Terapia hormonal – DrauzioCast #182

A terapia hormonal é uma forma de adequar a aparência de pessoas trans a sua identidade de gênero. Entenda como ela acontece.

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Publicado em: 1 de julho de 2022

Revisado em: 8 de agosto de 2022

A terapia hormonal oferece bem-estar físico, emocional e psicológico para pessoas trans. Conheça o procedimento.

 

 

 

A terapia hormonal é uma ferramenta na vida de pessoas trans para adequar o corpo ao gênero com o qual ela se identifica, o qual é diferente do sexo que lhe foi designado ao nascer. A partir da hormonização, mudanças corporais são estimuladas ou inibidas para que a aparência fique de acordo com a identidade de gênero do indivíduo.

Para falar sobre como todo o processo é feito e quais são os benefícios para as pessoas trans, o dr. Drauzio recebe a dra. Luciana Oliveira, médica endocrinologista da Universidade Federal da Bahia que trabalha com endocrinologia reprodutiva e população trans. Ouça!

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Olha, no passado, o sexo era classificado de uma forma muito simples, era binário: ou se era homem, ou se era mulher. É lógico que existiam homossexuais masculinos e femininos, sempre existiram, mas as pessoas não consideravam. Quem nascia com órgãos sexuais masculinos era homem, femininos, era a mulher. Havia aqueles casos intermediários, de difícil discussão.

Eu lembro que na faculdade a gente estudava essas crianças que eles chamavam de intersexuadas porque você não conseguia definir através da inspeção dos órgãos genitais se era menino ou menina. Hoje as coisas mudaram bastante. Nós vamos ver que a complexidade, o entendimento da sexualidade ficou muito mais complexo em relação ao que era no passado.

Nós vamos falar hoje da terapia hormonal e, especialmente, a terapia hormonal para pessoas trans, que é um recurso pra realizar a adequação do corpo ao gênero, isto é, quando a pessoa não se identifica com o sexo que lhe foi designado no nascimento e que consta na certidão de nascimento.

O objetivo dessa terapia é promover mudanças no corpo pra que a aparência física da pessoa esteja de acordo com a sua identidade de gênero. Esse processo ajuda no bem-estar físico e psicológico da pessoa trans e é muito importante que ele seja realizado com acompanhamento e orientação médica. Pra falar sobre esse assunto, nós recebemos aqui a doutora Luciana Oliveira, que é médica endocrinologista da Universidade Federal da Bahia, com foco em endocrinologia reprodutiva e população trans.

 

Dr. Drauzio Varella: Seja bem-vinda, Luciana. 

Dra. Luciana Oliveira: Obrigada, muito obrigada pelo convite e pela oportunidade, doutor Drauzio.

 

DV: Eu vou começar de um jeito bem simples pra gente deixar tudo mais claro pras pessoas que estão nos ouvindo, Luciana. Você tem heterossexuais masculinos, que correspondem a uma extremidade do espectro, você tem heterossexuais femininas. Só que, entre esses dois extremos, nós temos uma enorme variedade. Vamos começar explicando o que são homens trans e o que são mulheres trans. 

Dra. Luciana: Pois bem. Então, os homens trans são pessoas que nasceram num corpo biológico feminino, né, com a genitália feminina, mas eles não se identificam nesse sexo, nesse gênero. Então, eles se identificam como homens e querem ser tratados, né, dessa forma. As mulheres trans, assim como as travestis, que também é uma identidade feminina, elas têm os genitais masculinos, mas se identificam como um gênero feminino. E nós temos também pessoas que se consideram como não binárias, ou seja, pessoas que não se identificam nem completamente com o masculino, nem completamente com o feminino ou se identificam um pouco com o masculino e um pouco com o feminino, e elas vão ficar então dentro desse espectro. É importante, aproveitando esse gancho, abrir um parêntese que, dentro da população trans, eu tenho pessoas que são heterossexuais também. Então, a gente esquece a questão da genitália e vai considerar agora só como ela se identifica. Então, mulheres lésbicas transexuais são mulheres que se se sentem atraídas e têm desejo sexual por outras mulheres e os homens trans também podem ser gays. Eles podem ser heterossexuais ou podem ser gays, e os gays são aqueles homens trans que sentem desejo sexual ou atração, afetividade por outros homens. Eu sei que, às vezes, parece meio confuso, mas, se a gente separar em duas caixinhas, uma caixinha vai a identidade de gênero, e aí eu vou ter pessoas trans e pessoas cis, que é a pessoa que se identifica com aquele sexo que ela nasceu, e a caixinha da orientação sexual, que é por quem a gente tem desejo, tem afeto e, daí, eu posso ter pessoas heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais, assexuais e assim a gente vai indo. Mas hoje o nosso foco é a transgeneridade, né.

 

DV: Eu acho que a primeira confusão que as pessoas fazem é que, quando você diz que alguém é um homem trans, as pessoas pensam que é um homem de nascimento que assumiu a identidade feminina, não é?

Dra. Luciana: É muito comum esse erro mesmo.

 

DV: E, ao contrário, a mulher trans é a mulher, que é chamada de sapatão ou qualquer outro desses nomes que, eu, pra dizer a verdade, eu não gosto nem um pouco. E não é isso, né, tá errado, né?

Dra. Luciana: Tá, tá sim. É exatamente o inverso disso.  

 

DV: Acho que cada um tem que pensar o seguinte: a pessoa trans, se ela assume a identidade feminina, ela é uma mulher, nasceu homem, mas ela é uma mulher porque ela assumiu a identidade feminina. A pessoa trans que nasceu mulher é um homem trans porque ela assumiu a identidade masculina. Então, acho que um bom método pra guardar isso é: você vai classificar como homem ou mulher a pessoa que assumiu aquela identidade, ponto, não é?

