Conduta para lidar com pessoas intersexo no nascimento divide especialistas

Textura com peças de dominó formados por símbolos de masculino e feminino.

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Publicado em: 25 de junho de 2019

Revisado em: 13 de agosto de 2021

Não existem protocolos que estabeleçam quando devem ser realizadas cirurgias de adequação de pessoas intersexo (que nascem com genitália ambígua).

 

Elisberto Campos gosta de deixar em destaque, na parede de sua barbearia em São Paulo, uma foto do filho. Jacob nasceu com uma má-formação congênita grave que ocasionou problemas sérios em órgãos vitais como cérebro e coração. Precisou de acompanhamento médico constante, mas ainda assim conseguiu passar um breve período em casa com os pais. Faleceu em maio de 2018, com 1 ano e sete meses, por conta de complicações cardíacas.

Além dos problemas cardiovasculares, as alterações genéticas fizeram com que ele nascesse com ambiguidade sexual. Ele tinha pênis, mas não possuía testículos nem próstata. Jacob era um indivíduo com intersexualidade, ou seja, suas características reprodutivas ou sexuais não se encaixavam nas definições típicas de masculino ou feminino.

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Por conta dessa situação, ele ficou dois meses sem a declaração de nascido vivo e não pôde ser registrado em cartório, já que o item “sexo” não havia sido marcado pelos médicos. Ele só foi registrado quando os resultados de seus exames de cromossomos sexuais ficaram prontos. Como ele era XY, foi definido como sendo do sexo masculino. Só então Jacob passou a “existir” para os serviços de saúde de que tanto precisava.

Nascer com algum tipo de ambiguidade sexual não é tão incomum quanto se imagina. Estima-se que 1 em cada 2.500 nascidos vivos no Brasil tenha essa condição. Há muito mais indivíduos com intersexualidade que albinos, por exemplo. O termo “hermafroditismo” já foi usado para designar a ocorrência dessa variação, mas atualmente é questionado no meio médico e por ativistas por seu cunho pejorativo.

 

Causas da intersexualidade

 

Explicar por que essa condição ocorre não é das tarefas mais fáceis. Para isso, temos que voltar ao início do terceiro mês de gestação, quando os órgãos reprodutores começam a se diferenciar no feto.

A dra. Berenice Bilharinho de Mendonça, endocrinologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), explica que, do ponto de vista da genitália, o que nos faz ter genitais masculinos ou femininos é o tipo de gônada (glândulas sexuais) que desenvolvemos, pois a partir daí haverá um tipo específico de produção hormonal. “Toda vez que você tem uma produção de hormônio masculino e, nas células, um receptor de hormônio masculino funcionante, haverá um quadro de virilização, com desenvolvimento de uma genitália masculina, com pênis, uretra, bolsa escrotal”, explica.

No caso das meninas, não há hormônio masculino. A presença dos ovários, que são as gônadas femininas, levam ao desenvolvimento de uma genitália feminina.  “No entanto, alterações genéticas podem impedir a produção do hormônio masculino em fetos XY (homens) ou excesso de hormônios masculinos em fetos XX (mulheres) e a genitália fica incompletamente formada nos XY ou virilizada nos fetos XX”.

Nem sempre essas alterações são fáceis de serem reconhecidas. Cerca de 1 em cada 16 mil mulheres tem cariótipo 46 XY. O que isso quer dizer? Do ponto de vista biológico, essas mulheres deveriam se desenvolver como homens, por conta do cromossomo Y. Entretanto, do ponto de vista da aparência elas têm todas as características físicas de mulheres. Nesses casos, ou o testículo não se desenvolveu e não produziu hormônio, ou não existe um receptor de hormônios masculinos.

Essas mulheres XY vão levar anos para saber que possuem alguma alteração genética. “Essa mulher só vai descobrir que há algo diferente quando ela não menstruar. Elas podem até desenvolver mamas. A testosterona produzida pelos testículos é convertida em estrógeno, e como ela não tem receptor para testosterona, mas sim para estrógeno, o corpo é totalmente feminino.”, explica a dra. Berenice.

