invadido por uma sensação de felicidade plena que vai e volta por vários dias.