Dra. Luciana: Perfeito.

 

DV: Agora, esses são, vamos dizer, os extremos, não é, e aí você tem pessoas que assumem, em que a identidade fica um pouco menos fácil de entender, né. Explica outra vez, por favor.

Dra. Luciana: Eu vou tentar. Então, as pessoas não binárias, elas não têm essa polarização, de homem e mulher, elas estão dentro desse espectro. Então, elas podem se identificar um pouco com o masculino e um pouco com o feminino. Então, usar roupas, usar, inclusive, o pronome, mas elas não se identificam, elas não ficam dentro da caixinha, né, bem polarizado, de ser homem ou ser mulher. E existem pessoas que preferem, inclusive, que se use pronome neutro, que isso é uma outra discussão, porque o fato de ela não se sentir polarizada, ela entende que nem os pronomes femininos, nem os pronomes masculinos da língua portuguesa contemplam aquela pessoa, né, e aí a gente tem toda uma discussão em relação a isso. Mas, em linhas gerais, eu acho que a gente pode dizer isso: a pessoa não binária é aquela pessoa que não se identifica com os extremos, nem com o masculino, nem com o feminino, mas, sim, um pouco das duas coisas, né, porque senão a gente entraria no agênero, que é uma outra classificação.

 

DV: E qual seria a diferença entre essas pessoas e os bissexuais masculinos ou femininos?

Dra. Luciana: É uma questão de orientação sexual, doutor Drauzio. Então, a identidade de gênero é como eu me vejo. Inclusive, se a gente olhar na internet, tem um “biscoitinho sexual”, que eles apresentam muito bem isso. Então, identidade de gênero tá na cabeça, tá no cérebro, é como eu estou me vendo, é como eu entendo Luciana enquanto pessoa física, certo? Agora, a minha orientação sexual é por quem eu vou sentir desejo, por quem eu vou me sentir atraída, por quem eu quero viver uma relação sexual ou uma relação afetiva privada, certo? Então, eu posso ter uma pessoa trans, mas que é bissexual porque ela se interessa por pessoas de gênero feminino e masculino. É que eu sei que, pra muita gente que não trabalha na área, identidade e orientação, às vezes, realmente ficam muito confusos, né. “Mas, como assim, pra que que uma pessoa que já tem uma genitália masculina, vai se dar ao trabalho de transicionar pra um corpo feminino, né, adequar esse corpo a uma identidade feminina e querer se relacionar com mulheres? Não seria mais fácil já ficar com o corpo masculino e se relacionar com mulheres?” E, aí, esse é o grande ponto. Aquela pessoa, ela não se identifica com aquele corpo, aquele corpo não representa ela, né. E, aí, por isso ela vai trocar o corpo, mas o desejo dela pode continuar igual, pode continuar se interessando realmente por mulheres. Então, se a gente pegar e separar em duas caixinhas, pensar que identidade de gênero é como eu me vejo e a orientação é por quem eu sinto desejo e afetividade, daí, a gente começa a separar. Então, de um lado, eu vou ter, na caixa da identidade, eu vou ter homens trans, mulheres trans, as travestis e as pessoas não binárias, isso vai ser identidade de gênero. E, na outra caixinha, onde a gente colocou o tema orientação sexual, aí, eu vou ter os homossexuais, os heterossexuais, bissexuais, pansexuais, certo? São duas caixinhas separadas, mas que, como ser humano, eu posso ter um lado numa caixinha e o outro lado na outra caixinha. Então, eu posso ser uma pessoa cisgênero, ou seja, eu nasci com o corpo, eu me identifico como mulher, eu me reconheço enquanto um corpo feminino, mas eu gosto de mulheres, então, eu sou uma mulher cis homossexual. Mas, se eu não nasci com o corpo feminino, eu nasci com o corpo masculino, eu agora sou mulher trans porque o meu corpo original não era feminino, mas eu sou mulher, eu me identifico assim e eu gosto de mulheres, então, eu sou uma mulher trans homossexual. Mas existem muitas pessoas trans que são heterossexuais. O que que significa? Significa que aquela mulher trans que tem um corpo biológico original masculino, ela sente desejo por homens, então, ela é uma mulher trans que se interessa por homens, então, ela se entende como uma mulher trans heterossexual porque é uma mulher como homem. A gente esquece a genitália, né, a gente vai levar em consideração só a identidade mesmo. Melhorou?

 

DV: Melhorou, embora seja complicado.

Dra. Luciana: É, sim.

 

DV: Um conceito claro é esse, né. Você tem uma identidade sexual que tá ligada ao teu corpo, não é, se você acha que o seu corpo está adequado ao sexo masculino ou feminino, né. E, aí, você tem uma identidade que é ligada ao desejo sexual, como você sente a atração sexual, não é. E, na verdade, isso aumenta muito a complexidade porque é complexo mesmo, a sexualidade não é simples como a gente imagina que fosse, como se imaginava no passado, né.

Dra. Luciana: E tanta gente sofria, né. Se imaginava que era uma coisa simples, mas muita gente não se sentia contemplado, né, nessa binariedade, que era o que as pessoas entendiam antes, né. Então, você era homem ou mulher e você ou era heterossexual, ou homossexual e só, e muita gente não tava contemplada, aí, dentro desse espectro, né.

 

DV: E vivia infeliz por causa disso a vida inteira, né. 

Dra. Luciana: Sim.

 

DV: Luciana, quando você recebe alguém que diz: “olha, eu quero, sei lá…” Um homem que diz: “eu não me sinto homem, eu nasci no corpo errado, eu queria me transformar em mulher e eu preciso de um tratamento hormonal”. Ou vice-versa, uma mulher que diz: “olha, eu nasci no corpo errado, eu sou homem, eu quero virar homem, quero ter um aspecto físico de homem”. Como é esse tratamento hormonal? Quais são as linhas gerais do tratamento?

