A malária é uma enfermidade prevalente em todos os países de clima tropical e subtropical, mas a África é o continente com maior número de casos, muitos deles fatais. Veja entrevista abaixo sobre malária.
* Edição revista e atualizada.
Provavelmente, a malária surgiu no continente africano. De lá se espalhou por vários países da Europa e da Ásia e, talvez, tenha chegado às Américas nos navios dos descobridores. Embora pareça ser uma doença tão antiga quanto a humanidade, foi só no século 5 a.C. que Hipócrates descreveu-a pormenorizadamente. Antes dele, a moléstia era atribuída ao castigo dos deuses ou aos maus espíritos.
O nome malária deriva de “mal aire” (“mau ar” em italiano) e surgiu no século 18, porque se acreditava que a causa da enfermidade estivesse no ar insalubre de certas regiões pantanosas. Foi só no final do século 19, começo do século 20, que se descobriu o papel dos insetos na transmissão do parasita que causa a doença e as alterações mórbidas que provoca no organismo infectado.
A malária é uma enfermidade prevalente em todos os países de clima tropical e subtropical, mas a África é o continente com maior número de casos, muitos deles fatais. No Brasil, a Amazônia é a área mais sujeita à transmissão da doença, especialmente depois que o homem invadiu o habitat natural do mosquito.
ORIGEM DA DOENÇA
Drauzio – A malária é uma doença realmente muito antiga?
Marcos Boulos – Certamente o plasmódio, parasita que produz a malária, é tão antigo ou mais antigo do que o homem na Terra, e a doença já faz parte da história da humanidade. Acredita-se que ela tenha sido responsável pelas febres que acometiam os trabalhadores das plantações de arroz no rio Nilo e a causa da morte de vários faraós do Egito. Segundo consta, Cleópatra teve malária e Alexandre Magno morreu por causa dessa doença.
E mais: a malária exerceu papel decisivo em vários conflitos bélicos. Só para ter uma noção do que significou, na Guerra de Secessão dos Estados Unidos, apesar da carnificina que marcou a luta entre os ianques e a população do sul, dois terços das mortes foram causados pela malária e, no Vietnã, o número de americanos que tiveram a doença foi tão grande que os Estados Unidos foram obrigados a construir Pattaya, uma cidade balneária na Tailândia, para enviar os doentes no período de recuperação da doença.
Drauzio – Existe muita especulação sobre o lugar em que surgiu a malária…
Marcos Boulos – Sinais obtidos em fósseis antigos indicam que a malária originou-se na África, especificamente na África Sub-Saariana.
TIPOS DA DOENÇA
Drauzio – São quatro as espécies de plasmódios que causam a malária. Você poderia estabelecer a diferença?
Marcos Boulos – Na verdade, existem mais de cem plasmódios, mas boa parte é causa da doença em macacos, aves e roedores, animais que acabam servindo para experimentação, para testar medicamentos. No homem, só quatro espécies produzem a moléstia: Plasmodium falciparum, Plasmodium vivax, Plasmodium malariae e Plasmodium ovale. A forma de malária provocada pelo vivax é a mais frequente e ocorre na maior parte do mundo; pelo falciparum predomina na África onde é responsável por grande número de casos fatais. Já a malária provocada pelo Plasmodium malariae é menos grave e, pelo ovale, só ocorre na África.
Drauzio – No Brasil, não existem casos de malária ovale?
Marcos Boulos – Nenhum caso. Parece que nossos mosquitos vetores são incompetentes para transmitir essa forma da doença. Na época da guerra de Angola, recebemos alguns refugiados com malária ovale. Colocamos esses pacientes perto dos insetários e os nossos anofelinos não se infectaram com esse tipo de plasmódio.
VETOR DA DOENÇA
Drauzio – A malária é uma doença transmitida por um mosquito. Você poderia falar sobre as características do mosquito vetor da doença?
Marcos Boulos — O vetor da malária é o anofelino (Anopheles), um mosquito como vários outros, parecido com o pernilongo. Há vários tipos de anofelinos. O mais comum é chamado darlingi que tem o hábito de picar as pessoas principalmente ao entardecer, embora o faça também à noite e quando está amanhecendo. Durante o dia, com o sol forte, fica escondidinho na sombra, nas árvores, nas águas, mas, nos finais das tardes, sai para o repasto. Na região amazônica, onde ocorrem 98% dos casos de malária brasileira, quase todos são transmitidos pelo anofelino.
O ciclo da malária humana é homem-anofelino-homem. Geralmente, são as fêmeas que atacam porque precisam de sangue na alimentação para garantir o amadurecimento e a postura dos ovos. Se as fêmeas picarem um indivíduo infectado, o parasita irá desenvolver parte de seu ciclo no organismo do mosquito e, em mais ou menos duas semanas, alcançará suas glândulas salivares, o que lhe confere condições de infectar uma pessoa no momento da picada.
