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Sexualidade

Em que pé estamos no combate à aids?

Em meio à pandemia de covid-19, pesquisadores correm para encontrar soluções para outra epidemia: a do HIV.
Publicado em 21/12/2021
Revisado em 21/12/2021

Em meio à pandemia de covid-19, pesquisadores correm para encontrar soluções para outra epidemia: a do HIV.

 

Nos anos 1990, a aids passou de uma “sentença de morte” para uma doença controlável. Assim que surgiram os primeiros medicamentos para o HIV, o Brasil foi pioneiro em adotar políticas de tratamento gratuito e acessível a toda a população.

Mas o tempo expôs outros problemas. Atualmente, ainda que os números de infecção pelo HIV no Brasil tenham diminuído, eles continuam altos. Segundo Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, só em 2020, foram mais de 32 mil diagnósticos. A população mais afetada são jovens entre 25 e 39 anos, especialmente os negros. Desde 2010, enquanto a taxa de casos diminui entre pessoas brancas, cresce a referente à população negra. No último ano, 58,3% e 60% dos diagnósticos foram entre homens e mulheres negros, respectivamente.

No mundo todo, tivemos cerca de 1,5 milhão de novos casos, sendo 39% deles na África subsaariana, de acordo com Programa das Nações Unidas para Aids (Unaids). Hoje, o objetivo da comunidade científica é encontrar melhores métodos de prevenção e, quem sabe, a tão sonhada cura para a doença.

Nesse sentido, a dra. Keilla Freitas, infectologista do Hospital Sírio-Libanês e diretora da clínica Regenerati, conta quais são as iniciativas mais promissoras.

 

Como é o enfrentamento ao HIV/aids atualmente?

O HIV, vírus da imunodeficiência humana, interfere no funcionamento do sistema imunológico, deixando o organismo sujeito a doenças oportunistas, como pneumonia e tuberculose. Quando isso acontece, a pessoa desenvolve a aids, síndrome da deficiência imunológica adquirida.

A transmissão do HIV se dá através do contato sexual desprotegido, transfusão de sangue contaminado, compartilhamento de instrumentos que furam ou cortam não esterilizados e até da mãe infectada para o filho durante a gravidez, parto ou amamentação. 

Por isso, a principal forma de prevenção é o uso do preservativo durante toda a relação, seja no sexo oral, vaginal ou anal. Mas, atualmente, existem outras estratégias que, segundo a dra. Keilla, vêm para se somar ao uso da camisinha:

 

PEP (profilaxia pós-exposição)

A profilaxia pós-exposição é uma medida de urgência que consiste em três medicamentos antirretrovirais, isto é, anti-HIV, que devem ser tomados uma vez ao dia pelos 28 dias seguintes ao contato com o vírus, seguindo acompanhamento médico. São eles: tenofovir, lamivudina e dolutegravir. Todos gratuitamente disponíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

“Se a pessoa se expôs a qualquer risco de infecção por HIV, seja sexual ou não, ela pode iniciar o uso da PEP em até 72 horas. É como se fosse uma pílula do dia seguinte, só que por mais tempo. A eficácia é altíssima”, explica a infectologista. 

Porém, é importante lembrar que a PEP deve ser utilizada apenas em casos emergenciais, sendo a PrEP a opção mais indicada para a prevenção.

Veja também: DrauzioCast #156 | Tratamento de prevenção e de pós-exposição ao HIV

 

PrEP (profilaxia pré-exposição)

A PrEP, ou profilaxia pré-exposição, consiste no uso programado desses medicamentos antes de um possível contato com o vírus. “O esquema de PrEP utilizado no Brasil é o de uso contínuo. Então, a pessoa deve começar a tomá-la 7 dias antes de ter uma relação anal ou 20 dias antes de uma relação vaginal”, afirma dra. Keilla.

Ao redor do mundo, já existem outros esquemas sendo utilizados, como a PrEP sob demanda, que seria indicada em até 2 horas antes e depois de 24 e 48 horas após a exposição.

Os medicamentos contidos nessa profilaxia também estão disponíveis no SUS, mas são recomendados apenas às pessoas sob maior risco, como homens que fazem sexo com homens, pessoas trans e profissionais do sexo.

Existe ainda um estudo chamado HPTN 083 que prevê o desenvolvimento da PrEP injetável. O método, ainda em fase de teste, promete uma injeção do medicamento cabotegravir a cada dois meses, substituindo a ingestão oral e diária do comprimido.

 

Tratamento antirretroviral

Inicialmente, o tratamento da aids era baseado apenas em inibidores de transcriptase reversa, medicamentos que pouco impactavam na mortalidade dos pacientes. Mais tarde, surgiram os inibidores de protease que, associados ao antirretroviral já existente, mudaram os rumos da epidemia.

“Hoje, o Brasil é vanguarda no acesso ao tratamento. Nós temos pelo menos um representante de cada classe de medicamento antirretroviral existente no mundo, o que ajuda a avaliar a situação individual de cada paciente”, afirma dra. Keilla. 

Em novembro deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso do Dovato, medicamento que combina o dolutegravir e a lamivudina em um só comprimido. “Ambos já eram utilizados no esquema de primeira linha, mas em comprimidos separados”, lembra a infectologista. 

No entanto, a meta da terapia com antirretrovirais é tornar a carga viral indetectável, o que não significa que a pessoa esteja livre do HIV, e sim, que parou de transmiti-lo.

Veja também: Os avanços e o futuro do programa de HIV/Aids no Brasil | Coluna

 

A cura para o HIV é possível?