Dra. Luciana: A base são os hormônios sexuais, né. Então, a gente vai usar basicamente testosterona, toda vez que a gente quiser virilizar alguém, dar características masculinas, e a gente vai usar hormônios feminilizantes, que, aí, a gente tem uma gama um pouquinho maior, pra tentar dar as características femininas a um corpo. A ideia é muito… porque o ser humano, durante o processo de formação, que o senhor até mencionou na introdução, das pessoas intersexuais, né, a formação do corpo humano, ele depende de que hormônios aquele corpo, aquele conjunto de células está expressando ainda dentro da barriga da mãe. Então, a depender do tipo de hormônio que aquele embriãozinho for produzindo, o corpo dele vai caminhar pra um aspecto estético, exterior de genitália masculina ou feminina. Então, a base do tratamento é essa. 

A gente também tem uma opção que é simplesmente fazer bloqueio hormonal, ou seja, eu posso bloquear a puberdade, não deixar os hormônios sexuais serem produzidos pra que aquela pessoa ainda permaneça um pouco mais tempo num corpo de criança, não vá pra um corpo binário, e, ao mesmo tempo, ela vai seguindo num acompanhamento psicológico, num suporte familiar, pra ver se realmente aquilo que ela tá entendendo como ser homem ou ser mulher realmente contempla aquilo que ela sente. Porque, principalmente em criança e adolescente, a ideia do que é ser homem e ser mulher é uma construção social, né, então, é o que os pais falaram, os avós, na escola. Então, ela vai construindo aquela ideia do que é ser homem e o que é ser mulher, baseada nessas informações, e não é raro alguma criança não se sentir contemplada com isso, né. Então, às vezes, é uma menina, um corpo feminino e ela não gosta de rosa, não gosta de brincar de casinha, ela gosta de esporte, ela gosta de correr, ela gosta de subir em árvore e, aí, “como é? mas isso não é coisa de menina”. E, aí, ela pode chegar e verbalizar: “mas eu não sou menina, eu sou um menino”. Mas não porque verdadeiramente ela entende a longo prazo o que é ser um homem, ela simplesmente, naquele momento, se a caixinha de menina é essa e essa caixinha não me contempla, então, eu não devo ser menina, né.  Mas a questão é: eu não consigo dizer numa criança, né, numa idade muito jovem, quem é a pessoa que tá simplesmente confundindo, porque a sociedade tá passando uma imagem que não é verdadeira, porque tem mulheres adultas que não gostam de brincar de casinha, não gostam de rosa, não gostam desse mundo ultrafeminino, né, no extremo, mas são mulheres, elas se identificam como mulheres.

Então, a psicoterapia e o apoio da família, nesse momento, são superimportantes nesse processo da criança entender que “tudo bem se eu não tô dentro da caixinha das meninas, e eu vou poder brincar com o brinquedo que eu quiser, eu vou poder usar as roupas que eu quiser, usar um apelido”, né. Pode não ser um nome binário, assim que tem um marco muito forte, se a família não concordar, mas alguma coisa que permita. E, quando a puberdade começa, que a pessoa vai vendo o corpo modificar, isso, às vezes, causa mais sofrimento. Então, se viu que o adoecimento mental, né, quando depressão, ansiedade, automutilação, tentativas de suicídio em adolescentes é muito grande, quando você não permite que ele faça nenhuma transição social. O que que é a transição social? Ela usar um nome, né, pode ser um apelido, se pra família ficar mais confortável, a gente tem alguns apelidos que servem pra meninos e meninas. E, aí, o que que o endocrinologista pode oferecer nessa fase? Eu posso segurar os hormônios sexuais, eu posso bloquear e deixar essa pessoa ganhando mais tempo, enquanto ela vai fazendo acompanhamento psicoterápico até ela definir. E, aí, o Conselho Federal de Medicina só autoriza que a gente faça alguma intervenção a partir dos 16 anos e, aí, sim, a gente vai começar a fazer uma terapia masculinizante, como eu falei, que é à base da testosterona, ou feminilizante, que é à base do estradiol, que é o nosso hormônio feminino.

 

DV: Então, você diz que, depois dos 16 anos, é permitido, a lei permite, o Conselho Federal de Medicina aprova e, aí, você começa como? Você diz, bom, vamos retardar a puberdade dessa menina ou desse menino, e aí até quando você retarda? Fez 16 anos, pronto, começa o tratamento hormonal mesmo ou tem um tempo variável, aí? 

