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Reportagens

Neuromodulação ajusta desequilíbrios no cérebro para tratar de Parkinson a depressão

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Publicado em 17/08/2018
Revisado em 11/08/2020

Técnica de neuromodulação atua no sistema nervoso e pode eliminar sintomas incapacitantes, mas acesso ainda é restrito. Conheça o procedimento.

 

Em Medicina, a fama da eletricidade não é das melhores. A relação mais evocada entre ambas é a eletroconvulsoterapia, que ficou popularmente conhecida como “terapia de choque”. O nome carrega o estigma gerado pelo uso excessivo da terapia, ocorrido durante décadas em instituições psiquiátricas do mundo todo, para “tratar” indiscriminadamente os mais diversos transtornos mentais. Hoje já se sabe que a eletricidade tem recomendação específica para o tratamento de várias doenças.

O conhecimento humano sobre o uso terapêutico da eletricidade é antigo. Egípcios sabiam que o rio Nilo abrigava peixes peculiares que davam choque, e os utilizavam para tratar dores milhares de anos antes de Cristo. Conforme dominamos a eletricidade, seu uso foi sendo refinado e experimentado para tratamentos médicos. No início do século 20, a eletricidade foi aplicada de modo indistinto em hospitais psiquiátricos, mas no começo dos anos 1960, estudos mais aprofundados sobre o funcionamento do cérebro serviram para repensar seu emprego na Medicina.

Em muitos livros didáticos, é clássica a explicação sobre os conceitos básicos do sistema nervoso, utilizando a dor como exemplo mais simples: ao sofrermos um corte no dedo, nervos da região reconhecem o estímulo e enviam sinais que sobem pela medula espinhal até o cérebro, que por sua vez dispara a sensação de dor e envia sinais para que nos afastemos do objeto cortante. Segundo esse modelo, imaginamos um sinal que simplesmente vai e volta. Nossa capacidade de interferir nesse quadro, portanto, seria somente por meio da extirpação das fibras relacionadas à dor, o que a cessaria por completo, mas deturparia ou mesmo eliminaria a sensibilidade e a motricidade.

 

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Um estudo que contribuiu muito para entender melhor o processamento da dor foi publicado em 1965, na revista “Science”. Chamada de “Teoria da Comporta”, a abordagem propunha que o caminho de transmissão da dor não seria uma via expressa, como o exemplo do corte no dedo faz parecer. Para começar, fibras nervosas diferentes captam estímulos diferentes. Algumas percebem dor e calor, por exemplo, enquanto outras registram sensações como toque ou vibração. Quando estímulos chegam à medula, encontram outros tipos de neurônios que teriam a capacidade de liberar ou não a passagem dos estímulos para o cérebro (daí o nome da teoria). Se dois estímulos de naturezas diferentes (como um de dor e outro de vibração, por exemplo) chegassem simultaneamente a esse “neurônio portão”, o acesso seria liberado somente para o estímulo da vibração, inibindo o de dor.

É claro que esse modelo ainda é muito simplificado e foi revisado várias vezes posteriormente, mas ele abriu a possibilidade de atuar na transmissão da dor sem ser pelo simples corte da fibra nervosa. É possível agir no sistema nervoso de forma a ajustar desequilíbrios, como os que fazem uma pessoa sentir dor em um membro amputado, ou pacientes com Parkinson apresentarem tremores involuntariamente. É possível modular o impulso nervoso.

 

Centro de controle

 

Costumamos pensar no cérebro como um órgão apenas relacionado a atividades intelectuais, mas essa é uma percepção equivocada. Em última instância, está no cérebro a origem de praticamente todas as funções fisiológicas do ser humano. A técnica de neuromodulação parte desse princípio para tratar doenças tão diferentes como epilepsia e depressão. “O cérebro humano corresponde a 1,5% do nosso peso, mas gasta 20% do oxigênio inalado e 25% da glicose circulante. Ele é uma usina que precisa estar funcionando a todo vapor, mas de forma ordenada, pois tem que não só exercer suas funções, mas também realizá-las no tempo certo”, afirma o neurocirurgião Erich Fonoff, diretor-técnico do Parkinson Hoje e professor livre-docente e associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

O sinal que percorre os neurônios não é elétrico do início ao fim. Na maioria das vezes, a eletricidade precisa de contato para ser conduzida. Quando o sinal chega à ponta de um neurônio, ele precisa “saltar” para o próximo, pois existe um espaço entre cada célula. Nesse espaço, chamado de sinapse, a informação é transmitida não por eletricidade, mas por meio de substâncias químicas chamadas neurotransmissores. “Esses neuroquímicos são os que modulam de forma geral a função cerebral em todas as direções possíveis. Na alegria, na depressão, nos movimentos e nas informações que damos a nós mesmos internamente. Quando os rins precisam filtrar mais, por exemplo, há uma contração de artérias controlada por um impulso nervoso”, explica o dr. Antonio De Salles, neurocirurgião, chefe do HCor Neuro (Hospital do Coração de São Paulo) e professor emérito de neurocirurgia e radiação oncológica da Universidade da Califórnia (UCLA).

