Após a maratona de Boston de 2015, dr. Drauzio teve que ser operado e ficou longe das corridas por três meses.
2016 foi um ano difícil. Não digo apenas pelo caos político e a pior crise econômica de todos os tempos, mas por mim.
Corro maratonas há 23 anos. Acordar mal-humorado às cinco da manhã, vestir o calção e calçar os tênis, resignado, é parte de minha rotina como examinar doentes ou tomar banho.
Não o faço por apego à ideia de que assim viverei mais tempo; nem mesmo sei se percorrer distâncias tão longas é saudável. Nas provas, lá pelos 35 km, a expressão facial de meus companheiros de infortúnio é miserável, chego a duvidar de que tamanho esforço seja bom para o corpo humano.
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Nesses momentos, procuro me excluir dessa massa de mulheres e homens destruídos pelo cansaço da prova, acho que não estou mal como eles e que resistirei à vontade de chorar de dor nas pernas. Fico em dúvida, no entanto, quando percebo neles uma expressão de pesar ao olharem para mim. Pior ainda quando, ao ultrapassarem, me perguntam: “O senhor está bem?” Senhor é a senhora sua mãe, tenho ímpetos de responder.
Quando completei 70 anos, enfrentei uma crise nada existencial: quantas maratonas ainda serei capaz de completar?
Decidi, então, correr três a quatro por ano, resolução que me obrigou a manter a rotina de treinamentos intensivos que tortura todo corredor forçado a sair da cama antes do dia clarear.
Quando você, leitor, ouvir alguém que se gaba de acordar louco para fazer exercícios, não fique complexado: é mentira. Como eu sei? Se existisse tal disposição eu a teria sentido pelo menos uma vez, nos últimos 23 anos. Para mim, levantar da cama e começar a correr sempre foi sacrifício; todas as vezes, sem uma exceção sequer.
Além de rebaixar os níveis de felicidade, a inatividade veio acompanhada de um certo pessimismo diante dos problemas pessoais e dos desafios que a vida no país impõe, neste momento.
A disciplina com os treinamentos deu resultado. Em 2013, fui o primeiro colocado na faixa acima de 65 anos na maratona do Rio e na de Buenos Aires, com tempos que me classificaram para a maratona de Boston de 2014.
São seis as maratonas mais importantes do mundo: Nova York, Chicago, Londres, Berlim, Tóquio e Boston. Dessas seis “major marathons”, Boston é a mais elitista, a única que exige o pré-requisito de haver corrido uma maratona internacional, nos últimos doze meses, num tempo mínimo que varia com a faixa etária.
Nas rodas de maratonistas – mulheres e homens que falam de corridas o tempo inteiro –, contar que já participou de Boston provoca interjeições de admiração. É o sonho de todos.
Corri a de 2014 sob a vigilância de um policial armado a cada cem metros e dos helicópteros em voos rasantes, mobilizados por causa do ataque terrorista do ano anterior. Em 2015, no auge do preparo físico, fui selecionado outra vez.
Na metade da prova, senti um choque na planta do pé esquerdo, sintoma que aparecia de vez em quando nos treinos mais longos. Cem metros à frente, novo choque, seguido de outros, cada vez mais frequentes e intensos, que anestesiaram o terceiro e o quarto dedo. A partir do trigésimo quilômetro foi um martírio, era como se milhares de formigas alvoroçadas me ferroassem a planta e os dedos do pé.
O bom senso aconselharia a abandonar a prova, mas sensatez não é o forte das pessoas que correm 42 km. Quando cruzei a linha de chegada, meu pé esquerdo parecia pertencer a outra pessoa.
Paguei caro a teimosia, estava com um tipo de fibrose num dos nervos do pé, que me deixou dez meses quase sem correr. Depois de várias palmilhas e outras tentativas infrutíferas, acabei operado em julho deste ano.
Três meses mais tarde, fui voltando devagar. A inatividade trouxe 2 quilos a mais, roubou parte do meu fôlego, da resistência, da disposição para o trabalho e do bom humor, estragos reparados assim que comecei a correr.
Estou longe da melhor forma física, mas a diferença em relação ao período inativo é abissal. Não me refiro somente à sensação de bem-estar que os músculos cansados proporcionam, mas ao impacto psicológico. Além de rebaixar os níveis de felicidade, a inatividade veio acompanhada de um certo pessimismo diante dos problemas pessoais e dos desafios que a vida no país impõe, neste momento.
O objetivo da última coluna deste ano, caríssimo leitor, é convencê-lo de que passar os dias sentado é muito ruim. Não é que o exercício faça bem, a vida sedentária é que faz mal ao corpo e ao espírito.