Dra. Luciana: Pode levar mais tempo. Isso vai depender da pessoa, vai depender dos pais, porque, inclusive, nós não podemos fazer nenhuma intervenção em criança e adolescente sem autorização expressa dos pais e da avaliação da equipe multidisciplinar. Porque nenhum endocrinologista atende pessoas trans sem ter o apoio de um psicólogo, de assistente social, de enfermeiro, né, sempre o atendimento é multi e interdisciplinar. E, então, se aos 16 anos, aquele adolescente, ele já tem a certeza, “não eu quero um corpo feminino” ou “eu quero um corpo masculino”, a gente simplesmente suspende o bloqueio e começa a fazer a hormonização, que a gente chama de hormonização cruzada, porque eu tô dando o inverso do sexo biológico, né.  Ele tem um corpo biológico feminino que eu tô dando testosterona ou é um corpo biológico masculino que eu tô dando estradiol, que eu tô dando os hormônios feminilizantes. Mas, antes disso, não. Antes disso, é só bloqueio, e esse bloqueio de puberdade, ele é muito seguro, doutor Drauzio, é a mesma medicação que a gente faz pra crianças que entraram na puberdade precoce. Então, existem crianças que entram na puberdade com três anos, com quatro anos, né, geralmente, são problemas de saúde, né, que levam a isso. E, daí, a gente usa essa mesma medicação pra segurar a puberdade dessa criança, que começaria aos três anos, pra ela só ter puberdade aos 11 e 12, que seria uma idade mais adequada, que ela vai estar mais madura pra isso. Então, em termos de segurança da medicação, é muito seguro e não tem “ah, mas eu impedi que essa pessoa tivesse puberdade até os 16 anos”. Aí, a gente entra com uma outra condição da medicina, que é a puberdade atrasada. Então, existem crianças que não entram adolescentes, né, que não entram na puberdade até os 15, 16 anos, e a gente já viu, né, ao longo da ciência, que isso não causa nenhum dano à saúde. Essa criança, quando ela consegue entrar na puberdade sozinha ou com intervenção de médicos, né, pra poder a gente fazer hormonização, ela vai ter uma vida normal, vai ter massa óssea adequada, vai ter perfil lipídico, risco cardiovascular, tudo isso fica adequado. Então, essa decisão do Conselho Federal de Medicina, essa resolução de 2019, que autoriza esse bloqueio, ela é respaldada por essas duas condições. Então, é uma medicação segura, que tem quase 50 anos sendo estudada e utilizada em várias crianças que têm puberdade precoce. E também não tem problema você segurar puberdade de alguém até os 16 anos, se for uma coisa que ela deseje, porque mesmo que ela depois descubra “ah, não, eu não sou uma pessoa trans, eu simplesmente não me enquadrava naquela caixinha que tentavam me colocar, eu não sou trans”. Eu simplesmente suspendo, o corpo volta a funcionar e ela vai seguir uma puberdade fisiológica, normal.

 

DV: Você começa a prescrever hormônios femininos pra quem o sexo biológico é masculino e, vice-versa, hormônios masculinos pra quem nasceu classificado como do sexo feminino. Quais são os principais efeitos colaterais e os riscos dessas prescrições?

Dra. Luciana: Isso. A gente tem vários efeitos colaterais possíveis e tem muita preocupação. Realmente, precisa de um acompanhamento médico próximo e realmente isso é uma preocupação nossa enquanto atenção à saúde pública dessa população. Os efeitos colaterais dos homens trans, o mais comum é pouco grave, que é a acne, né. Então, realmente a acne, ela tem um papel importante enquanto efeito colateral, e algumas acnes podem ser até mais graves, precisando usar a isotretinoína, que é essa medicação que a gente usa pra acne das pessoas cis também. Mas a gente tem alguns efeitos colaterais que são um pouco mais preocupantes. Então, eu posso ter um ganho de peso, com depósito de gordura visceral, ou seja, na região da barriga, do abdômen, e esse acúmulo de gordura visceral, né, ele tem um risco metabólico muito grande. Então, isso aumenta o risco de a pessoa ter hipertensão, dela ter colesterol aumentado, dela ter uma resistência à ação da insulina, podendo até chegar a diabetes. Mas, aí, é importante chamar atenção de que, quando você faz um acompanhamento médico próximo, fazendo exames periodicamente, você detecta precocemente se aquela pessoa tá desenvolvendo algum efeito colateral, você faz ajustes nessa medicação, né, na dose ou você faz tratamentos direcionados pra aquele efeito colateral, pra que aquilo não tenha uma repercussão mais grave, né, a mais longo prazo. Um efeito colateral que é preocupante e grave, né, tanto em homens quanto em mulheres trans, é trombose, né, trombose venosa, podendo levar ao tromboembolismo pulmonar, que é uma condição médica muito preocupante. Mas hoje a gente já tem alguns parâmetros que nos ajudam a dar mais segurança. Então, pro homem trans, eu faço um exame de sangue, eu vejo a contagem de hemácias, de glóbulos vermelhos, que ele tem e eu tenho um teto, um limite máximo que os trabalhos científicos já mostraram que, acima daquele nível, né, que é um hematócrito de 50%, aumenta muito o risco de trombose, então, eu vou mantê-lo sempre abaixo de 50%. Pras mulheres trans, a gente não tem uma faixa de hematócrito específica que proteja, até porque é um efeito do próprio estradiol, né.  Não é à toa que mulheres que usam pílula anticoncepcional, existe um risco realmente um pouco aumentado de trombose pra elas também. Mas a gente faz com que aquelas pessoas tenham uma vida mais saudável, parem de fumar, porque o cigarro tá muito associado. A dose que a gente usa, hoje a gente já sabe que não são necessárias doses muito altas. Porque as pessoas têm uma imagem que “se eu não nasci num corpo feminino, eu preciso de muito hormônio feminino pra ficar feminina”. E não é verdade, a dose excessiva, ela só aumenta o risco de efeito colateral. E, da mesma forma, quem nasceu num corpo feminino que quer transicionar pro masculino, eu vou dar a mesma dose que um rapazinho que nasceu sem testículos, por exemplo. Então, a dose é muito segura, muito tateada dentro dessa faixa de normalidade.

 

DV: Quando você inicia o tratamento, procurando feminilizar o corpo ou masculinizá-lo, quanto tempo leva para se perceber as primeiras alterações?

