Muitos jovens têm acesso à pornografia desde pequenos. Saiba quais são as consequências desse consumo e veja como orientá-los sobre o assunto.
João Ferreira, hoje com 27 anos, teve o seu primeiro contato com a pornografia aos 11. Foi no computador do laboratório de informática da escola, por indicação de um amigo, que ele acessou pela primeira vez um site pornô. João, que ainda gostava de brincadeiras de criança — pega-pega, queimada, mãe-da-rua —, ficou perdido com tanta informação.
A sua história se assemelha a da maioria da população: estima-se que 11 anos seja justamente a idade média em que acontece a primeira exposição à pornografia. Antes, com mais dificuldade: através de revistas, filmes e programas na madrugada. Hoje, com oferta ampla e acessível: através de sites, vídeos e redes sociais.
A indústria pornográfica é responsável por 12% de todo o conteúdo na internet, e o Brasil é um dos principais produtores de vídeos de pornografia no mundo. O contato das crianças e adolescentes com esse tipo de material é, praticamente, inevitável. Mas as suas consequências podem ser evitadas.
Os primeiros cliques
“Onde não existe um diálogo ou acesso à informação sobre sexo, a tendência é que as crianças tenham contato com o assunto de uma maneira muito distorcida e pouco confiável”, ressalta Breno Rosostolato, psicólogo e pesquisador sobre sexualidade humana.
Para o especialista, esse é o ponto de partida: dos 3 aos 18 anos, é preciso falar sobre sexo de forma ampla, clara, objetiva e direta, sempre adaptando a linguagem para cada faixa etária de forma que a criança ou o adolescente entenda o que está sendo dito.
Crianças e pornografia
Entre 3 e 12 anos, é inerente que as crianças ainda estejam em um processo de autoconhecimento — cognitivo, social, emocional e também sexual. Nessa idade, elas não procuram a pornografia, mas tentam buscar ao seu redor informações que expliquem o próprio corpo.
“Quando a criança está tomando banho com um adulto, por exemplo, ela está olhando para o corpo dele também como uma forma de se reconhecer. Essa é uma faixa etária em que as crianças se desenvolvem através do espelhamento, ou seja, olhando para o outro. É por isso que os pais, os cuidadores e até as outras crianças são um referencial”, explica o psicólogo.
Essa busca por informações já é o início de uma construção sobre a própria sexualidade. Ao longo desse processo, pode ser que a criança se depare com a pornografia — não necessariamente um site pornô, mas uma foto contendo nudez ou um vídeo mais explícito.
“É bem provável que ela não entenda o que acabou de ver. Mas é importante não recriminar, criticar ou gritar. Até porque, se o impacto for negativo, a criança pode reprimir aquilo dentro dela e ficar constrangida futuramente de perguntar sobre sexo para o pai, a mãe ou quem quer que seja. Então, é preciso conversar. O que ela viu? O que ela sentiu com aquela imagem? Como ela acessou?”, recomenda Breno.
Adolescentes e pornografia
Com João, que já estava entrando na adolescência, o episódio no laboratório da escola despertou muita curiosidade.
“Eu nunca tinha visto, nunca tinha tido contato com isso e muito menos sabia que existia um site em que eu podia ver tudo lá. Às vezes, a gente passava em uma banquinha de jornal, em uma feira, e eu via alguns DVDs com uma mulher com o peito ou a bunda aparecendo. Eu achei que era só daquela forma para ver, que só adulto podia comprar. Quando eu vi que tinha um site que eu podia entrar e que o meu amigo da escola me ensinou, aí foi curiosidade. Bastante curiosidade de moleque”, relata.
A partir da adolescência, o interesse pela pornografia muda de figura. Dos 12 aos 18 anos, o jovem está entrando na vida adulta e dá início a uma fase em que quer conhecer novas pessoas, estabelecer novas conexões e transitar entre grupos que vão além do familiar. É aí, então, que começa a perceber os próprios desejos, vontades e práticas sexuais.
“Se a criança estava buscando informações para construir o próprio corpo e a sexualidade através do outro, o adolescente agora quer a prática. Ele se toca, se percebe e busca esse prazer no envolvimento com o outro”, diferencia Breno.