O cérebro humano corresponde a 1,5% do nosso peso, mas gasta 20% do oxigênio inalado e 25% da glicose circulante. Ele é uma usina que precisa estar funcionando a todo vapor, mas de forma ordenada, pois tem que não só exercer suas funções, mas também realizá-las no tempo certo.

A neuromodulação é um termo que abrange uma série de técnicas de atuação no sistema nervoso, e nem todas são cirúrgicas. É possível, por exemplo, aplicar pulsos magnéticos que atravessam o crânio e atingem o córtex cerebral. Contudo, nem sempre é necessário um estímulo elétrico, pode-se injetar um agente químico localmente ou na medula espinhal para modular uma função. “A vantagem é que eu posso ir ao local e modificar a química de uma região específica de forma a melhorar o sintoma de um paciente, em vez de ele tomar uma pílula que vai ter ação no organismo todo, com possíveis efeitos colaterais”, explica o dr. De Salles.

Ao estimular eletricamente uma determinada região do cérebro pode-se obter, por exemplo, maior ou menor produção de determinados neurotransmissores. Sabendo-se a que condições ou doenças essas substâncias químicas estão relacionadas, é possível corrigir exageros ou deficiências. É simples entendermos que um acidente vascular cerebral (AVC), ao atingir uma região que controla o movimento do braço esquerdo, pode deixar como sequela a perda do movimento daquele braço. Mas a paralisia ocorre porque o AVC é um evento descontrolado que provoca a morte do tecido cerebral. Se agirmos delicadamente na região, podemos, em princípio,  ajustar  somente determinada “desorganização” (no exemplo citado, a que provoca dor crônica no braço comprometido).

A atuação da neuromodulação, porém, é limitada pela necessidade de existência dos neurônios sobre os quais se irá trabalhar. “Imagine que você quer atravessar a avenida Paulista de uma ponta a outra, mas o asfalto está todo destruído e você não consegue passar. É como uma doença estrutural da via, como o efeito de um AVC, em alguns lugares não há via em que você possa atuar. Existem outros tipos de doenças que seriam como uma doença dos semáforos. O trânsito está horroroso porque os semáforos estão dessincronizados, mas a via está íntegra. Essas a gente consegue tratar”, esclarece o dr. Fonoff.

Embora em tese seja possível modular qualquer função cerebral, a neuromodulação ainda não consegue atuar em qualquer doença, mesmo quando as fibras nervosas estão íntegras. O exemplo do corte no dedo é usado para explicar o funcionamento básico do sistema nervoso justamente porque é dos processos mais primitivos que realizamos: há um estímulo de dor, o cérebro comanda o movimento para nos afastarmos. Da mesma forma, o movimento é fácil de explicar: queremos coçar a cabeça, o cérebro envia o sinal para contrairmos o cotovelo. Porque essas são funções mais simples, a neuromodulação inicialmente se concentrou em enfermidades relacionadas ao universo das dores crônicas e dos distúrbios do movimento, como a doença de Parkinson e o tremor essencial.

 

Neuromodulação no tratamento da doença de Parkinson

 

Estima-se que haja cerca de 200 mil pessoas com Parkinson no Brasil. A doença causa uma série de sintomas, como lentificação e rigidez muscular, mas o mais associado à enfermidade são os tremores. Ela é mais incidente a partir dos 55 anos, mas pode surgir antes. O advogado Dilvio Martins tinha 40 anos quando começou a apresentar tremor no lado esquerdo do corpo. O sintoma era discreto, mas foi se intensificando no decorrer dos anos. “O diagnóstico é um tanto complexo porque o Parkinson pode ser confundido com outras doenças. Inicialmente, fui diagnosticado com tremor essencial, mas o quadro foi evoluindo até enfim eu ter o diagnóstico correto”, relata.

Em nossa experiência com estimulação de nervos periféricos para tratar depressão, conseguimos melhora em aproximadamente 95% dos pacientes. São pessoas que mudam a vida após a cirurgia.

A primeira linha de tratamento para Parkinson consiste em medicamentos, sendo a levodopa uma droga comumente usada. A medicação é eficaz e consegue retardar muito a progressão dos sintomas, mas não interrompê-los. Para alguém que começou a apresentar tremores cedo, como Dilvio, a perspectiva é que em algum momento os medicamentos não farão mais efeito. “Após dez anos tomando os medicamentos, eles praticamente deixaram de fazer efeito. Eu tomava a dose máxima para obter efeito mínimo. Não conseguia pegar minha filha no colo, dava passos curtos, não tinha força muscular. Eu tomava para atender um cliente, uma hora depois começava a passar o efeito. Aí você não pode deixar o cliente perceber, tinha contrações, câimbras, precisava ficar suportando a dor. Era um tormento, só quem tem pode imaginar”, recorda.