Às vezes, é possível perceber alguma alteração dos genitais pelos ultrassons durante a gestação, mas na maioria dos casos, a tarefa de responder aos pais se é menino ou menina não é tão simples. Nesses casos, o diagnóstico é elaborado por um grupo de especialistas que analisam o histórico familiar da gestante, dosagem hormonal do bebê, a constituição dos cromossomos e genes associados ao desenvolvimento sexual.

 

Cirurgia precoce de adequação de pessoas intersexo

 

É depois do nascimento do indivíduo intersexo que se apresenta uma das questões mais complexas, tanto para os pais quanto para a equipe médica. O Conselho Federal de Medicina (CFM) permite que um bebê que nasça com a genitália ambígua passe pelo procedimento de adequação cirúrgica a partir dos 2 anos de idade.

Entre médicos, há profissionais que são a favor da intervenção precoce, pois acreditam que a criança irá sofrer discriminação por conta da variação genital. Na área desde 1975, a dra. Berenice é uma delas. Ela comanda a equipe do Hospital das Clínicas de São Paulo e tem uma experiência clínica de aproximadamente 500 casos que foram acompanhados até a idade adulta. “99% estão satisfeitos. Mas é claro que há muitos casos – que são até noticiados na mídia – de pessoas que estão insatisfeitas. Mas são relatos de indivíduos que foram tratados de forma inadequada há muitos anos, quando o conhecimento sobre o desenvolvimento sexual era escasso e as técnicas cirúrgicas pouco conhecidas.”

Segundo a médica, mais ou menos até meados da década de 1970 decisões eram tomadas sem levar em conta a análise genética. Quando, por exemplo, a genitália do bebê tinha aspectos mais femininos, fazia-se a reconstrução genital – tecnicamente mais fácil – a partir desse dado, independentemente do teste de cariótipo. “Antes realmente se fazia no escuro. Atualmente a gente faz diagnóstico genético. Sabendo a etiologia, o que causa a ambiguidade, eu sei a evolução e consigo orientar melhor os pais”, afirma a especialista.

Recebemos pacientes que chegam com questões bem específicas: se devem ou não fazer outra cirurgia, dúvidas em relação à identidade de gênero, se são trans ou não. Muitas vezes há necessidade de resgatar a própria história, porque antigamente o protocolo médico era não revelar ao paciente o que tinha acontecido com ele.

De fato, estamos tão condicionados ao padrão binário e a falta de informação sobre o assunto é tão disseminada, que para muitos qualquer coisa que saia da definição padrão homem/mulher não é vista com bons olhos, o que pode se tornar fonte de problemas para a criança ao longo de sua infância. Cientes dessa possibilidade, a equipe clínica se sente na responsabilidade de dar uma resposta reparadora o quanto antes, no intuito de “proteger” a criança de uma exposição nociva e aplacar as aflições dos pais, para quem muitas vezes essa era uma condição completamente desconhecida.

Mas outra linha acredita que nem sempre a intervenção precoce irá trazer um bom prognóstico, e defende que a cirurgia não deve ser feita tão cedo se o motivo for puramente estético. Se o bebê nasceu com a genitália ambígua, mas essa situação não vai prejudicá-lo funcionalmente, ou seja, não há nenhuma disfunção urológica (a criança vai conseguir urinar normalmente, por exemplo), não existe a necessidade de se realizar uma cirurgia delicada tão precocemente.

Outra questão que envolve as cirurgias de adequação de pacientes intersexo são os problemas que podem ocorrer na idade adulta, como dor durante o ato sexual, falta de sensibilidade, dificuldade de regeneração dos nervos cortados, além de cicatrizes difíceis de serem removidas.

Organizações não governamentais reconhecidas internacionalmente, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, possuem relatórios de países que estão mais avançados nessa questão, como Dinamarca, Alemanha e alguns estados dos Estados Unidos. Nos dois relatórios são apresentadas várias recomendações que apontam para o respeito à autonomia e à integridade corporal dos pacientes.

Shay Bittencourt, 37 anos, nasceu em condição intersexo e passou por várias cirurgias de adequação das genitálias aos oito meses de idade. Tirou uma parte do clitóris (conduta não praticada atualmente) e teve os grandes lábios reconstruídos. Sua mãe só dizia que ela havia nascido diferente, mas não chegava a explicar o que era, de fato, esse “diferente”. Shay não soube da sua condição até depois dos 35 anos.

