Uma cultura do machismo, que não ensina homens a respeitar as mulheres e a identificar o que é ou não estupro, traz consequências seríssimas para a segurança feminina.
De modo geral, ao avaliar um crime, a sociedade condena incondicionalmente o agressor. Mas quando procura compreender o motivo pelo qual um estupro ocorreu, a responsabilidade é dividida: a vítima deve ter dado motivo, usando roupas “inapropriadas” e andando desacompanhada pelas ruas à noite. Dessa forma, protege-se o agressor, corroboram-se ideias machistas e preconceituosas e legitima-se uma punição extra-oficial àquelas que ousam dizer não a um homem.
Tal raciocínio é decorrência da educação misógina que muitos receberam e à qual se ataram por toda a vida. Uma educação que coloca a intimidade sexual feminina sob os desígnios dos prazeres masculinos. Como reflexo, desenvolve-se uma sociedade que não sabe identificar o que é, de fato, uma violação. Muitos não fazem ideia de que sexo sem consentimento ou forçado fazem parte da definição de violência sexual, segundo a Lei 12.015. “Quando a palavra estupro é substituída por alguma dessas definições, boa parte passa a não ver o ato como um problema”, afirma a professora e escritora Lola Aronovich, que desde 2008 está à frente do blog feminista mais acessado do Brasil, o “Escreva Lola Escreva”.
“Parte dos homens aprendeu que não se deve levar a sério o ‘não’ de uma mulher e que quando elas dizem isso só estão fazendo ‘charminho’, tentando se valorizar de acordo com os conceitos sociais. Se sentem obrigados a saírem daquela situação com um ‘sim’, nem que para isso seja preciso obrigar. Em vários casos, o estuprador nem acha que estuprou, e a própria vítima leva tempo para se convencer de que sofreu um estupro. E mais tempo ainda para perceber que não teve culpa”, diz Aronovich.
Para Jefferson Drezett, há mais de 23 anos diretor e ginecologista do Ambulatório de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington, centro de referência da saúde da mulher em São Paulo, os homens cresceram sendo educados a entender que a companheira tem função de suprir os desejos sexuais do homem mesmo quando não está a fim. “E isso não é só no Brasil. Numa pesquisa feita na África do Sul com 1.400 jovens de várias etnias e idades, 20% dos homens confessaram que já haviam imposto uma relação sexual com as namoradas. Desses, 5% admitiram que usaram força física no ato sexual. Mas as revelações só surgiram quando o termo estupro foi substituído por palavras brandas, como sexo sem consentimento ou forçado”.
Mulheres denunciam cada vez mais
É claro que uma cultura que não ensina seus homens a respeitar as mulheres e a identificar o que é ou não estupro traz consequências seríssimas para a liberdade e segurança femininas: 50.617 brasileiras foram estupradas em 2012, de acordo com os dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A taxa de estupros ultrapassou a de homicídios e alcançou 26,1 ocorrências por 100 mil habitantes. Em São Paulo, o índice subiu 23%; no Rio, 24%.
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Os dados são preocupantes, mas uma das leituras possíveis é otimista: as mulheres passaram a denunciar mais. Ao contrário dos homicídios, em que faz parte do processo natural do caso a polícia registrar o óbito, um estupro só se torna “caso” quando a vítima denuncia. Para a delegada Gislaine Doraide, do Serviço Técnico de Apoio às Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, o aumento no número de registros é decorrência do maior esclarecimento da população através de campanhas, palestras em escolas, centros comunitários e divulgação do Disque 180. “Tem-se observado a preocupação e o empenho de vários órgãos governamentais das três esferas de Poder, e ainda de vários setores não governamentais com o mesmo propósito de enfrentamento, enfatizando-se a necessidade de orientação e a importância da comunicação de crimes de tal natureza aos órgãos policiais. A polícia por si só não poderá ser responsável pela erradicação do crime em questão. É necessário o esforço conjunto, ampliando-se as campanhas de esclarecimento”.
Mesmo com o maior índice de denúncias, ainda há muitas que não delatam seus agressores. “Elas relutam em procurar ajuda, geralmente por sentirem medo, vergonha. Muitas passam anos sendo vítimas de abusos sexuais até tomarem coragem para denunciar. Quanto mais rápida a comunicação à polícia, mais rápido será o esclarecimento do delito”, afirma Doraide. Para Aronovich, outro motivo do silêncio é a desconfiança de que a acusação possa não dar em nada. “Sem contar o medo de sofrer alguma punição quando o agressor é conhecido. Nesses casos, aí é que não se tem nenhuma compaixão pela mulher”.
O agressor está logo ali
Pelos cuidados do Dr. Drezett e de sua equipe passam anualmente 2.500 mulheres violentadas. O mais surpreendente: 60% das vítimas conhecem seus agressores, que em geral são os próprios companheiros. Fora do Hospital Pérola Byington, as estatísticas também mostram que grande parte dos casos de violência sexual é perpetrada por conhecidos das vítimas. A pesquisa Violência sexual contra a mulher e impacto sobre a saúde sexual e reprodutiva, conduzida por Drezett, aponta que a maioria dos crimes contra mulheres adultas é cometida pelos vizinhos das vítimas (27,9% dos casos), seguidos de outros conhecidos (26,5%), ex-parceiros (14,8%), parceiro atual (10,4%) e pai biológico (8,9%).
Lola Aronovich também reconhece o fato. “Entre os relatos que recebo, a enorme maioria é de estupro cometido por algum conhecido da vítima. Muitas vezes são mulheres que beberam numa festa e acordaram sendo estupradas, abusos sexuais dentro da família ou no trabalho”.
Outro dado importante mostra que os estupros geralmente acontecem em locais que fazem parte do dia a dia da vítima. Em 40% dos casos o ato acontece no percurso do trabalho, em 31% o crime se dá próximo à residência da vítima, em 13,3% dentro da casa dela e em 12,1% em locais de lazer (festas ou casas noturnas).
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou o número de estupros separados por distritos policiais da capital. Muitos registraram mais de 20, alguns chegaram a registrar mais de 50 e o de Jardim Herculano contabilizou 62 ocorrências desse tipo só até setembro de 2013 (veja a lista abaixo para saber o número exato em cada bairro).
O estupro é uma das consequências mais nefastos do machismo e mesmo assim ainda não é tratado com a dimensão que deveria. “Embora seja uma epidemia que, seja na realidade ou no plano da ameaça, afeta diretamente a vida de praticamente todas as mulheres, os homens não querem refletir sobre o assunto. Infelizmente, ainda vai levar muito tempo antes que mudanças culturais realmente aconteçam. Acredito que durante a nossa vida não veremos o fim da opressão contra as mulheres”, afirma Aronovich.