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Sexualidade

Serviços de saúde voltados à população trans no Brasil

mão estendida com bandeira colorida, símbolo da luta trans por direitos. Veja como e onde funcionam os serviços de saúde para a população trans.
Publicado em 07/07/2023
Revisado em 24/08/2023

As regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste contam, cada uma, com apenas um centro de atendimento hospitalar; geralmente, são feitas poucas cirurgias por mês. Veja como e onde funcionam os serviços de saúde para a população trans.

 

Somente em 2019 a transexualidade deixou de ser considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Assim como esse marco, as conquistas da população trans no Brasil são recentes, mas vêm ganhando espaço. Foi em 2006 que transexuais e travestis puderam começar a usar o nome social no SUS, por meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Dois anos depois, as cirurgias de redesignação sexual, o acompanhamento multidisciplinar e as terapias hormonais foram instituídas para mulheres trans. Somente em 2013, pela Portaria 2803/2013, vigente até hoje, é que homens trans e travestis foram incluídos nessa política pública.

Ou seja, no Brasil, pessoas trans e travestis têm direito a um tratamento especializado e humanizado disponível de maneira gratuita pelo SUS. Esse tratamento é dividido em atenção básica e atenção especializada.

Atenção Básica: acolhimento inicial e direcionamento aos serviços especializados.

Atenção Especializada: dividida em ambulatorial (atendimento psicológico, psiquiátrico, ginecológico, proctológico e endócrino), disponível para pessoas a partir de 18 anos, e hospitalar (cirurgias), disponível somente a partir dos 21 anos.

De acordo com nota emitida pelo Ministério da Saúde (MS), em junho de 2023, 21 estabelecimentos de saúde estão habilitados para prestar a Atenção Especializada no Processo Transexualizador. Destes, 12 são habilitados para a modalidade ambulatorial, dois são habilitados na modalidade hospitalar e sete são habilitados tanto na modalidade hospitalar quanto na modalidade ambulatorial. São eles:

Região Norte:

  • Hospital Jean Bitar – Belém (PA) – Serviço Hospitalar

Região Nordeste:

  • Hospital Univ Monsenhor João Batista de Carvalho Daltro – Lagarto (SE) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco – Recife (PE) – Serviço Ambulatorial e Hospitalar
  • Complexo Hospitalar de Doenças Infectocontagiosas Dr. Clementino Fraga – João Pessoa (PB) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital Universitário Professor Edgard Santos – Salvador (BA) – Serviço Ambulatorial

Região Centro-Oeste:

  • Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás – Goiânia (GO) – Serviço Ambulatorial e Hospitalar
  • Núcleo de Ações Básicas de Saúde/NABS – Itumbiara (GO) – Serviço Ambulatorial

Região Sudeste:

  • HUCAM-Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes – Vitória (ES) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital das Clínicas de Uberlândia – Uberlândia (MG) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital Eduardo de Menezes – Belo Horizonte (MG) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora – Juiz de Fora (MG) – Serviço Ambulatorial
  • Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (RJ) – Serviço Ambulatorial e Hospitalar
  • Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia – Rio de Janeiro (RJ) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital Universitário Gaffree e Guinle – Rio de Janeiro (RJ) – Serviço Hospitalar
  • Centro de Referência e Treinamento DST/Aids – São Paulo (SP) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital das Clínicas de São Paulo – São Paulo (SP) – Serviço Ambulatorial e Hospitalar
  • Ambulatório de Doenças Crônicas Transmissíveis – São Paulo (SP) – Serviço Ambulatorial

Região Sul:

  • Policlínica Municipal Centro – Florianópolis (SC) – Serviço Ambulatorial
  • Hospital Universitário Dr Miguel Riet Corrêa Jr  HU/FURG – Rio Grande (RS) –  Serviço Ambulatorial e Hospitalar
  • Hospital de Clínicas de Porto Alegre – Porto Alegre (RS) –  Serviço Ambulatorial e Hospitalar

