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O que é o transtorno dissociativo de identidade (TDI)?

Traumas prolongados na infância podem causar a fragmentação da identidade de uma pessoa. Entenda o que é o transtorno e como é feito o diagnóstico.
Publicado em 25/10/2023
Revisado em 26/10/2023

Traumas prolongados na infância podem causar a fragmentação da identidade de uma pessoa. Entenda o que é o transtorno e como é feito o diagnóstico.

 

João é um jovem calmo e reservado. De vez em quando, se “transforma” em Carlos, muito mais extrovertido e impulsivo. Quando Carlos está no controle, João faz coisas que normalmente não faria, como gastar dinheiro exageradamente. Outras vezes, quem assume é Laura, uma menina que adora brincar e desenhar. Quando João volta a si, não se lembra do que Carlos e Laura fizeram ou nem mesmo sabe da existência deles. 

O exemplo acima é fictício, mas a realidade de quem convive com o transtorno dissociativo de identidade (TDI) pode ser bem parecida.

 

O que é o transtorno dissociativo de identidade (TDI)?

Entende-se por identidade o conjunto de características que identificam uma pessoa, fazendo-a reconhecer-se como um indivíduo único. Portanto, cada um tem a sua. O TDI, no entanto, se dá quando existem duas ou mais identidades em uma mesma pessoa capazes de assumir o seu comportamento.

“O TDI, anteriormente conhecido como transtorno de personalidade múltipla, é um transtorno dissociativo complexo, muito raro e acontece quando a pessoa tem a vivência de várias personalidades com comportamentos e ações que se manifestam de maneiras diferentes. É como se, em uma pessoa, habitassem várias outras identidades”, explica a dra. Jéssica Martani, médica psiquiatra em São Paulo.

Em cada um dos estados de personalidade, apresentam-se diferentes versões ou modos de ser. Na prática, elas podem pensar, sentir e agir de maneiras completamente distintas — muitas vezes, sem saber da existência umas das outras.

 

Como o TDI se manifesta?

“A doença tem como característica uma dissociação em que ocorre a manifestação e a alternância de diversas identidades. Quando isso acontece, há lapsos de memória frente às ações realizadas pela identidade manifestada”, diz a psiquiatra.

Ou seja, a pessoa pode mudar entre as diferentes personalidades como resposta a gatilhos específicos ou de forma espontânea. Isso acontece sem que a pessoa perceba ou até mesmo sem que se lembre do que aconteceu enquanto a outra estava ativa. De acordo com a dra. Jéssica, não é incomum a pessoa com TDI se sentir perdida e ter diversos sofrimentos por conta desses “buracos” na memória.

A amnésia também se estende a outros momentos: a pessoa pode não se lembrar de eventos passados, como períodos da infância ou da adolescência. Ela também pode esquecer-se de atividades rotineiras, como dirigir ou mexer no computador. É comum que, após a troca de identidades, o paciente com TDI encontre objetos que não reconhece ou esteja em um lugar diferente de onde se recorda ter estado por último.

A alternância entre as identidades pode acontecer de duas formas:

  • Possessiva: nesse tipo, é como se agentes externos estivessem assumindo o controle da pessoa, quase como uma “possessão”. Sendo assim, quem está ao seu redor consegue perceber nitidamente as diferenças entre as identidades, já que o paciente age de maneira diferente. 
  • Não possessiva: já nesse tipo, é como se a pessoa se desconectasse de si mesma e estivesse observando de fora. Ela pensa, sente e age de maneiras que não consegue controlar e parece que o próprio corpo não lhe pertence. As identidades podem se conhecer entre si ou não ter consciência umas das outras. Nesse formato, as mudanças são mais sutis, nem sempre perceptíveis a terceiros.

Sendo assim, outros sintomas que costumam fazer parte do quadro são:

  • Relatos de que está ouvindo vozes;
  • Dores de cabeça intensas;
  • Sentimentos depressivos;
  • Ansiedade;
  • Comportamento suicida;
  • Disfunção sexual;
  • Alucinações;
  • Etc.

Veja também: Como o transtorno de estresse pós-traumático afeta os relacionamentos afetivos?

 

Causas do transtorno dissociativo de identidade

“Esse transtorno é frequentemente associado a traumas externos e prolongados, especialmente durante a infância, como abuso físico ou emocional. Acredita-se que o cérebro cria múltiplas identidades ou estados de personalidade como um mecanismo de defesa para se proteger e se desconectar dessas experiências traumáticas, permitindo que a pessoa ‘escape’ ou ‘se distancie’ da dor”, afirma Tammy Marchiori, neuropsicóloga com aperfeiçoamento em neurociência pela Harvard.

