Anemia falciforme | Guilherme Fonseca

Luiz Fujita Jr

Luiz Fujita Jr é jornalista, editor do Portal Drauzio Varella e criador do podcast Entrementes, sobre saúde mental. @luizfujitajr

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Doença herdada de nossos antepassados pode ser detectada já no Teste do Pezinho e receber o tratamento adequado desde a infância.

 

Dr. Guilherme Fonseca, médico hematologista assistente do Departamento de Hematologia do HC de São Paulo, comenta tratamento, diagnóstico e indica cuidados para os portadores de anemia falciforme. Veja a entrevista dividida por temas e, no final do post, o vídeo completo.

 

O que é anemia falciforme e de onde vem esse nome

A  anemia falciforme é uma doença genética causada por alteração na formação da hemoglobina, molécula que transporta o oxigênio no nosso sangue. Uma única alteração provoca a formação de um cristal dentro do glóbulo vermelho, e esse tipo de célula, que normalmente tem formato de um disco bicôncavo, passa a ficar distorcida, em formato de foice.

A doença foi descrita no início do século XX nos Estados Unidos, mas no continente africano ela era conhecida há vários séculos e recebia nomes de onomatopeias da dor. Então, em vários idiomas da África Ocidental ela é chamada por nomes relacionados à dor que as crises causam nos pacientes.

 

Origem da doença

No Brasil, ela chegou por escravos que vieram da África, mas não é uma doença que ocorre só naquele continente. Ela também ocorre na Índia, na região do Oriente Médio, na bacia do Mediterrâneo e em vários países da África Ocidental. Alguns autores dizem que o país que mais tem anemia falciforme é a Índia, mas quando somamos todos os pacientes mais graves, o continente mais acometido acaba sendo o africano e as Américas, por conta do tráfico negreiro.

 

Número de pessoas com anemia falciforme no Brasil

As estatísticas no Brasil sempre trazem alguns problemas de interpretação. Nós imaginamos que existam, hoje, de 35 a 40 mil pessoas que têm formas de doença falciforme. O traço falciforme, que os pais têm e não é associado a grandes alterações médicas, está presente em 4% a 8% da população, dependendo da região e do Estado.

 

São necessários os dois genes (do pai e da mãe) ou basta um só?

Ambos precisam ter a mutação para transmitirem ao filho, mas os pais podem ser absolutamente saudáveis, sem apresentar a doença. A doença falciforme não apresenta uma única mutação possível. Há mutações diferentes que podem provocar quadros um pouco diferentes, caracterizando o que seriam doenças “primas” da anemia falciforme.

 

Teste do Pezinho e anemia falciforme

O Teste do Pezinho é feito a partir do quarto ou quinto dia de vida, a partir de uma amostra de sangue coletada com uma punção na região do calcanhar. No Brasil, nascem 2.500 crianças com essa doença por ano. É importante o diagnóstico precoce porque pode mudar o tratamento e salvar várias vidas.

Quando o teste dá positivo, os sinais da doença não aparecem de imediato. Quando a criança nasce, ela não tem nenhum sintoma, não há como saber que ela tem anemia por olhar ou examinar. A doença vai aparecer a partir dos quatro ou seis meses de idade, quando o corpo substitui a hemoglobina que estava no útero pela do paciente. As primeiras manifestações da doença podem ser difíceis de reconhecer, porque a criança está chorando e não pode falar que está com dor, mas boa parte dessas manifestações são reconhecidas pelos pediatras e permitem que seja feito o diagnóstico.

 

Problemas causados pela deformidade das hemácias

O nosso corpo é desenhado para que essas hemácias consigam passar por vários tecidos e vasos bem pequenos, menores até que os tamanhos delas próprias. Elas se deformam para passar por esses vasos, e se elas têm formato de foice há dificuldade para fazer isso. Começam a ocorrer pequenos infartos, pequenas lesões nos tecidos, causando dor e lesões chamadas de isquêmicas, por falta de oxigênio e sangue nesses tecidos.

 

Uma alteração tão pequena que provoca tantos problemas

Assim como uma pequena palavra num discurso pode causar problemas, uma única molécula, um único aminoácido entre 146 pode causar toda essa alteração. A gente acredita que outras alterações de glóbulos brancos, plaquetas e alterações moleculares também auxiliam nisso, mas basta essa única mutação para causar essa série de problemas.

