A hebiatria no Brasil surgiu com certo atraso e, infelizmente, foi afetada pelo crime de um profissional da área. Leia mais no artigo do dr. Drauzio.
Em 1900, meu avô veio sozinho da Espanha. Tinha 12 anos quando desembarcou no porto de Santos atrás de trabalho para sustentar a mãe viúva e os irmãos pequenos, numa aldeia da Galícia. Naquele tempo, as crianças saltavam da infância para a vida adulta num piscar de olhos; não existia adolescência.
Talvez a explicação para passagem tão brusca fosse a modesta expectativa de vida do início do século passado, que mal chegava aos 40 anos, mesmo nos países mais desenvolvidos da Europa.
Com a urbanização, as vacinações em massa, os antibióticos e a melhora das condições de saneamento básico e de higiene pessoal, essa expectativa ultrapassou os 70 anos de idade em muitos lugares do mundo. O aumento da longevidade motivou a Organização Mundial da Saúde a caracterizar o período de adolescência como aquele que vai dos 10 aos 20 anos. Diversos psiquiatras e psicólogos, no entanto, entendem que essa fase deveria ser prolongada até os 25 anos.
O interesse da classificação está longe de ser acadêmico: em nenhuma outra fase da vida o corpo humano experimenta modificações tão súbitas e radicais. Sob influência da concentração crescente de hormônios sexuais na circulação, em poucos meses o corpo dos meninos se enche de pelos, os órgãos genitais crescem, a tonalidade da voz muda e acontece a surpresa da ejaculação. Por razões semelhantes, a menina assiste ao crescimento dos seios, ao nascimento dos pelos pubianos e à primeira menstruação, cada vez mais precoce – nossas avós e bisavós menstruavam pela primeira vez aos 17 anos, hoje as meninas o fazem aos 11 ou 12 e, às vezes, menos.
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Essas alterações fisiológicas, provocadas pela presença onipotente dos hormônios sexuais, são apenas a parte mais visível do iceberg: todos os tecidos do corpo são transformados pela ação hormonal, especialmente o cérebro. Receptores localizados em neurônios de determinadas regiões cerebrais capazes de se ligar às moléculas de testosterona, estrógeno ou progesterona vão servir de base para moldar a circuitaria neuronal responsável por muitas características da personalidade do futuro adulto.
O despreparo dos médicos de adultos para tratar dos problemas referentes à adolescência ampliou a faixa de atuação dos pediatras. Não é raro ver moças e rapazes de quase 20 anos consultando-se com o pediatra que deles cuidou desde o nascimento.
Com a explosão do conhecimento científico ocorrida nos últimos 50 anos, entretanto, ficou clara a necessidade de profissionais que se dedicassem especificamente aos problemas da adolescência. Como consequência, surgiu um movimento médico internacional para que as faculdades formassem profissionais treinados para atender adolescentes: os hebiatras, como eles mesmos se denominaram em homenagem a Hebe, a deusa da juventude.
Deixada de lado a denominação derivada da deusa grega, com a qual muitos implicam, esse tipo de profissional veio preencher uma lacuna importante. Médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e assistentes sociais especializados em assuntos como o uso de drogas ilícitas, doenças sexualmente transmissíveis, prevenção à gravidez precoce, orientação vocacional, práticas esportivas, comportamento antissocial e que conheçam as patologias médicas mais frequentes da faixa etária correspondente à adolescência são absolutamente necessários para o exercício da medicina moderna.
No Brasil, com certo atraso, nos últimos 20 anos começaram a aparecer os primeiros técnicos nessa área. Infelizmente, quando a especialidade ensaiava os primeiros passos para se impor entre nós, aconteceu uma tragédia que envolveu um médico até então respeitado entre seus pares como profissional competente, autor de livros sobre o tema e membro destacado de sociedades médicas, e os pacientes criminosamente abusados sexualmente por ele.
A repercussão estrondosa do caso, fruto da compreensível revolta coletiva contra a ação de uma pessoa, que se valia da posição privilegiada de médico para cometer e acobertar atos criminosos, gerou desconfiança generalizada e descabida contra os que tratam de adolescentes. Na TV e nos jornais, não só jornalistas como médicos apressaram-se em recomendar que os pais estejam atentos e não deixem os filhos adolescentes sozinhos com seus médicos durante a consulta.
É evidente o absurdo de tal recomendação. Se amanhã for denunciado um ginecologista que abusou de suas pacientes, deveremos recomendar que os maridos passem a assistir ao exame ginecológico de suas mulheres?
O exercício da medicina está baseado na confiança obrigatória entre o médico e seu paciente. Sem ela não há nenhuma possibilidade de entendimento. Conversar a sós com as pessoas que nos procuram é inerente e essencial à prática médica, especialmente se estamos diante de adolescentes que começam a estabelecer novos padrões de comportamento, muitas vezes chocantes para os ouvidos dos pais.