Dra. Luciana: Ah, são rápidas, são rápidas. Nos homens trans, com um mês, eles já começam a ter um crescimento da laringe e, consequentemente, a voz começa a mudar. Então, eles vão passar pela muda vocal igual à de um rapazinho cis, né. Então, tem aquele momento que a voz fica mais grave, mais aguda, mais grave, mais aguda, até a laringe chegar no seu tamanho final e ele aprender a usar aquela laringe como os homens cis usam, né, então, ficar sempre com a voz grave. A acne também começa logo, tem uma mudança. Outro efeito colateral que pode ter é calvície, né, queda de cabelo, que tá relacionada à genética do indivíduo.  Então, eu costumo dizer que, assim, se o pai, o avô, os tios têm calvície, existe uma grande chance daquele homem trans também ficar calvo, e o tratamento é o mesmo que eu vou oferecer pra o irmão dele, digamos, assim, aquele menino cis que é da mesma família e que também pode desenvolver calvície. A calvície, às vezes, o cabelo pode começar a cair logo no início. 

Nas mulheres trans, o efeito colateral que pode aparecer, e eu não tinha mencionado anteriormente, é depressão. Então, eu tinha mencionado que a questão de saúde mental hoje é uma preocupação da população trans, né, porque muitas pessoas trans têm depressão e ansiedade, e não é uma condição da transgeneridade em si, mas pelo fato daquela pessoa viver no mundo que é hostil, sofrer várias violências em casa, na escola, em ambientes que deveriam ser protetores, né, por pessoas que deveriam estar ali pra protegê-la do mundo. Então, realmente é uma vida muito difícil de uma pessoa trans, então, eles realmente têm mais depressão. Na mulher trans, o estradiol aumenta o risco de depressão também, inclusive, as variações do humor, que acontecem numa mulher cis, que tem a tensão pré-menstrual, o que todo mundo já ouviu falar de TPM, são variações dos níveis de hormônios femininos dessas mulheres, né, da mulher cis.  Na mulher trans, eu tô dando esse hormônio, então, eu posso, sim, desenvolver uma pessoa que nunca teve depressão, ela pode ficar com o comportamento depressivo e uma pessoa que já tenha depressão, ela vai precisar de um cuidado maior, acompanhamento próximo com o psiquiatra. Eu só entro com a medicação depois que a depressão estiver controlada, né, pra gente não ter um desfecho negativo, né, pra pessoa não chegar a ideação suicida ou até suicídio. Mas o crescimento de mama, a redução das ereções, a redução do tamanho dos testículos, isso tudo começa a acontecer muito no início, muito no início.

À medida que você entra com outro hormônio, que a gente chama hormônio exógeno, né, exógeno porque ele está vindo de fora, né, a gente tá dando àquela pessoa um hormônio, a glândula dela para de funcionar. Então, se eu tô dando, pra uma pessoa que tem uma estrutura ovariana, testosterona, o corpo vai começar a diminuir a produção desse ovário, o funcionamento desse ovário, porque ele tá usando já um hormônio sexual. No caso das mulheres trans, que têm, então, testículo, na hora que eu tô dando hormônio feminino pra adequar o corpo a essa identidade feminina, o testículo vai parar de funcionar. Então, obviamente, existe uma variação muito grande entre as pessoas. Tem pessoas que, às vezes, uma dosezinha pequena já tem muito efeito, outras você tem que ir aumentando essa dose progressivamente. Mas, assim, mudanças de potência, de ereção, ejaculação, o crescimento da mama, que é igualzinho de uma mocinha, começa a aparecer aquele brotinho mamário, que é aquela pedrinha atrás da aréola, e aí ela vai crescendo pros lados e pra frente, né, e formando a mama até chegar numa mama madura. Então, as primeiras alterações realmente começam no primeiro, segundo mês, e até uns dois, três anos, a depender da característica física, a pessoa ainda pode ter alguma modificação.

 

DV: E, nos dois casos, tanto nas mulheres trans, que nasceram com testículos, como nos homens trans, que nasceram com ovários, o tratamento hormonal impede a fertilidade. 

Dra. Luciana: Essa é uma grande preocupação nossa, né, inclusive, nessa resolução do Conselho Federal de Medicina, eles falam que tem que ter no termo de consentimento esclarecido que aquele tratamento pode levar à infertilidade, porque, no momento que eu vou fazendo com que a gônada, né, e a palavra gônada é um termo que a gente usa pra testículo e ovário, é um termo genérico pra falar de testículo e ovário ao mesmo tempo, então, na hora que eu tô usando um hormônio exógeno, que eu tô tomando o hormônio, o meu testículo e o meu ovário, ele vai diminuindo a sua função e a longo prazo ele não vai recuperar essa função. Então, se lá na frente eu quiser parar de me hormonizar, aquela estrutura pode não voltar a funcionar. E, como a nossa fertilidade tá diretamente ligada à função de ovário e testículo, então, isso vai, sim, levar à infertilidade, principalmente, se for em adolescente, porque na puberdade é quando acontecem as últimas etapas do desenvolvimento das gônadas, né, do testículo e do ovário. Então, se o médico, com o bloqueio da puberdade, não deixou que o corpo desenvolvesse testículo e ovário tivesse as características finais pra poder ovular ou, no caso do testículo, poder produzir espermatozoide, aquela estrutura nunca vai produzir. Então, a chance de infertilidade nesse adolescente é ainda maior. Então, por isso que é tão importante que aquela pessoa tenha muita certeza do que ela quer, do que ela deseja, não é simplesmente uma vontade dos pais, né. Então, aquele indivíduo tem que entender os efeitos pra ele porque, às vezes, um menino de 15 anos não tá pensando em ter filho, né, ele quer simplesmente ter um corpo que se adéque à sua identidade, mas a longo prazo eu tenho noção de que, talvez quando eu tiver 30 anos, eu queira ter um filho e agora eu não posso mais voltar atrás, que é o equivalente ao que acontece com quem usa anabolizante pra academia, né, que, às vezes, a pessoa usou anabolizante de forma ilegal, sem acompanhamento, e, aí, aos 30 anos está querendo ter filho e o testículo não tá funcionando. 

