Nem a letra de médico mais bonita permitiria que parte dos brasileiros saísse da consulta entendendo a receita. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2024 sobre Educação, o analfabetismo absoluto, isto é, quando o indivíduo não sabe nem ler nem escrever, afeta cerca de 9,1 milhões de pessoas com 15 anos ou mais no Brasil. A maioria delas é de idosos, pretos ou pardos e moradores da região Nordeste.
Ao considerar os analfabetos funcionais, ou seja, aqueles que conseguem ler e escrever textos simples, mas têm dificuldade de interpretar informações mais complexas, o problema cresce. O Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf 2024) demonstrou que três em cada dez brasileiros entre 15 e 64 anos se encaixam nessa categoria, o equivalente a 40 milhões de jovens e adultos.
Migrantes, indígenas e pessoas com baixa cognição também se somam a essa lista, atingindo um número ainda maior de pacientes que não conseguem seguir orientações médicas, ler a bula dos medicamentos ou fazer pesquisas confiáveis na internet sobre as suas queixas de saúde.
As iniciativas da rede pública, no entanto, são escassas. Baseadas na Estratégia de Saúde da Família, ainda não existem programas em nível nacional que contemplem especificamente a população analfabeta. O Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC), padrão utilizado na maioria dos postos de saúde, não possui um sistema de prescrição para não letrados. Os principais responsáveis por levar a equidade no atendimento a esse público são os Agentes Comunitários de Saúde e alguns profissionais que se destacam por suas inovações.
Caixa de medicamentos: o simples que funciona
Em uma Unidade Básica de Saúde do município de Caçadores, em Santa Catarina, a dificuldade de pacientes analfabetos em organizar os vários medicamentos que lhes eram prescritos chamou a atenção de um grupo de alunos de Medicina da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp).
“Os alunos perceberam a dificuldade que esses pacientes tinham de seguir seu tratamento, porque alguns medicamentos são [tomados] de manhã, outros à tarde, outros ao meio-dia e eles não conseguiam entender o processo por causa do analfabetismo. Alguns pacientes tomavam medicação diurética antes de dormir, o que acabava atrapalhando o sono, porque passavam a noite toda no banheiro”, explica Solange de Bortoli Beal, professora do curso de Medicina da Uniarp.
A solução foi simples. O grupo confeccionou caixas de papelão com divisórias representadas por um sol, um prato de comida e uma lua. Cada uma delas fazia referência ao horário que o paciente deveria tomar o medicamento. Ele apenas levava a caixa ao farmacêutico da UBS, que já dispensava os comprimidos nas divisórias adequadas.

“A partir dali, se percebeu que o paciente acabou obtendo mais independência e autoconfiança, porque ele sabia que estava tomando aquele medicamento no horário certo. Nós temos que entender que muitos pacientes dependem de nós, profissionais de saúde. Precisamos ter um olhar mais atento a essas vulnerabilidades. Precisamos nos sensibilizar com esse tipo de paciente e encontrar alternativas diferentes das que se tornam comuns a todos”, opina a professora.
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Cuidado para Todos: plataforma traduz prescrição médica em desenhos
Uma alternativa diferente das convencionais foi criada pelo médico Lucas Cardim e seu colega Davi Pires. O dr. Lucas, que trabalha em unidades do SUS em áreas isoladas do Brasil, percebeu que muitos médicos entregavam a receita e achavam que o paciente “daria um jeito”. Por vergonha, parte dos pacientes analfabetos voltava para casa sem questionar.
“Você sempre vê nessas reportagens aquela exceção, aquele doutor ou doutora gente boa que faz o desenhozinho e promove a diferença. Mas queríamos transformar isso em um padrão, em algo contínuo e bem estruturado, em uma política pública”, destacou o médico.
Surgiu, então, o Cuidado para Todos, plataforma que gera gratuitamente receitas com ícones visuais que ajudam o paciente a entender o próprio tratamento. O acesso é livre e não é preciso fazer cadastro para utilizá-lo.
“É um site que tem a lista dos remédios mais frequentemente usados na Atenção Primária. Para cada um deles, já pré-definimos uma série de ícones que vão ajudar o paciente a seguir melhor o tratamento. O médico só precisa pesquisar o medicamento, clicar nos que ele quer colocar na receita, imprimir e entregar para o paciente”, explica o dr. Lucas.
O profissional ainda tem acesso a informações relacionadas à prescrição e à disponibilidade do medicamento pelo programa Farmácia Popular, além de poder incluir fotos ou vídeos gravados na hora e oferecer o conteúdo em formato de adesivo para impressão, QR Code, libras ou audiodescrição. Tais ferramentas auxiliam na orientação do paciente em tratamentos corriqueiros, mas complexos, como o uso da insulina.

Os ícones utilizados são pensados a partir do feedback dos pacientes, além de contar com o trabalho de designers regionais. Atualmente, o Cuidado para Todos vem sendo testado em Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) da região de Sergipe e Alagoas, grupos cujas referências visuais são muito diferentes.