Drauzio – Além do darlingi, que outras espécies de anofelinos podem transmitir a malária?
Marcos Boulos – O mais perigoso de todos, que felizmente não existe no Brasil, é o Anopheles gambiae, responsável pela forma mais grave, e com frequência fatal, da doença na África. Na década de 1930, foi a causa de uma epidemia de malária no Nordeste, mas esse mosquito foi totalmente erradicado do Brasil.
CICLO DO PARASITA
Drauzio – O mosquito inocula o plasmódio que está em suas glândulas salivares quando pica uma pessoa. Qual o ciclo do parasita no organismo humano?
Marcos Boulos – No hospedeiro humano, o plasmódio desenvolve um ciclo assexuado, ou seja, vai se dividindo e aumentando de número. Depois de no máximo 30 minutos que entrou na circulação sanguínea, alcança o fígado e multiplica-se dentro das células hepáticas até que elas explodem. Então, eles se espalham no sangue e invadem os glóbulos vermelhos, onde se reproduzem a ponto de rompê-los também.
Esses parasitas liberam toxinas no sangue. Diante desse agente estranho, a temperatura sobe e a pessoa começa a ter calafrios e a bater os dentes. O frio que sente é tanto que, mesmo no verão, treme muito e chega a sacudir a cama onde está deitada. Quando a febre alcança o patamar de 39ºC, 40ºC, vem a fase do calor. O paciente se aquieta, embora o parasita ainda esteja circulando em seu sangue e vá entrar em outros glóbulos vermelhos. Nesse momento, o estímulo desaparece, a temperatura cai rapidamente, o que faz a pessoa suar muito.
Aí, começa tudo de novo: o plasmódio se replica, explode o glóbulo, vêm o calafrio, a febre e o suor. Em geral, dependendo do tipo de malária, esse quadro se repete a cada dois ou três dias.
Drauzio – O parasita desenvolve, então, um ciclo dentro do organismo do mosquito e outro no organismo humano…
Marcos Boulos – Desenvolve um ciclo sexuado no mosquito e um assexuado no homem. Na forma sexuada, um gametócito masculino e outro feminino se juntam e, por flagelação, dão origem a novos plasmódios que migram até a glândula salivar e serão transmitidos no momento da picada, quando estiverem maduros, para fechar o ciclo no homem. É no homem que ele desenvolve a fase assexuada nas células do parênquima hepático e nos glóbulos vermelhos do sangue.
Drauzio – Olhamos sempre o plasmódio como um inimigo que invade o organismo do homem e deve ser combatido. Mas, se olharmos a infecção do ponto de vista do protozoário, sua estratégia de sobrevivência é perfeita.
Marcos Boulos – Ele sabe como viver. Entretanto, ao contrário do Aedes aegypti que transmite a dengue e prolifera nas cercanias das habitações humanas, o Anopheles vive nas matas e são os homens que invadem as barreiras naturais do seu habitat. Como precisa de sangue para sobreviver, pica o invasor e a transmissão da malária acontece.
DOENÇA AUTOLIMITADA
Drauzio – O que acontece com quem contraiu malária e não recebe tratamento?
Marcos Boulos – Na teoria, todas as doenças infecciosas, até mesmo as mais graves, são autolimitadas, ou seja, o sistema de defesa do organismo combate o invasor estranho e a doença desaparece. Em alguns casos, porém, a limitação ocorre com a morte do paciente que não tinha um sistema de defesa eficiente.
Teoricamente, a malária leva mais ou menos de um ano e meio a três anos para autolimitar-se, isto é, para as febres desaparecerem e o indivíduo ficar em equilíbrio com o parasita. Esse quadro ocorre com frequência na África.
Drauzio – A repetição das crises obedece a um ritmo pré-estabelecido?
Marcos Boulos – Nos casos de malária causados pelo plasmódio vivax ou pelo falciparum, os mais comuns, a febre reaparece a cada 48 horas. Em outras palavras: o paciente tem febre num dia, passa dois sem febre, volta a ter febre e assim sucessivamente. Se for causada pelo plasmódio malariae, a evolução é um pouco mais lenta e a febre reaparece a cada três dias. No primeiro caso – um dia com febre, dois dias sem febre – a infecção é chamada de malária terçã. No segundo (um dia com febre seguido de três dias sem febre), é chamada de malária quartã. Geralmente, a evolução da malária terçã provocada pelo Plasmodium vivax é benigna, e a terçã provocada pelo Plasmodium falciparum é mais maligna.