Ela explica que desde criança não se identificava nem com o gênero feminino nem com o masculino, e tinha consciência de que alguma coisa “não batia”, só não sabia ao certo como nomear. Além disso, as marcas cirúrgicas indicavam que algo havia sido feito.

“Hoje eu me identifico como uma pessoa não binária. Quando me perguntam sobre essa questão, respondo que eu gostaria de ter tido uma escolha, sim, com certeza. Era meu corpo e tiraram um pedaço de mim. Mas eu não culpo minha mãe, era o que ela tinha na época”, afirma.

 

Posicionamento contra a cirurgia precoce

 

Dr. Magnus Dias da Silva, médico endocrinologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), não gosta do primeiro “D” da sigla DDS. “Distúrbio da diferenciação sexual” é como se define na Medicina a condição de bebês que nascem com ambiguidade genital. Em vez de “distúrbio”, o especialista prefere utilizar termos como “diferenças” ou “variações” para não patologizar – ou seja, não tratar como doença – o quadro.

Ele acredita que as cirurgias reparadoras, quando realizadas para adequar a criança dentro de um gênero, padronizando-a, podem até trazer alívio para os pais a princípio, mas a decisão não estará livre de questionamentos no futuro. Dificilmente será somente uma cirurgia que resolverá o caso. Poderão ocorrer até três ou quatro, para reparar problemas que até então não existiam, como fibrose (formação de tecido cicatricial). “Eu começo a dar importância à questão para além da sua funcionalidade”, afirma.

Ainda assim, faz uma ressalva importante. “Entre as diferenças do desenvolvimento do sexo, há uma parcela de pacientes com condição clínica em que precisamos atuar prontamente. Por exemplo, uma menina que nasceu sem ovário por uma condição cromossômica, que é a síndrome de Turner. Essa população tem a necessidade de uma avaliação médica, porque há problemas de cardiopatias, hipertensão grave, problemas de audição. Então, ela precisa ser assistida.”

A diferença, nesse caso, é que o que acabam sendo tratadas são as comorbidades associadas, e não a variação genital em si. A hiperplasia adrenal congênita, por exemplo, é um problema muito comum em casos como esses. O indivíduo não retém sódio nem água por uma deficiência enzimática e começa a desidratar. Sem tratamento, o recém-nascido corre sério risco de morte ainda nos primeiros dias de vida. “Precisamos intervir, mas não na genitália. É um problema hidroeletrolítico, não estético”, destaca Dias da Silva.

 

Pacientes intersexo mais velhos

 

Não quer dizer, entretanto, que quando se opta por não realizar a cirurgia precocemente, as crianças não devam jamais ter uma designação sexual. Na opinião dos especialistas, é muito difícil criar um indivíduo neutro. Na escola e em outros espaços sociais, fatalmente haverá a pergunta: “é menino ou menina?”.

Diferentemente do Hospital das Clínicas de São Paulo, que trata o paciente ainda bebê e o acompanha durante toda a vida, a Unifesp recebe pacientes intersexo já adolescentes ou adultos. Na grande maioria das vezes, são pessoas que já passaram pela cirurgia reparadora. “É outro perfil. Recebemos pacientes que chegam com questões bem específicas: se devem ou não fazer outra cirurgia, dúvidas em relação à identidade de gênero, se são trans ou não. Muitas vezes há necessidade de resgatar a própria história, porque antigamente o protocolo médico era não revelar ao paciente o que tinha acontecido com ele”, explica a psicóloga Mariana Telles Silveira, da Unifesp.

Dr. Magnus acredita que é importante que se respeite a decisão do paciente intersexo e que o desejo de adequação plástica nasça da própria pessoa, a partir de um processo de consciência do que significa o próprio corpo. Nesse processo, a orientação psicoterápica tem grande importância. “Imagine um adolescente com 15, 16 anos, por exemplo, e que esteja incomodado com o clitóris aumentado. Vai colocar um biquíni e se sente desconfortável com a situação. Nessas horas é importante começar a conversar, buscar informações, nunca esconder. Mas é o indivíduo que deverá sinalizar isso. Tem que partir dele.”

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