“Nos municípios onde trabalhamos, os pacientes passam a ter um autocuidado maior, não só pela questão da autoestima, mas também pela compreensão técnica do uso do medicamento e de outros cuidados com a saúde. Você tem redução dos níveis glicêmicos, melhora da função renal e diminuição de crises em todas as idades. A mudança no paciente é se tornar dono do próprio tratamento, do próprio cuidado, ter mais autonomia e se sentir capaz de dizer: ‘Poxa, posso ser idoso e estar doente, posso não saber ler, mas não preciso de ninguém. Eu sempre me cuidei e consigo continuar me cuidando’”, destaca Davi Pires, desenvolvedor do projeto.
Atualmente, há negociações com o Ministério da Saúde para que a plataforma seja incluída no SUS. Ainda que haja receptividade, as tratativas esbarram em alguns pontos: a necessidade de adequar as receitas ilustradas ao Prontuário Eletrônico do Cidadão e outras dificuldades mais básicas, como a falta de impressora nas unidades de saúde.
“O que a gente quer, de fato, é mudar a epidemiologia dessa condução, dando visibilidade real ao paciente que não sabe ler. São 40 milhões de pessoas, não é pouca gente. São populações invisibilizadas e cuja vida corrida e extensa dificulta a mobilização”, reforça o dr. Lucas.
A força da Estratégia de Saúde da Família e o desafio da integração
Na prática, quem leva a saúde a pacientes analfabetos é a Estratégia de Saúde da Família, que garante a presença de equipes multiprofissionais em comunidades e territórios onde centros mais especializados não conseguem chegar.
Os médicos, dentistas, enfermeiros, técnicos de enfermagem e principalmente os Agentes de Saúde que compõem as equipes oferecem, além do atendimento convencional, outras ferramentas coletivas de prevenção e promoção à saúde.
“Existe um incentivo do Governo Federal para qualificar os Agentes Comunitários na área da comunicação. Até porque, a primeira pessoa e a que mais frequentemente lida com esses cidadãos é justamente o Agente Comunitário. Eles estão no território, vivenciam o dia a dia e conhecem de perto os problemas e as dificuldades dessas pessoas. São, muitas vezes, os primeiros a quem eles recorrem”, explica Pedro Cruz, membro do Grupo de Trabalho de Educação Popular em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Um dos programas de formação técnica voltado a esses profissionais é o Saúde com Agente, uma espécie de curso técnico que aborda diferentes temáticas, incluindo a comunicação em saúde. Especialmente depois da pandemia, esse contato se fortaleceu no digital, mesmo para quem não sabe ler e escrever, através de áudios de WhatsApp.
“Muitas equipes de atenção à saúde têm criado grupos com as suas comunidades para enviar informações, dar notícias, prestar contas de suas atividades. Há programas voltados para dinamizar o acesso digital ao SUS, por exemplo, com o prontuário eletrônico. No entanto, para grande parte da população, é mais fácil usar o WhatsApp. O desafio dessas plataformas e recursos digitais é justamente torná-los os mais acessíveis possível às diferentes realidades e necessidades das pessoas”, pontua o especialista.
Por outro lado, o grande desafio é tornar os locais de pronto atendimento em centros de promoção da vida. Para Pedro Cruz, além de receitar medicamentos, exames ou procedimentos, é preciso investir em programas intersetoriais que reúnam práticas integrativas em saúde, assistência social, esporte, lazer e educação.
“Os profissionais e as equipes de saúde da família precisam garantir tempo de qualidade não só para o atendimento clínico tradicional, mas também para realizar grupos, ações de educação em saúde, campanhas comunitárias, mutirões, reuniões com escolas, centros de assistência social e lideranças comunitárias. Por isso, é necessário mais incentivo e melhores condições de trabalho, além de um direcionamento político dos governos federal, estadual e municipal que valorize essas ações”, opina.
Nesse sentido, o Ministério da Saúde criou, em 2023, a eMulti ou Equipe Multiprofissional na Atenção Primária à Saúde. O programa busca apoiar as demais equipes da Atenção Primária à Saúde trazendo outros profissionais especializados, como psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, entre outros.
“Isso, para mim, é um sinal positivo. Mas ainda precisamos ser mais ousados e vigorosos nesse processo. O profissional de saúde não é quem determina tudo o que o paciente deve fazer, mas é alguém que oferece apoio, orientação segura e embasamento científico, além de suporte emocional e afetivo. O objetivo é orientar para que a pessoa conduza as rédeas da própria vida. Quanto mais o plano de cuidado for baseado na realidade da pessoa, maior será sua eficácia. E quanto mais contribuirmos para que o paciente supere seus desafios e dificuldades, mais efetivo será o cuidado”, finaliza o pesquisador.
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