        Veja também: Como funciona o SUS para pessoas transexuais

 

Dificuldades

Porém, ainda existem algumas dificuldades para garantir esse direito a toda a população. Em nota emitida pela assessoria de imprensa do Hospital das Clínicas de São Paulo, a instituição afirma não ter nenhum profissional que possa falar sobre o tema de cirurgias de redesignação sexual no momento. Além disso, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás não tem realizado cirurgias desde 2019, devido ao falecimento da médica responsável pelo Programa de Redesignação Sexual, e segue prestando apenas serviços ambulatoriais. A reportagem entrou em contato com outros hospitais, porém não obteve resposta.

A ginecologista dra. Aleide Tavares, responsável por realizar cirurgias de redesignação sexual no Espaço Trans do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HCUFPE), conta que a equipe do hospital é pequena para toda a demanda recebida. “A fila de espera é de, em média, quatro anos. E a gente tem uma grande quantidade de pessoas que ainda não foi acolhida. Não tem como precisar a quantidade, mas algo em torno de 900 pessoas, incluindo homens e mulheres trans, estão esperando atendimento no HC, ainda na média complexidade”, relata a médica.

Outra dificuldade enfrentada pela população trans, uma vez que é acolhida em um centro especializado, é que são poucas as cirurgias realizadas ao longo do tempo. De acordo com a dra. Tavares, no Espaço Trans é realizada somente uma cirurgia por mês. “A gente também tem um problema que é pouca quantidade de salas no bloco cirúrgico. Só tem um bloco cirúrgico para dar conta de todas as cirurgias do HC”, afirma. Vale lembrar que o HCUFPE é o único que oferece atenção hospitalar no Nordeste, acompanhado de apenas mais dois locais que oferecem atendimento ambulatorial na região. Na região Norte, há apenas um estabelecimento de referência, com atendimento unicamente hospitalar.

 

Expansão dos serviços de saúde para a população trans

Apesar dos desafios que ainda se impõem à garantia de direitos à população trans, é preciso observar que a rede de atendimento especializado de saúde tem crescido. Cidades menores têm recebido novas unidades, como é o caso de Itumbiara-GO que, em 2022, conseguiu reconhecimento junto ao MS de um ambulatório especializado em saúde de pessoas transexuais e travestis, o Ambulatório TX. Esse serviço atende toda a região sul de Goiás, e facilitou a vida de pessoas como Felippe Eduardo de Almeida, homem trans.

Felippe começou a procurar o serviço de saúde há cerca de seis anos, e a fazer o tratamento hormonal e psicológico. Nos primeiros anos, ele precisava percorrer os 208 km entre Itumbiara e Goiânia para suas consultas, o que era desafiador. “Às vezes eu ia para lá e não tinha dinheiro nem para comer. Eu tomava café da manhã com o pessoal do Amigos da Madrugada e do lado do hospital tinha o pessoal que dava marmitex”, conta. Depois, com a consolidação do Ambulatório TX em sua cidade, ele conseguiu continuar o tratamento com mais facilidade.

Foi assim que, no dia 11 de janeiro de 2023, Felippe realizou a cirurgia de histerectomia (retirada do útero, que pode incluir a remoção das tubas uterinas, ovários e adjacências) no Hospital Estadual Alberto Rassi (HGG) em Goiânia, pelo SUS, porém ainda não listado pelo MS. Agora, Felippe está na fila de espera para realizar sua tão sonhada mastectomia (retirada das mamas). Para conseguir a cirurgia, porém, ele precisa perder peso por recomendação médica, e estar em dia com a hormonização, o que é uma dificuldade, já que seu remédio multiplicou de preço nos últimos meses. Segundo Felippe, o preço antigo era por volta de 44 reais, e houve um aumento recente para cerca de 200 reais.