Então, a ideia é mais ou menos a mesma, e isso é importante de a gente deixar claro até porque, já pegando um gancho pra falar de um outro assunto, a gente não tem reprodução assistida gratuita no Brasil e ainda é um tratamento muito caro, muito caro. Não é que a gente não tem o que oferecer pra essa população de reprodução assistida, teria, sim, porque se a gente pensar num adolescente que tem um câncer, que vai fazer uma quimioterapia, uma radioterapia, que vai causar uma lesão daquele ovário ou daquele testículo, eu tenho algumas coisas que eu posso oferecer. Mas, infelizmente, no Brasil, isso hoje está restrito a quem tem uma condição financeira melhor. Então, eu acho que essa é uma política que o governo tem que repensar. A gente precisa entender que tudo bem que o Brasil precisa ter um controle de natalidade, mas isso é pra quem tem 10, 15 filhos ter menos filhos, não quem não tem nenhum não poder ter um ou poder ter dois, né, porque essa falta de assistência de reprodução assistida não é só pra pessoas trans, pessoas cis também não conseguem. A gente tem acho que 12 centros no Brasil inteiro que atendem de forma gratuita ou com um custo mais reduzido, mas eles não atendem nem, sei lá, uma fração muito pequena da população que precisa, né, e, aí, eu estou falando de pessoas cis e pessoas trans. E, lembrando, eu falo tanto de pessoas cis, né, o que que eu quero dizer com pessoas cis? Pessoa cis ou cisgênero é aquela pessoa que se identifica com o seu corpo biológico, né, com o sexo biológico que foi determinado ao nascimento.

 

DV: Luciana, alguma coisa impediria você de pegar uma pessoa que nasceu do sexo masculino e tá interessado em mudar o corpo, de colher os espermatozoides, manter esses espermatozoides num banco, que é um procedimento rotineiro, ou colher os óvulos e manter esses óvulos por um longo tempo pra prevenir justamente possíveis arrependimentos?

Dra. Luciana: Perfeito. Não, essa é a nossa vontade. A questão é que hoje a gente não tem como oferecer isso no serviço público, né, mas no serviço privado tem, sim. Então, se pra aquele adolescente é importante ou pra aquela família é importante, a gente deixa a criança entrar, aquele adolescente passar pela sua puberdade, deixar o testículo sofrer sua maturação final, o ovário também sofrer a maturação final, a gente coleta esses gametas, né, então, o óvulo e o espermatozoide, guarda, congela e, aí, faz a transição, porque no futuro, se aquela pessoa se arrepender, ela pode utilizar. O grande desafio é você não ter isso pra oferecer de forma gratuita ou com baixo custo, né. Mas certamente a gente tem alternativas, sim, a gente tem como oferecer. E são procedimentos simples, que a gente pode fazer, que, dentro das técnicas de reprodução assistida que existem, são técnicas simples, não é nada muito difícil de ser feito, a questão é só no investimento de política pública, eu acho.

 

DV: Você sabe que eu tive, assim, uma experiência mais ou menos longa com as travestis presas, nesse trabalho que eu faço na cadeia há muitos anos. E elas ficam desesperadas porque o corpo vai perdendo a condição feminina, os seios vão diminuindo de tamanho e elas se sentem muito tristes com essa alteração. E, aí, você tem que achar um jeito de dar hormônio porque senão o corpo perde a condição feminina outra vez.  Esses tratamentos têm que ser feitos a vida inteira?

Dra. Luciana: Sim, toda vez que a gente começa, não é que você não possa se arrepender e parar o tratamento, né, pode, sim. Assim, os arrependimentos são bem raros, né, principalmente, quando você tem toda uma avaliação multi e interdisciplinar antes. Então, muito raramente acontece. Eu já tive uma pessoa que pediu pra interromper porque a mãe não tava ficando satisfeita, tava ficando muito deprimida de ver o corpo dela se modificando, né, de ver aquela menina trans, que já era adulta, né, a gente chama menina, mas era uma pessoa de 20 anos, mas a mãe não tava feliz e, aí, ela resolveu parar. Mas a longo prazo, se aquela pessoa precisar suspender aquele hormônio, a gente vai ter que ver se é o ovário ou testículo, né. Então, no caso do exemplo que o senhor deu, das mulheres trans e travestis, né, nas penitenciárias, então, o testículo delas pode voltar a funcionar e, aí, elas vão voltar a produzir testosterona e, aí, consequentemente o corpo realmente vai transicionando de volta, não perde completamente, assim, a mama não desaparece completamente, mas ela reduz muito o tamanho, a distribuição de gordura que dá as curvas ao corpo, tudo isso vai realmente desaparecendo. Então, a única forma de manter é realmente manter esses hormônios pras características femininas permanecerem e a testosterona ficar baixa, né, não voltar a subir. Mas existe uma condição que é, às vezes, o dano a esse testículo é tão grande, a pessoa usou já, sei lá, 15 anos, 20 anos de hormônio, o testículo, quando ela para de usar hormônio, ele não produz nada, ele não volta a funcionar pra nada e, aí, essa pessoa, ela se torna uma pessoa hipogonádica, que é um como se fosse uma menopausa precoce. Então, é uma pessoa que tem 30 anos e tá sem produzir nenhum hormônio sexual. E eu sei que, no geral, as pessoas imaginam que hormônio sexual é só pra dar características sexuais, né, então, mama, pelo, curvas, mas, na verdade, os hormônios sexuais, eles fazem muito mais coisas. Eles são importantes pra densidade mineral dos ossos, né, por isso, que a mulher na menopausa pode ter osteoporose. Então, agora imagina uma pessoa de 30 anos que vai viver mais de 30, 40 anos sem nenhum hormônio sexual. Então, a gente começa a ter osteoporose importante, com o risco de fratura muito grande, a gente tem alterações de perfil lipídico, a gente tem alterações de outras características e, aí, a gente tá falando de homens trans ou mulheres trans, de outras características que não são só sexuais. Então, é importante sempre ter hormônio sexual nas pessoas jovens, né, jovens menores de 50 anos, porque, a partir de 50, estaria dentro do que é previsto de menopausa fisiológica, né, menopausa que as mulheres cis passam também. Então, a gente poderia não repor, mas tem que ver se o testículo não vai voltar a funcionar porque, se suspender e o testículo voltar a funcionar, realmente isso que o senhor descreve é regra, o corpo vai perdendo as características femininas e vai ganhando de volta as características masculinas, a virilização.