Nesse momento, é preciso que o diálogo seja ainda mais aberto. Isso porque a sociedade entende o sexo como algo natural: a partir do momento em que o adolescente começa a se envolver com alguém, a vida sexual já é esperada. E, se não há fontes confiáveis para buscar informações sobre essa nova etapa, muitos deles vão recorrer à pornografia.
Os impactos da pornografia
Em 2004, um estudo com estudantes universitários brasileiros mostrou que, entre os homens que consumiam pornografia com frequência, 56% buscavam informações reais sobre sexualidade, 50% queriam ter mais fantasias sexuais e 37% procuravam aprender novas posições e técnicas. O problema é que, na maior parte dos conteúdos pornográficos, a representação do sexo não tem nada a ver com a realidade.
“Na pornografia, aquilo é irreal. Tem jogo de câmeras, são atores, não tem afeto, não tem história, não tem a parte do envolvimento e das relações humanas. Pelo contrário: em alguns contextos, é muito violento e foge dos cuidados que nós temos que ter com o outro”, alerta Breno.
Em 2010, uma análise de diversos conteúdos dos vídeos pornográficos mais vendidos e rentáveis dos Estados Unidos, mostrou que havia agressões físicas em 88% das cenas, sendo 94% delas direcionadas às mulheres. Mesmo quando havia resistência feminina, ela se apresentava de forma simbólica, em que a personagem diz “não”, mas comporta-se como se ainda quisesse.
“Perceba como é perigoso você acessar a pornografia sem o cuidado da conversa, do diálogo e da orientação. Isso cria uma imagem distorcida sobre sexo e relacionamentos. Como se as relações fossem impessoais, distantes e pouco afetuosas. O adolescente pode naturalizar aquilo como sendo real, inclusive, entendendo que a violência, a agressão e a ofensa fazem parte do envolvimento sexual. Mas mesmo que sejam relações casuais, você precisa se responsabilizar pelo outro”, acrescenta o pesquisador.
Além de empobrecer as relações de afeto, o início cada vez mais precoce do consumo de pornografia pode ainda resultar em problemas de saúde, como disfunções sexuais e dificuldade em sentir estímulos durante o sexo na vida real.
No início das suas experiências, João passou na pele por uma situação negativa que ele associou à pornografia:
“Quando eu tinha 19, 20 anos, eu estava acostumado a assistir pornografia. Quando eu fui ter uma relação real, foi muito ruim para ela. Performance zero. A partir daquele dia, eu falei: ‘isso não pode acontecer’. Não tem comparação você ter uma relação sexual onde você está 100% pensando naquela pessoa, no corpo dela, na foto que ela te mandou, do que você ficar na expectativa daquela pessoa vendo outros corpos, outras coisas, que não são o que vai acontecer quando chegar lá com quem você quer. É ruim”, comenta.
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Meninos também são vítimas da pornografia
Atualmente, João só consome pornografia quando fica muito tempo sem se relacionar com alguém. Para ele, trocar um vídeo, uma foto e construir intimidade com as pessoas por quem se interessa é muito mais prazeroso do que acessar um site pornô. No entanto, até chegar a essa conclusão, ele levou algum tempo. E isso talvez tenha a ver com a forma como a pornografia é ofertada para a população masculina.
Uma pesquisa de 2023 feita pela revista britânica “GQ” com 600 pessoas revelou que 61% dos homens entrevistados consumiam pornografia regularmente, em comparação com apenas 22% das mulheres. Os conteúdos pornográficos eram, em sua maioria, marcados pela exploração do corpo feminino e o enaltecimento do masculino.
Para as meninas, as consequências já são conhecidas: além de serem representadas por atrizes com corpos irreais, ainda se vêem constantemente na posição de submissão e não se identificam com a rapidez com que aquelas personagens atingem o prazer. Para os meninos, os maiores consumidores da pornografia, as consequências também são negativas, ainda que mais sutis.
“Socialmente, espera-se do rapaz que ele seja performático, tenha prontidão sexual, sempre tenha ereções, não deixe passar a oportunidade de estar com uma mulher e nunca negue uma transa. Essas exigências vão fazendo com que ele, por mais que não se dê conta, se obrigue a se enquadrar nesse padrão”, afirma Breno.
Segundo o psicólogo, os meninos buscam mais a pornografia, porque eles são ensinados a concentrarem no sexo a própria afirmação de suas existências. É a maneira deles se posicionarem no mundo, de forma totalmente distorcida, porque, muitas vezes, não têm outros referenciais.