No Ambulatório TX, de acordo com Mauri Gonçalves Jr. psicólogo e coordenador do local, são oferecidos atendimento psicológico, psiquiátrico, endócrino e remédios gratuitos para mulheres trans. Segundo Mauri, as medicações para homens trans são muito caras, e os fornecedores não conseguem oferecer em grande quantidade para o SUS. A demanda para ser atendido no ambulatório TX é espontânea, e atualmente o ambulatório atende 44 pacientes, sem fila de espera.

        Veja também: Como funciona a terapia hormonal para pessoas trans?

 

Importância dos serviços de saúde para a população trans

Foi depois de começar o tratamento hormonal e psicológico que Felippe conseguiu, realmente, se assumir como homem trans para a sociedade. Ele, então, buscou a mudança de nome nos seus documentos, e começou a se sentir mais seguro consigo mesmo. “Desde pequeno eu já sentia vontade de poder falar ‘eu quero ser homem’, ‘eu quero me transformar’, e tudo mais. Mas, mesmo depois de uma certa idade, era difícil. A aceitação veio quando eu comecei o tratamento, e as pessoas viam o resultado. Meu pai era mais rígido, então foi mais difícil pra ele. Quando eu estava no segundo ano de tratamento mais ou menos, ele já estava respeitando mais o meu nome, e me fez uma surpresa, nesse dia eu até chorei”, relata ele.

De acordo com a observação clínica da dra. Tavares, o tratamento especializado e a realização das cirurgias de redesignação sexual têm um efeito muito positivo na vida e na saúde dos pacientes trans. “Há uma grande melhora na qualidade de vida dessas pessoas, elas passam a reconhecer aquele corpo como sendo o corpo que está adequado para o gênero com o qual essa pessoa se identifica”, afirma a médica.

 

Cirurgias

As cirurgias oferecidas pelo SUS para readequação sexual à população trans são: mastectomia, histerectomia, redesignação sexual (para mulheres trans), tireoplastia (afinamento de cordas vocais), inserção de prótese mamária, e a faloplastia (construção peniana a partir do clítoris), que era feita em caráter experimental pela UFG.

A dra. Tavares adverte que os sintomas pós-cirúrgicos são leves em todas as cirurgias, e na redesignação sexual para mulheres trans, é necessário apenas um repouso curto, com sintomas de dores locais por pouco tempo. Felippe confirma a experiência: “A minha cirurgia foi muito tranquila. A ‘costura’ foi impecável, algo interno. No outro dia eu já estava tomando banho sozinho”.

Felippe conta que, por outro lado, os tratamentos hormonais são mais intensos, e que, nos primeiros dias, deixam o paciente irritado. “Os hormônios deixam a gente pilhado mentalmente, alteram totalmente nossa visão de tudo”, conta. Além disso, a menstruação em homens trans é imediatamente interrompida quando se inicia o tratamento com hormônios baseados em testosterona.

        Ouça: Entrementes #24 | Saúde mental da população trans

 

Transfobia

De acordo com a dra. Tavares, quando os pacientes chegam ao seu consultório, já depois de anos de espera pela cirurgia, é comum que as mulheres trans estejam psicologicamente mais abaladas. “Os homens trans, geralmente, quando começam a hormonização, têm uma boa ‘passabilidade´[são mais aceitos na sociedade]. Já as mulheres trans têm que convencer as pessoas o tempo todo de que elas têm direito de exercer o seu papel de gênero, que precisam ter respeito como qualquer outra mulher e como qualquer outro ser humano”, afirma.

Além disso, explica que, para que um profissional atue com pessoas trans, é preciso partir de um interesse pessoal. “Infelizmente ainda existem muitos profissionais que têm transfobia e que se recusam a atender pessoas trans. Então, obviamente, um profissional que esteja disposto a atender pessoas trans não pode ser uma pessoa transfóbica. Mas não ter transfobia não basta, tem que ter um interesse pessoal em entender que é um campo ainda novo, e que é preciso aprender”.

 

Sobre a autora: Milena Félix é jornalista, redatora e, nas horas vagas, escritora e viajante. Interessa-se por assuntos relacionados à saúde da mulher, meio ambiente e à saúde e sociedade.

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