Esse problema acomete o sistema integrador do organismo, que é o sangue. Todo o nosso organismo precisa do sangue para ser oxigenado, nutrido. Se você tem uma alteração nesse fluido, não existe órgão que será poupado, desde cérebro, ossos, olhos, coração ou pulmão.

A tragédia, realmente, é por ser uma alteração tão pequena que pode causar vários problemas que, apesar de conhecermos há anos, ainda não há cura sem grandes efeitos colaterais.

 

Principais complicações que acometem os portadores de anemia falciforme

Depende da idade. As crianças, em geral, apresentam crises de dor, inflamações nas juntas dos pés e das mãos, o que chamamos de síndrome mão-pé, podem ter maior facilidade de terem algumas infecções, principalmente pneumocócica (pulmonar), às vezes septicemia por essa bactéria, e algumas alterações de baco também , que pode crescer muito rapidamente e causar problemas de pressão e dor abdominal. Algumas destas manifestações na infância podem ser muito graves, a ponto de ameaçar a vida do bebê.

 

Manifestações no adulto

A Medicina está conhecendo agora as manifestações no adulto. O que acontece é o acúmulo das lesões, que ocorrem no pulmão, nos rins, no fígado e sistema nervoso. Não existe nenhum órgão (seja na infância ou na vida adulta) que deixe de ser atingido pela doença.

Mas os pacientes são muito diferentes entre si, alguns evoluem durante a vida sem ter grandes sintomas, que aparecem muito tarde, outros se adaptam. Então é variável, mas em geral, com o acúmulo, vão aparecendo problemas diferentes dos da infância, mas também graves.

 

Orientações aos pais de uma criança com anemia falciforme

As recomendações gerais são tentar trazer ao médico rapidamente caso ocorram sinais de infecção, febre, se a criança começou a ficar mais triste, amuada. Aprender a palpar o baço, órgão que fica logo abaixo do coração à esquerda, perceber se ele aumenta de tamanho e rapidamente trazer ao médico. Outras medidas simples, como evitar que as crianças sejam expostas ao frio ou ao calor muito rapidamente, serem vacinadas corretamente, atividade esportiva adequada e manter as crianças sempre hidratadas, também ajudam. Boa parte dessas recomendações são mantidas para os adultos, como a atividade esportiva e o uso de roupas para evitar o frio ou calor excessivo.

O adulto, por causa do acúmulo de lesões, tende a ser examinado mais frequentemente e fazer exames para evitá-las e prevenir seu agravamento. As mais passivas de prevenção são as oculares. Em alguns tipos de doença pode ocorrer o que chamamos de retinopatia, que guarda alguma semelhança com as que ocorrem em pressão alta e diabetes;  alterações renais (como os pacientes têm muita crise dolorosa, podem abusar de anti-inflamatórios que lesam o rim, então sempre orientamos a serem comedidos no uso desse tipo de analgésico); lesões cardíacas e pulmonares, que podem ser  vistas por ecocardiograma e podem ser corrigidas pelo uso adequado de medicações; alterações ósseas, que ocorrem principalmente na cabeça do fêmur e podem ser corrigidas cirurgicamente ou com medidas clínicas de fisioterapia e fisiatria.

 

Anemia falciforme e transfusão de sangue

Alguns pacientes precisam de transfusão em episódios de piora ou por causa de infecção ou estresse, como uma operação ou cirurgia. Algumas crianças começam a receber a transfusão que chamamos de profilática, ou seja, mesmo que não haja sintomas (para evitar novos derrames ou o primeiro episódio). Através de um exame simples é possível detectar se a criança tem risco de ter um derrame ou não e a transfusão pode evitar que aconteça. O exame é um ultrassom chamada Doppler, que mede a velocidade do sangue dentro dos vasos do cérebro. Quando essa velocidade está aumentada, significa que o vaso esta diminuído de tamanho. Significa, então, que o risco está aumentado.

 

Medicamentos para anemia

Essa anemia, em geral, não precisa de reposição de ferro, mas não que seja absolutamente proibido. O que a gente utiliza é uma medicação chamada ácido fólico, que é um tipo de vitamina muito utilizada para fabricar o sangue. Como a destruição é muito acelerada, nós fazemos uma reposição dessa vitamina para evitar que a anemia piore.

 

Assista abaixo à entrevista completa.

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