É por isso que, desde pequenos, os meninos já assumem linguagens e posturas diferentes das meninas. Muitas vezes, fazem comentários inapropriados sobre sexo e repetem ofensas sexuais, mesmo sem saber o que aquilo quer dizer — é um padrão, eles estão tentando se encaixar.
“Mas se o indivíduo se afirma enquanto homem apenas pelo sexo, a tendência é ele se frustrar muito. Porque o dia que ele tiver uma dificuldade sexual, não tiver uma ereção ou não tiver uma performance que julgue ser adequada, como é que fica?”, questiona o psicólogo.
Como conversar sobre a pornografia com crianças e adolescentes?
Hoje, João já tem consciência dos prejuízos que a pornografia pode causar em suas relações e evita consumi-la, mas gostaria de ter tido esse despertar mais cedo. Segundo ele, a escola poderia ter sido um canal mais eficaz de orientação sexual.
O pesquisador Breno concorda e enfatiza a necessidade de uma cadeia de educação em sexualidade, tanto por parte da comunidade escolar quanto dos responsáveis por essas crianças e adolescentes.
Na hora de falar com as crianças pequenas sobre o assunto, o psicólogo dá as seguintes dicas:
- Informe-se primeiro: mesmo que os pais ou cuidadores não tenham recebido uma educação em sexualidade, conversar com os filhos sobre sexo é necessário. Aquilo que não se sabe deve ser consultado através de especialistas ou fontes confiáveis;
- Fique atento aos conteúdos que a criança consome: nessa faixa etária, é importante monitorar o que está sendo acessado pelos filhos, bem como limitar o tempo de tela para que o uso do celular ou computador não comprometa o seu desenvolvimento social;
- Não recrimine: ao se deparar com o filho ou filha consumindo conteúdo pornográfico, a primeira reação de muitos pais é proibir e não falar mais sobre o assunto. No entanto, isso só vai afastar a criança de um diálogo franco;
- Pergunte como a criança se sentiu com o que acabou de ver: depois de saber quais foram os sentimentos da criança sobre aquele conteúdo, você pode explicar que a pornografia não é real, que as pessoas que estavam naquela cena possivelmente não se conhecem, que na vida real é muito diferente e que todo envolvimento deve conter respeito e afeto;
- Aproveite para orientar sobre temas sensíveis: desde a infância, é importante colocar para a criança a ideia de abuso, ressaltando que não se pode sair por aí tocando o corpo do outro e vice-versa. Diga que as pessoas podem tocar na cabeça, nos ombros, mas jamais nos seios ou nos genitais. Existem diferentes maneiras de abordar esse assunto levando em consideração a faixa etária de cada criança;
- Se perceber comportamentos inadequados, acolha: ao notar que a criança está tendo atitudes inapropriadas, reforce a importância do respeito. Sente-se ao seu lado e pergunte por que ela está dizendo ou fazendo aquilo, quais são os seus sentimentos sobre aquela situação e tente descobrir de onde vem aquele comportamento.
Já no caso dos adolescentes, a abordagem precisa ser um pouco diferente:
- Não proíba, mas sempre questione: nessa idade, é praticamente impossível ter um controle parental completo sobre o que está sendo acessado, até porque o adolescente está transitando entre vários grupos e poderá buscar informações em outros locais, inclusive fora da internet. Por isso, o diálogo é sempre a principal ferramenta.
- Provoque a reflexão: fale abertamente e pergunte qual é o entendimento dele sobre o assunto. O que ele entende por sexo? O que ele acha da pornografia? Como ele se comporta nas relações com outras pessoas? Tente entender quais são suas referências e como ele se percebe nesse sentido.
“Os pais têm que assumir esse protagonismo. Isso dá trabalho? Dá. Mas é a responsabilidade de quem cuida. Porque essas crianças e adolescentes estão em pleno desenvolvimento. Eles não sabem nada sobre aquilo, não conhecem o que estão acessando. Eles estão, às vezes, em ambientes que podem ser até perigosos, inclusive no sentido de conhecer pessoas com outras intenções. Então, é responsabilidade, zelo e cuidado que nós, adultos, temos que ter com essas crianças”, destaca Breno.
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