Nos primoinfectados, isto é, nos indivíduos que nunca haviam entrado em contato com o parasita falciparum e têm malária pela primeira vez, a reação pode ser tão exuberante que eles não conseguem autolimitar a infecção. Se não forem tratados precoce e adequadamente, podem morrer porque o sistema imunológico fica desorganizado e começa a destruir tecidos (vasos pulmonares, rins) e a provocar lesões cerebrais. Naqueles que têm a doença mais de uma vez, raramente isso acontece.
A despeito de a malária ser uma infecção autolimitada, ninguém quer esperar de um ano e meio a três anos para livrar-se dela. Com o tratamento, rompe-se a forma de reprodução do parasita na fase assexuada que se desenvolve no homem e os sintomas clínicos desaparecem.
PERÍODO DE INCUBAÇÃO
Drauzio – Você poderia falar agora sobre o período de incubação, compreendido entre o momento da picada do mosquito e o aparecimento da primeira febre?
Marcos Boulos – Geralmente, o período de incubação vai de sete a 28 dias. O tempo do período de incubação, porém, vai depender do parasita que causou a infecção.
Se foi o Plasmodium falciparum, o período é mais curto e a evolução da doença mais rápida, porque esse parasita ataca todas as hemácias (glóbulos vermelhos), sejam elas jovens ou velhas. Por isso, a doença pode ser fatal se não for tratada adequadamente. Nos casos de malária vivax, o período de incubação chega a 14 dias, porque o parasita ataca só os glóbulos vermelhos jovens e a parasitemia não passa de 3%. Já o Plasm0dium malariae provoca uma infecção menos intensa porque seu alvo são as hemácias velhas, isto é, 0,1%, 0,2% dos glóbulos vermelhos, e seu período de incubação pode chegar a 28 dias.
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Não é incomum uma pessoa fazer uma viagem para a Amazônia ou para a África e apresentar os sintomas no seu estado ou país de origem, onde os profissionais, por não estarem acostumados a ver a doença, não conseguem fazer o diagnóstico de malária. E isso não acontece só nos Estados Unidos e Europa. Acontece também em São Paulo.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Quando deve ser instituído e quais os princípios gerais do tratamento da malária?
Marcos Boulos – Quando a pessoa tem febre e esteve em área de transmissão da doença (Amazônia, ou América Latina de modo geral, África, Sudeste Asiático), a primeira hipótese de diagnóstico é que seja malária. Pode não ser, mas é assim que devemos pensar. Quando, além da febre, o paciente apresenta sudorese e calafrios, nem precisa pedir o exame de lâmina, porque esses são os sintomas característicos da doença.
O problema é que, nas pessoas infectadas pela primeira vez, ainda não houve organização imunológica suficiente e elas podem ter só febre. Recordo que fui chamado para ver vários casos de malária em São Paulo, que estavam sem diagnóstico porque o único sintoma era a febre. A ausência de calafrios e sudorese fazia crer que fosse uma infecção qualquer. O inconveniente é que a demora para começar o tratamento específico para a malária pode agravar muito o quadro.
Drauzio – Como é feito o exame de lâmina?
Marcos Boulos – O exame de lâmina, também chamado de gota espessa ou esfregaço, é muito simples. Por um pequeno furo feito com uma agulha na polpa de um dedo, retira-se uma gota de sangue que é colocada numa lâmina. Espera-se secar e aplicam-se corantes típicos. Depois de 20 minutos, é possível ver o parasita dentro das hemácias.
Drauzio – Esse exame pode ser feito em qualquer lugar e por qualquer técnico?
Marcos Boulos – Em qualquer lugar e por qualquer técnico. Se levarmos o microscópio para uma zona endêmica de malária, com alguns dias de treinamento, conseguiremos ver o plasmódio e, com maior treinamento, seremos capazes de identificar qual o tipo de malaria que provoca.
Drauzio – Em São Paulo, onde esse exame pode ser feito?
Marcos Boulos — Em São Paulo, o laboratório por excelência para fazer o diagnóstico da doença é Laboratório da Superintendência do Controle de Endemias, que funciona dentro do Laboratório dos Viajantes, no Hospital das Clínicas. Bastam 20 minutos para o exame de lâmina ficar pronto e, no caso de o resultado ser positivo, há imediata prescrição do tratamento para combater o plasmódio.
É preciso lembrar que são os gametócitos – “células precursoras dos gametas e que são tanto femininas quanto masculinas” (Fiocruz) – que infectam os mosquitos. Desse modo, introduzindo o tratamento, estaremos rompendo a cadeia de transmissão.
Ninguém pode esquecer que existem áreas de transmissão da doença em toda a Serra do Mar. Já ocorreram casos de malária no Guarujá, Boiçucanga, Maresias, praias badaladas que abrigam anofelinos em suas matas e cachoeiras. Se um portador da infecção, mesmo sem febre, for picado por um desses mosquitos, pode desencadear uma pequena epidemia de malária na região.
