Apesar do aumento no número de médicos, concentração nas grandes cidades ainda é um desafio.
A edição de 2025 do estudo Demografia Médica no Brasil foi lançada recentemente, trazendo reflexões importantes sobre os desafios da prática médica e o funcionamento do sistema de saúde no país. O levantamento atualiza informações sobre a formação, especialização, distribuição e atuação dos profissionais da medicina em território nacional.
Realizado há 15 anos pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), o estudo conta, pela primeira vez, com o apoio do Ministério da Saúde. Além de dados sobre o cenário nacional e internacional, o material traz projeções para os próximos anos, com o objetivo de orientar políticas públicas.
“O propósito da Demografia Médica é fornecer uma base de dados sólida para o debate sobre os vários desafios que a medicina e o sistema de saúde enfrentam. Nosso objetivo é gerar e divulgar informações que possam apoiar a criação e implementação de políticas públicas direcionadas ao fortalecimento do SUS (Sistema Único de Saúde)”, conta Mário Scheffer, coordenador do estudo e professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
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Número de médicos cresce, mas distribuição segue desigual
O levantamento mostrou que o número de faculdades de medicina aumentou de 252 para 448 nos últimos dez anos, com a criação de mais de 2.500 novas vagas anuais. No entanto, a distribuição de médicos especialistas continua concentrada na região Sudeste.
Atualmente, 58% dos médicos atuam em cidades com mais de 500 mil habitantes, que concentram apenas 31% da população. Já os municípios com menos de 50 mil moradores — onde vivem 31% dos brasileiros — contam com apenas 8% dos médicos do país.
Além disso, apesar do crescimento dos cursos de medicina, a qualidade da formação é uma preocupação, principalmente com a expansão de cursos a distância, que representam 41,2% da oferta de especialização médica no Brasil.
Segundo o estudo, o Brasil deve alcançar 635.706 médicos até o final de 2025, o que equivale a 2,98 médicos por mil habitantes. A previsão é que o número ultrapasse 1,15 milhão até 2035, chegando a uma média de 5,2 médicos por mil habitantes.
Principais dados do estudo
- Estados com maior proporção de médicos especialistas: Distrito Federal (72,2%) e Rio Grande do Sul (67,9%);
- Estados com menor proporção de médicos especialistas: Rondônia (46,5%) e Piauí (45,1%);
- Média de médicos por mil habitantes: Norte (1,7) e Sudeste (3,77);
- Número de médicos especialistas em dezembro de 2024: 353.287 (59,1% do total de profissionais registrados no país);
- Generalistas (sem título de especialista): 40,9% dos profissionais;
- Participação feminina na medicina: 50,9% dos profissionais em atividade; previsão de 56% até 2035. Esses números são inéditos na história;
- Mulheres na graduação: 61,8% dos estudantes, mas elas predominam em apenas 20% das especialidades médicas
“Além da desigualdade na distribuição geográfica, também há a concentração de médicos na rede privada, em vez de atuarem no SUS. Outro desafio é a diminuição de vínculos formais de trabalho, como os empregos com carteira assinada ou como servidores públicos. A maioria dos profissionais precisa se dividir entre vários locais de atuação”, destaca Scheffer.
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Desigualdade na residência médica amplia desequilíbrios regionais
O levantamento sobre a Residência Médica revelou que atualmente o Brasil conta com 48 mil residentes, e a taxa de ociosidade de vagas diminuiu para 19,2%, comparada a 31,8% em 2021.
Segundo os dados, o local onde o médico conclui a residência é um dos principais fatores para sua permanência na região. Como a formação especializada está concentrada em grandes centros urbanos, muitos profissionais formados no interior migram para essas áreas e não retornam, o que agrava a desigualdade na distribuição.
“Apesar do aumento no número de médicos no Brasil, a desigualdade na distribuição territorial continua sendo um dos maiores desafios estruturais. A falta de médicos em algumas regiões impacta diretamente a universalidade e a equidade do SUS. É urgente que se supere a lógica puramente quantitativa de formação e se adote uma abordagem que priorize qualidade, equidade e a sustentabilidade do sistema de saúde”, afirma Ugo Caramori, médico de família e comunidade, diretor do Departamento de Graduação Stricto Sensu da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), mestre e doutorando em Ensino em Saúde pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ele defende a construção de uma trajetória educacional integrada, que conecte a graduação em medicina à formação especializada, levando em conta as demandas do SUS. “Muitos programas de residência não atendem às reais necessidades do SUS, formando médicos que não atuarão nas áreas mais carentes, o que perpetua as desigualdades. Uma política eficaz deve alinhar a formação médica com as necessidades sociais, valorizar a atenção primária e coordenar a formação com o trabalho.”
Cirurgias: desigualdade entre SUS e rede privada
O estudo também destacou que pessoas com plano de saúde realizam, em média, mais cirurgias do que aquelas atendidas exclusivamente pelo SUS. Foram analisadas três das cirurgias mais comuns no país: apendicectomia (remoção do apêndice), colecistectomia (retirada da vesícula biliar) e correção de hérnias da parede abdominal.
Confira os dados:
- A taxa de apendicectomias realizadas na rede privada é 34,4% maior do que no SUS;
- Já no caso das colecistectomias, o setor privado apresentou uma taxa 58,7% maior que a do SUS: 312,38 contra 196,81 cirurgias por 100 mil habitantes. Ainda assim, o SUS foi responsável por 66% das intervenções;
- A disparidade é ainda mais acentuada nas cirurgias de hérnias, com a rede privada realizando 86,6% mais procedimentos que o SUS.
O estudo também mostrou que 72,4% dos cirurgiões atuam em ambos os setores (público e privado), 19,9% exclusivamente no setor privado e apenas 7,7% atuam somente no SUS.
Esses dados evidenciam que a disparidade na oferta e no acesso a procedimentos cirúrgicos permanece como um desafio importante para a equidade na saúde pública brasileira.
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