Médico em Gaza afirma: “Ninguém nos ouve”. Leia mais sobre a crise humanitária e sanitárias em Gaza na coluna de Mariana Varella.
“Ninguém nos ouve”, afirma o dr. Mohammed Obeid, da organização médico-humanitária Médicos sem Fronteiras (MSF), em depoimento disponível nas redes sociais do MSF. O cirurgião trabalha no Hospital al-Shifa, o maior da Faixa de Gaza.
O relato do dr. Obeid acerca das condições a que estão sujeitos pacientes e profissionais de saúde em Gaza no último mês é comovente, mas não surpreende a nós, jornalistas, que temos recebido dezenas de vídeos de quem presencia a situação calamitosa dos palestinos.
São imagens de bebês prematuros com dificuldade respiratória, pois não há energia elétrica na região para mantê-los em incubadoras; crianças assustadas e feridas aos prantos, sendo atendidas onde é possível; médicos realizando cirurgias no chão; corpos despedaçados em ataques aéreos.
O Portal Drauzio conversou com Renata Reis, diretora-executiva do MSF Brasil, sobre a situação em Gaza. A organização está na região desde 1989.
“A situação humanitária [em Gaza] sempre foi complexa. Nossas equipes sempre trataram de problemas difíceis, como traumas, cirurgias, saúde mental, queimaduras e resistência a antibióticos, um problema sério na região”, afirma Reis.
Segundo a diretora-executiva, as equipes do MSF em Gaza dispunham, antes do início do atual conflito, de 300 profissionais de saúde palestinos e cerca de 20 estrangeiros. No entanto, no momento não é possível saber quantos profissionais ainda estão atuando na região, já que boa parte das equipes conseguiu deixar a área pelo Egito ou migrou para o sul de Gaza. Os voluntários que ainda resistem no norte da região trabalham em condições extremamente precárias.
“Gaza, sob embargo, contava com os abastecimentos e a ajuda humanitários. A região recebia cerca de 300 a 500 caminhões com doações por dia. Já era uma região de difícil atuação, mas nesses mais de 30 anos na região, nunca vimos nada parecido.”
Atualmente, não há segurança para que as organizações de saúde humanitárias operem, mas, ainda de acordo com Reis, há equipes prontas para entrar em Gaza, se houver condições mínimas de segurança.
“Os profissionais têm realizado cirurgias no chão, com sedativos leves, porque faltam medicamentos, incluindo anestésicos”, conta Reis.
Ela chama a atenção para o fato de que além dos ferimentos provocados pelos ataques, há pessoas que já estavam em tratamento médico antes dos bombardeios e que agora estão desassistidas. São pacientes em tratamento oncológico, em hemodiálise, em respiradores mecânicos, grávidas, bebês prematuros e outras condições que são tratadas cotidianamente nos hospitais.
“Gaza tem 2,2 milhões de habitantes. Imagine que mais de 1 milhão se deslocaram do norte para o sul, onde já viviam 1 milhão de pessoas. Não há água potável, medicamentos, produtos de higiene. Imagine quantos agravos ainda vão ocorrer.”
Sem anestesia
O MSF e outras organizações humanitárias, como Cruz Vermelha, Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA), têm denunciado os bombardeios israelenses sucessivos a Gaza, em especial aos hospitais, que começaram após os ataques do Hamas a Israel, no início de outubro.
Além da falta de água, equipamentos médicos, energia elétrica, alimentos, combustível e medicamentos que permitam aos profissionais de saúde atuarem com o mínimo de condições na região, há, segundo as organizações, milhares de mortos, muitos ainda não enterrados, muitos deles familiares desses profissionais.
De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, há mais de 11 mil mortos na região, ⅔ mulheres e crianças.
A OMS diz que perdeu contato com o hospital al-Shifa, de acordo com a BBC. O grupo humanitário Crescente Vermelho Palestino afirma que o segundo maior hospital de Gaza, o al-Quds, fechou às portas para novos pacientes e agora tenta, com acesso limitado a alimentos, água e remédios, cuidar das pessoas já internadas.
Segundo áudio divulgado pelo MSF, o cirurgião-ortopédico dr. Nedal Abed, que atua pela organização no al-Quds, as equipes médicas não deixam o hospital, apesar dos pedidos, porque não há como evacuar os pacientes e os civis abrigados nas instalações.
O médico conta, ainda, que as equipes do al-Quds passaram, há uma semana, a utilizar vinagre como substituto de medicamentos para tratar infecções dos muitos feridos nos ataques aéreos israelenses.
O presidente internacional do MSF, Christos Christou, pediu o imediato cessar-fogo em Gaza para a entrada de ajuda humanitária na região, em vídeo divulgado pela organização. Segundo o presidente, que também é médico, as equipes do MSF estão exaustas e aterrorizadas, realizando amputações em crianças no chão, enquanto mulheres não conseguem acesso a hospitais para dar à luz.
A UNRWA conta que perdeu mais de cem trabalhadores humanitários, entre eles médicos, engenheiros e professores, o maior número desde que a agência começou a atuar na região, há 78 anos.
No dia 15 de novembro deste ano, o secretário-geral das ONU Antonio Guterres reiterou, em suas redes sociais, o apelo por um cessar-fogo humanitário imediato na região. “Estou profundamente perturbado com a situação horrível e a dramática perda de vidas em vários hospitais em Gaza.”
Israel justifica os ataques aos hospitais afirmando que o Hamas utiliza as instalações hospitalares para fins militares e que as autoridades do país prestarão assistência para ajudar na evacuação dos pacientes. As equipes médicas em Gaza, entretanto, atestam que não há segurança para isso em meio aos bombardeios constantes.
“Queremos que alguém nos dê a garantia de que será possível evacuar os pacientes. O problema é termos certeza de que podemos evacuar os pacientes neonatais, pois há cerca de 37 a 40 bebês prematuros. Há outros 17 pacientes na UTI e cerca de 600 internados no pós-operatório que precisam de cuidados médicos”, conta o dr. Obeid.
Em termos de saúde pública, o que ocorre em Gaza é uma calamidade. Se é terrível pensar em pessoas passando por cirurgias sem anestésicos, como imaginar que há cerca de 2 milhões de indivíduos vivendo sem água potável, sem comida, sem energia elétrica, sem medicamentos?
Deixo as análises políticas para os colegas especialistas e estudiosos da região. Contudo, não há dúvidas que os palestinos vivem hoje uma tragédia humanitária do ponto de vista da saúde pública.
O mundo fez o certo ao condenar com veemência os ataques desumanos do Hamas, que resultaram na morte de mais de mil civis israelenses e no sequestro de mais de 200 pessoas, ainda mantidas como reféns.
A pergunta que faço é: Por que os países não agem da mesma forma ao assistir à crise humanitária e sanitária que ocorre na Faixa de Gaza?