O problema do tratamento atual é que as substâncias utilizadas atuam apenas nos vírus circulantes no sangue, visto que não conseguem alcançar aqueles que estão em estado de latência – isto é, “dormindo” dentro das células.

“De forma gradual, as células em latência com HIV ‘acordam’ e vão para a corrente sanguínea. E é aí que os antirretrovirais atuam. Se o paciente deixar de tomar o medicamento, o vírus não encontrará resistência ao cair no sangue e a infecção seguirá o seu curso”, detalha dra. Keilla. 

Em algumas regiões do organismo, como o cérebro, essas células formam os chamados “reservatórios” ou “santuários”, locais aos quais os medicamentos também não conseguem penetrar.

Por isso, apesar das estratégias terapêuticas estarem cada vez mais modernizadas, a busca pela cura da aids continua sendo imprescindível. Nesse sentido, a dra. Keilla explica que existem dois tipos:

 

Cura esterilizante

A cura esterilizante é aquela que acaba com qualquer vestígio de vírus no corpo. Foi o caso, por exemplo, do chamado “paciente de Berlim”. Timothy Ray Brown, considerado uma das pouquíssimas pessoas curadas da infecção por HIV, foi diagnosticado com leucemia mieloide aguda e recebeu, em 2007, um transplante de medula óssea de um doador com uma mutação genética que garantiria resistência contra o vírus.

“Foi uma situação muito complexa. O paciente de Berlim não só achou um doador compatível, como esse doador tinha a mutação no gene CR5. Depois do transplante, havia ainda o risco de complicações infecciosas e rejeição da medula”, ressalta a infectologista.

Por todas as dificuldades, esse tipo de transplante funciona mais como uma forma de estabelecer novos caminhos: a cura esterilizante é possível, mas não como estratégia de tratamento.

Veja também: Transplante de medula óssea | Carmen Vergueiro

 

Cura funcional

A cura funcional, por sua vez, busca manter a carga viral indetectável mesmo sem tomar medicações diárias, como no caso de um câncer em remissão.

O destaque é o estudo conduzido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que une estratégias de “super tratamento”, usando mais antirretrovirais do que o normal, ao mesmo tempo em que desperta as células com o vírus em fase de latência. “É uma forma de estimular o próprio sistema imune a combater o HIV, como uma vacina”, exemplifica a dra. Keilla.

A meta dos coordenadores do estudo é iniciar a fase de testes clínicos ainda em 2021. A infectologista, porém, alerta: “A remissão sustentada não significa cura, porque o vírus pode, um dia, voltar a ser detectado no sangue. O que vai nos dar essa resposta é o tempo”.

 

E se existisse uma vacina contra o HIV?

Durante a pandemia, a comunidade científica desenvolveu, em menos de um ano, várias vacinas contra a covid-19. No caso do HIV, alguns obstáculos impedem a mesma agilidade.

“Esse vírus tem uma alta velocidade de mutação. É como se fossem as variantes da covid. Quando uma vacina é produzida, já surgiram novas cepas, então ela perde efetividade”, diz dra. Keilla.

É aí que entra o Mosaico, estudo internacional que investiga um regime de vacina contra o HIV. Já na fase 3, a pesquisa inova a forma com que a ciência vinha lidando com as rápidas mutações.

“Uma vacina precisa estimular o sistema imune a produzir anticorpos específicos. A criação de anticorpos pode ser pensada como se fosse um jogo de sílabas. Anticorpos ‘BA’ vão achar proteínas ‘BA’ no vírus, se unir e impedir que ele entre nas células. Mas se o vírus sofre uma mutação e muda para a sílaba ‘BE’, ele não vai se unir ao anticorpo ‘BA’ e a proteção não vai funcionar. No Mosaico, é como se, em vez de sílabas, fosse criada uma sopa de letrinhas. Independentemente se o vírus tiver uma sílaba ‘BA’ ou uma sílaba ‘BE’, o organismo será capaz de juntar as letras e formar a sílaba correspondente”, ilustra a dra. Keilla.

O Mosaico vem sendo desenvolvido em oito países, incluindo o Brasil, e está focado em homens que fazem sexo com homens e pessoas trans. Há ainda o Imbokodo, outro estudo com a mesma vacina, mas em regime diferente de aplicação. Realizado no Sul da África, ele ainda está na fase 2 e abrange mulheres heterossexuais. “Em termos de população, eles se complementam”, afirma a infectologista.

Veja também: Nova onda do HIV | Coluna #106

 

O Brasil como referência, apesar dos obstáculos

Só no estudo Mosaico, fazem parte oito centros de pesquisa brasileiros distribuídos entre as regiões Norte, Sul e Sudeste. Entre eles, está o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), que é o único representante do Brasil em outra iniciativa também em nível mundial, que busca bloquear e “trancar” o HIV dentro das células a partir da engenharia genética. 

Com diferentes estudos em andamento, o Brasil continua sendo referência no enfrentamento à aids. Para a dra. Keilla, isso só é possível devido à estrutura do SUS e à participação do país em estudos multicêntricos ao redor do mundo, já que ainda há enormes barreiras no incentivo à pesquisa científica nacional.

“Viver de pesquisa no Brasil é extremamente difícil, tanto do ponto de vista de reconhecimento quanto do ponto de vista econômico. É tudo com base em muito esforço e tradição. Em última instância, as conquistas recentes são fruto da dedicação individual de grupos que se alinham com outros pesquisadores dentro e fora do país”, pontua.

Veja também: Panorama da aids no Brasil | Esper Kallás

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