 

DV: Sabe, Luciana, nós, médicos, não temos nenhum preparo nessa área, não aprendemos isso nas faculdades, é um mundo muito estranho e muito sofisticado, esse da manipulação hormonal. Você acha que, nos postos de saúde e nas unidades básicas de saúde, as pessoas têm acesso a especialistas nessa área?

Dra. Luciana: Sim e não, depende do estado. Em São Paulo, sim, foi feito um treinamento, assim, excelente e, nas unidades de programas de saúde da família, São Paulo, capital, os médicos têm treinamento pra fazer essa hormonização. Eu sei que, em Florianópolis, inclusive, o ambulatório transexualizador de Florianópolis é numa unidade de saúde da família, né, são médicos de saúde da família que acompanham, não são endocrinologistas. Mas, em linhas gerais, eu diria que, no Brasil, as unidades básicas de saúde ainda não têm essa condição, né. Isso que o senhor chama a atenção de que os médicos, e não só médicos, não, os profissionais de saúde, os profissionais de áreas de humanas também, não têm preparo pra lidar ainda com população trans porque foi negligenciado durante muitos anos, né. Então, a gente tem tentado melhorar isso, né, eu aqui, no meu mundinho da Universidade Federal da Bahia, tenho tentado, assim, ainda mais hoje em dia com a oportunidade de você dar aulas online, então, eu tenho dado aulas em várias faculdades do Brasil e eu sei que vários colegas que trabalham com transgênero também fazem a mesma coisa, pra tentar capacitar essa nova geração que tá formando. Mas a gente sabe que, apesar de estar na diretriz do Ministério da Educação que todo curso de medicina, a gente tem que contemplar as minorias, e, aí, dentro de minorias, estão os aldeados, né, que são os indígenas e quilombolas, e a população LGBT, a gente sabe que, no geral, não é isso que acontece nas faculdades ou, às vezes, acontece muito pautado no preconceito, né. Então, infecção sexualmente transmissível, como se só isso acometesse uma pessoa trans ou uma pessoa LGBT, e se fala muito pouco dessas outras necessidades de saúde que a população tem. Então, eu tenho a esperança de que a nova geração, e essa geração mais nova, eles têm uma cabeça mais aberta, eles entendem essas definições de uma forma muito melhor do que a minha geração e as gerações mais velhas que eu, e eles têm me procurado e eles têm procurado outros médicos justamente pra aprender. Porque, às vezes, os professores da sua faculdade, é, no interior de Goiás, no interior de São Paulo, no interior do Maranhão, às vezes, as pessoas não têm professores que falam sobre isso, mas eles vão, convidam pra gente fazer essa complementação. E não é tão difícil. A hormonização cruzada, né, o tratamento que a gente pode oferecer pra população trans, se você faz uma capacitação dos médicos no posto, eles têm toda a condição de fazer esse acompanhamento.

Mas, aí, entra um segundo problema, que eu gostei quando o senhor me perguntou isso, que é: os hormônios sexuais não estão na lista de medicação pra distribuição gratuita do SUS. Eu não sei por que razão, eu não sei por que que foi feito dessa forma, mas não tá na lista, não existe testosterona e não existe estradiol na lista, o que tem são os anticoncepcionais, e os anticoncepcionais, eles não têm estradiol puro ou valerato de estradiol. Os anticoncepcionais que a gente tem nos postos de saúde pra distribuir são à base de etinil estradiol, e esse etinil estradiol é uma medicação que, pra pessoas trans, aumenta muito o risco de trombose. Já tem vários trabalhos mostrando que a gente não deve usar de jeito algum. Então, hoje, apesar de eu poder capacitar o médico do posto de saúde, né, tanto da unidade básica de saúde quanto dos programas de saúde da família, eles não têm a medicação pra oferecer porque essa medicação não tem como ser distribuída gratuitamente. O que vai acontecer é a política interna de cada estado. Então, alguns estados, eles entenderam essa necessidade, essa demanda ou alguns municípios. Aqui na Bahia, Salvador tá nesse movimento de fornecer a medicação, a gente ainda não começou a fornecer, mas a Secretaria de Saúde do município já vem trabalhando pra compra disso, pra gente conseguir distribuir, porque a capacitação dos profissionais, eu já comecei a fazer. Mas isso não é a realidade pro resto do Brasil. Então, a gente vai precisar modificar também a lista de medicações do SUS pra contemplar hormônios sexuais, e isso não é nem uma questão de transfobia, dizer assim: “ah, não, não tem hormônios sexuais pra pessoas trans”. Não, não tem pra ninguém. Então, aquele menino que nasceu sem testículo ou nasceu sem produzir um hormônio que estimule seu testículo a funcionar, ele não tem testosterona pra pegar gratuitamente, ele tem que comprar essa testosterona. Aquela menina que tem um ovário que não funciona ou não tem ovário, ela não tem como pegar gratuitamente hormônios sexuais pra o início da puberdade. Depois, quando a gente já fez a puberdade, aí, ela até pode usar anticoncepcional porque pras meninas cis o risco é bem menor, mas pras pessoas trans, não dá pra usar o anticoncepcional que tem no posto. Então, a gente tem muita coisa pra trabalhar ainda pra melhorar a atenção à saúde dessa população.