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TRATAMENTO
Drauzio – Como agem os medicamentos para malária?
Marcos Boulos — Os medicamentos para malária são específicos para a fase em que se encontra a espécie de plasmódio. Em geral, o remédio para a forma sanguínea da doença age também sobre os gametócitos que irão infectar o mosquito vetor da doença.
Drauzio – O tratamento é ministrado por via oral? Durante quanto tempo?
Marcos Boulos – Vamos pensar nos três tipos de malária que existem no Brasil: vivax, falciparum e malariae. Para a malária vivax, o tratamento é feito com comprimidos de cloroquina, quatro no primeiro dia, três no segundo e três no terceiro. Desse modo, rompe-se o ciclo do parasita no sangue e os sintomas da doença desaparecem. No entanto, como o ciclo continua no fígado, sem tratamento, pode ser responsável por recaídas, porque o parasita rompe as células hepáticas, instala-se nas hemácias e os sintomas reaparecem, depois de alguns meses. Para evitar que isso aconteça, existe a primaquina, um remédio que deve ser tomado sob a forma de um comprimido diário, durante 14 dias.
Às vezes, o paciente interrompe o tratamento, porque acha que está bom – e está mesmo. Mas, suspendendo a medicação, corre o risco de ter uma recaída e disso advém a fama de que a malária é uma doença incurável.
Usa-se também cloroquina para a malária provocada pelo Plasmodium malariae, respeitando o esquema de quatro comprimidos no primeiro dia e três nos dois dias subsequentes. No entanto, essa forma da doença não requer a indicação de primaquina, porque o parasita, tendo saído do fígado, não volta para esse órgão.
A doença causada pelo Plasmodium falciparum é realmente o maior problema, porque desde a década de 1960 esse parasita tem-se mostrado resistente à cloroquina.
Atualmente, o tratamento da malária falciparum consiste na associação de artemisinina com lumefrantina ou mefloquina.
Drauzio – O velho quinino que já foi amplamente utilizado, ainda tem indicação no tratamento da malária?
Marcos Boulos – O velho quinino, que tem cem anos de história no tratamento da malária, associado a um antibiótico, a doxiclina, pode ser utilizado na seguinte dosagem: três comprimidos de quinino durante três dias e dois comprimidos de doxiclina durante sete dias.
TOLERÂNCIA AO TRATAMENTO
Drauzio – Em linhas gerais, como os doentes suportam o tratamento?
Marcos Boulos – Nos casos de malária vivax, a cloroquina é bem tolerada e não provoca efeitos colaterais. O mesmo não ocorre com os medicamentos usados para malária falciparum. Os pacientes apresentam certa intolerância e sentem náuseas, quando tomam quinino por causa de seu grau de toxicidade. A doxiclina provoca sintomas gastrintestinais adversos e a mefloquina pode produzir vômitos e outros efeitos colaterais indesejáveis. Parece ser mais bem tolerado o esquema novo proposto pela OMS, que consiste na associação de um derivado da artemisinina com a lumefantrina.
A intolerância aos medicamentos é um empecilho que limita seu uso no tratamento da malária falciparum. Por isso, temos tentado esquemas mais operacionais, menos tóxicos e por menor tempo para que a pessoa não desista do tratamento.
Drauzio – Não existe vacina contra a malária. Que cuidados as pessoas devem tomar quando visitam regiões endêmicas? Existe algum tratamento preventivo que possam fazer?
Marcos Boulos – No que se refere à profilaxia, há dois tipos de abordagem. Se na região a visitar, o grau de endemicidade for baixo e os casos de transmissão menos importantes, recomendamos as seguintes precauções: menor exposição a águas paradas ao entardecer e à noite, uso de camisas de manga compridas, de repelentes em todo corpo e de mosquiteiros para evitar a picada de mosquitos durante a noite.
Em regiões de alta transmissão como a África negra, onde existe o gambiae que pica o dia todo, é preciso tomar medicamentos, entre eles, a mefloquina em doses mais altas. Os remédios devem ser tomados antes da partida, durante a estada no local e na volta, por um período de tempo determinado. Mesmo fazendo a quimioprofilaxia, se a malária for resistente ao medicamento, a pessoa pode contrair a doença. Por isso, se tiver febre, devemos pensar que pode estar com malária.
Drauzio – A quimioprofilaxia é um tratamento delicado que depende de orientação médica.
Marcos Boulos – Nossa preocupação é evitar que a pessoa faça a prevenção por conta própria. Além disso, fornecemos medicamentos para evitar efeitos colaterais e para tomar se houver febre, porque é falsa a segurança que a quimioprofilaxia garante proteção total contra a doença.
Site: www.sbmt.org.br