É na primeira infância que uma pessoa consolida a própria identidade, ou seja, desenvolve maneiras muito próprias de pensar, sentir e agir. Quando vivencia algum trauma nesse período, a formação da personalidade pode ficar fragmentada.

Além disso, traumas psicológicos graves, volume reduzido do hipocampo (uma área do cérebro), fatores genéticos e influências culturais também podem contribuir para o surgimento do TDI.

 

Semelhanças e diferenças entre o TDI e outros tipos de transtornos

No entanto, ainda que seja grave e complexo, o transtorno dissociativo de identidade é extremamente raro. O número de pessoas que sofrem com esse diagnóstico no mundo ainda é desconhecido. Por isso, é possível confundi-lo com outros transtornos mais frequentes, como esquizofrenia, transtorno de personalidade borderline, transtornos de ansiedade e até mesmo condições neurológicas específicas. 

Segundo Tammy, sintomas como alucinações, mudanças de comportamento, lapsos de memória e despersonalização são comuns em várias dessas condições. No entanto, analisando com mais cuidado, existem diferenças bastante significativas.

Enquanto no TDI a dissociação, por exemplo, cria identidades distintas, em outros diagnósticos ela é um sentimento de desconexão. “Em outros transtornos mentais, a dissociação pode se manifestar como uma sensação de desligamento da realidade, das próprias emoções ou do próprio corpo, mas sem a presença de múltiplas identidades”, compara a neuropsicóloga.

Ela também faz a diferenciação entre:

  • TDI e esquizofrenia: ambos podem apresentar alucinações e delírios, mas na esquizofrenia essas são percepções distorcidas da realidade, enquanto no TDI, as “vozes” ouvidas são frequentemente as das outras identidades. Além disso, na esquizofrenia, a pessoa pode ter um delírio de que outro agente está controlando seus próprios pensamentos e ações, diferente do TDI;
  • TDI e transtorno de personalidade borderline: os episódios dissociativos e as mudanças abruptas de humor quando a pessoa com borderline está sob situações de estresse podem ser confundidos com as mudanças de identidades da pessoa com TDI;
  • TDI e transtornos de ansiedade: nestes últimos, pode ocorrer despersonalização e desrealização em resposta aos ataques de ansiedade, mas sem a presenças das múltiplas identidades do TDI;
  • TDI e epilepsia: alguns tipos de crises epilépticas podem causar lapsos de memória ou comportamentos automáticos que podem ser equivocadamente associados às mudanças de identidade do TDI.

Veja também: Como reconhecer um surto de esquizofrenia

 

Diagnóstico e tratamento

“O diagnóstico do TDI é complexo e requer a avaliação de um psiquiatra, que fará uma análise profunda dos sintomas, além de uma análise clínica, verificação e exclusão de outros diagnósticos diferenciais”, destaca a dra. Jéssica Martani.

O paciente com TDI pode se deparar com um enorme sofrimento e desorganização do estado mental no seu dia a dia. As mudanças de identidade e os lapsos de memória resultam em perdas de momentos significativos, dificuldade para cumprir compromissos diários, problemas nos relacionamentos, no trabalho e na escola e uma sensação constante de desorientação.

Não à toa, pessoas com TDI podem desenvolver ideações suicidas, automutilação, depressão, ansiedade, transtornos alimentares, abuso de substâncias, dificuldades de funcionamento social e até problemas legais causados por ações tomadas por identidades alternativas.

De acordo com a dra. Jéssica, o tratamento é feito com uma equipe multidisciplinar que visa reabilitar e reintegrar esse paciente na comunidade para que ele possa realizar suas atividades. O grupo conta com psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais e outros especialistas. O psiquiatra é o médico responsável pela condução da linha terapêutica, que geralmente inclui a prescrição de medicações de classes diferentes. 

A neuropsicóloga Tammy também ressalta os resultados positivos da terapia em grupo, que permite o compartilhamento de experiências e o aprendizado conjunto dos pacientes. A terapia comportamental dialética e a terapia do modelo de trauma também ajudam, segundo a especialista, focando diretamente na superação de traumas profundos e no controle das emoções. “Cada tratamento deve ser adaptado para a pessoa, considerando suas necessidades”, afirma.

Por fim, é importante destacar que familiares e amigos têm um papel fundamental no reconhecimento do transtorno. Ao perceber um ou mais dos sinais abaixo, procure ajuda profissional:

  • Ter lapsos de memória sobre eventos diários ou informações pessoais;
  • Encontrar objetos em suas coisas e não se lembrar de ter comprado;
  • Ouvir vozes conversando internamente e mencionando atos que não se lembra;
  • Ter comportamentos agressivos ou autodestrutivos;
  • Mudar a personalidade de forma drástica.

Veja também: Como conseguir atendimento psicológico gratuito

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