 

DV: Pra gente encerrar, Luciana, fala um pouquinho dos transtornos psiquiátricos que você vê nessas populações, nos seus familiares?

Dra. Luciana: É, sem dúvida, depressão e ansiedade, eles estão no topo da lista em todos os trabalhos. Tem trabalhos mostrando, assim, às vezes, 40% de pessoas com depressão, inclusive, algumas pessoas só se descobrem trans, às vezes, depois de uma tentativa de suicídio porque, como não era uma coisa falada, é muito interessante ver esse movimento atual, que as pessoas estão querendo aprender mais, entender mais sobre isso, mas durante muito tempo nem se falava sobre isso. Então, a pessoa, às vezes, numa cidadezinha pequena que não tem acesso à internet, nem sabia que existia. Sentia vazios, não se sentia contemplada e tentava suicídio, e, aí, com a psicoterapia, por conta da tentativa de suicídio, ela vai entender o que é aquilo que ela tá passando, o que é aquilo que ela tá vivendo. Então, sem dúvida, depressão e ansiedade são os mais preocupantes. Existem outras doenças psiquiátricas, existem. Algumas psicoses existem. Existem pessoas com o transtorno de personalidade borderline. Mas o percentual não é aumentado em relação à população cisgênero, não, ou seja, pessoas que não são trans, o percentual é muito semelhante. E a avaliação, toda vez que a gente começa a hormonização ou que a pessoa deseja começar a hormonização, tá previsto na portaria do Ministério da Saúde, tá recomendado na resolução do Conselho Federal de Medicina que haja uma avaliação por um profissional de saúde mental. E muita gente discute: “ah, mas isso é patologização”. O que que é patologização? É dizer que transgeneridade é doença, e não é isso, não é isso. Eu entendo isso de uma outra forma. Eu entendo que, obviamente, o psicólogo não tem como dizer que alguém é trans, isso é uma autodenominação, é a pessoa que se diz. Mas ela consegue, o psicólogo ou a psicóloga vai conseguir avaliar aquele ser humano e ver como é que ele lida com frustrações, com os transtornos, a ansiedade de querer que o corpo transacione mais rapidamente, pra não tomar doses excessivas num desespero de transicionar mais rápido, se tem um comportamento agressivo, se tem muita irritabilidade, que a testosterona pode piorar isso, se tem um comportamento depressivo e também a questão de separar de algumas doenças psiquiátricas, alguns distúrbios psiquiátricos. Por quê? Porque todo mundo já ouviu falar de transtorno de personalidade. Então, se eu chegar aqui e disser: “não, eu não sou Luciana, na verdade, eu sou Jesus Cristo”, todo mundo vai dizer: “não, você não é Jesus Cristo”, e é claramente uma questão psiquiátrica, né, e a gente vai encaminhar pra um psiquiatra. Mas, se eu dissesse que, em vez de ser Luciana, eu sou João, isso automaticamente é transgeneridade ou pode ser dentro desse mesmo espectro, dessa condição psiquiátrica? Então, é sempre bom ter um profissional de saúde mental que olhe aquela pessoa, que faça alguns testes de avaliação, até porque nem todo médico é preparado pra isso, né. 

Então, essa avaliação psicológica prévia vai nos dar esse lastro e, de preferência, essa pessoa, ela deve seguir em acompanhamento psicológico durante todo o tratamento, porque o corpo vai se modificando, ela vai ter que aprender a usar esse novo corpo, muitas vezes, a pessoa fica frustrada, porque ela acha que, na hora que ela fizer a transição, o mundo vai tratá-la diferente. E a gente vê que a transfobia na nossa sociedade é uma coisa tão forte que, por mais bonita que seja uma mulher trans, por mais passável, que é o termo que eles usam, né – passabilidade, que é você olhar pra aquela pessoa e ter uma leitura do gênero dela, se ela é feminina ou se ela é masculina –, por mais passável que seja aquela mulher trans, as pessoas vão ficar olhando: “ah, mas ela é muito alta”, “olha o tamanho do pé”, “será que ela tem pomo de Adão?”. Então, isso eu não vou conseguir simplesmente com a hormonização e modificação do meu corpo interferir no outro, no preconceito do outro, né. Então, esse acompanhamento conjunto dos médicos com os profissionais de saúde mental, principalmente psicólogos e assistente social, dos desafios, né, de pessoas que não conseguem emprego, muita gente passa fome realmente, né, fica desabrigada, as famílias colocam pra fora, acabam trabalhando com prostituição porque não têm como se sustentar de uma outra forma. Então, são muitos desafios que essas pessoas enfrentam. Então, é por isso que, assim, a longo prazo esse acompanhamento conjunto multi e interdisciplinar vai ser sempre muito importante.

 

DV: Luciana, muito obrigado por todos esses esclarecimentos, viu.

Dra. Luciana: Não, pra mim foi um prazer pela oportunidade de falar sobre um tema que pra mim é tão importante e tão caro e saber que ele vai ter uma divulgação muito maior por conta de vir com a sua chancela, né, com o fato do senhor estar tentando tornar esse conhecimento acessível pra toda essa população brasileira que lhe acompanha e que tem interesse em aprender, né, em tornar nossa sociedade um lugar melhor para todos e todas.

 

E, especialmente, com o brilho da sua explicação, acho que foi muito útil para todos nós, né.

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Muito obrigado, Luciana. Muito obrigado a todos pela atenção.

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