Ao chegar nesse ponto, Dilvio teve a indicação de fazer a cirurgia de neuromodulação. Recebeu sedação e anestesia local para que fosse fixado o arco metálico que garantiria que sua cabeça permanecesse imóvel, algo essencial para uma cirurgia tão precisa. Exames combinados geram imagens do cérebro do paciente, com coordenadas que mapeiam cada milímetro cúbico e permitem analisar o caminho que será percorrido pelos eletrodos. No caso de Dilvio, eram dois, um em cada hemisfério. “A abertura no crânio tem de seis a oito milímetros. Por ela passamos um eletrodo que capta a atividade cerebral, e por meio da leitura desse sinal nós conseguimos saber onde estamos no cérebro. É um controle fino. A parte de implantação dos eletrodos é a mais importante, dura cerca de 2h30”, afirma o dr. Fonoff.

Na última etapa, que leva de 40 minutos a uma hora, é implantado o marca-passo, dispositivo que emite os pulsos elétricos e permite o ajuste de acordo com as necessidades do paciente. Nessa fase é usada anestesia geral, pois o aparelho – e os fios que o conectam aos eletrodos – é implantado sob a pele no tórax, logo abaixo da altura da clavícula. Existe uma série de parâmetros que definem como serão o pulso elétricos, mas não é preciso tentativa e erro para encontrar o melhor ajuste em cada caso. “Frequência, largura do pulso, intensidade, combinação entre os contatos. Multiplicando tudo, a probabilidade de acertar seria quase a de ganhar na Mega Sena. Existem protocolos bem conhecidos sobre o quanto se precisa modular de acordo com o quadro do paciente”, diz o dr. Fonoff.

Cirurgias no cérebro sempre causam certo temor, mas uma operação desse tipo é considerada bastante segura. “Se havia um risco de sangramento de 2% a 3% nos anos 1960, hoje esse risco caiu para 0,4% ou 0,3%. Porque conseguimos fazer a trajetória do eletrodo de forma precisa, sem passar por nenhum vaso. O outro risco é de infecção, mas esse também hoje é de cerca de 2% a 3%. É bem mais segura que uma cirurgia aberta de abdômen, por exemplo”, afirma o dr. De Salles.

“Você acorda praticamente curado. Acordei já pedindo para a enfermeira deixar eu ir para o quarto”, lembra o advogado, hoje com 55 anos. “A cada três ou quatro meses eu retorno só para checar o ajuste do aparelho, mas é coisa simples”, completa. Além dos retornos de rotina, são necessários cuidados com a bateria do aparelho. Existem modelos não recarregáveis que duram por volta de cinco anos. Os recarregáveis podem durar mais, até 25 anos, mas precisam de recargas semanais utilizando um aparelho externo que é carregado na tomada e colocado sobre a pele, próximo do marca-passo. A escolha é feita juntamente com o médico.

Os índices de melhora são bastante altos. Cerca de 95% dos parkinsonianos têm melhora significativa da qualidade de vida. Para portadores de epilepsia, há de 60% a 70% de melhora no número de crises. “Em nossa experiência com estimulação de nervos periféricos para tratar depressão, conseguimos melhora em aproximadamente 95% dos pacientes. São pessoas que mudam a vida após a cirurgia”, afirma o dr. De Salles.

 

Limitações da neuromodulação

 

Por mais que a neuromodulação seja capaz de minimizar ou até fazer os sintomas desaparecerem, ela não constitui uma cura. “Essa técnica permite a modulação de um cérebro que sofre com uma doença de base. Essa doença pode ter contribuição de fatores genéticos e de outras naturezas que em conjunto provocam os sintomas. Não é uma panaceia que cura tudo com estímulo. É preciso um tratamento contínuo”, esclarece o médico do HCor.

Embora seja extremamente eficaz, a cirurgia só é indicada mediante alguns critérios. Geralmente, seus resultados são melhores após cinco anos do diagnóstico, quando os medicamentos também podem passar a não dar conta de controlar os sintomas. Má tolerância aos efeitos colaterais da medicação, que incluem principalmente náuseas e sonolência, também pode sinalizar encaminhamento para a cirurgia de neuromodulação. Porém, mesmo em casos como esses ainda há uma série de desafios para ampliar a oferta do procedimento.

No Brasil, a cirurgia é usada mais frequentemente para tratar Parkinson, que seguido do tremor essencial. Somente os aparelhos para tais operações custam cerca de 100 mil reais. Tudo o que envolve a cirurgia pode sair por cerca de 150 mil. No SUS, há uma cota limitada de dispositivos, mas essa não é a principal limitação. Mesmo para os tratamentos melhor estabelecidos, como os de Parkinson, tremor essencial e dores crônicas, é necessário um médico que está entre os que exigem maior tempo de formação e treinamento. Um neurocirurgião habilitado para realizar uma cirurgia de neuromodulação pode demorar de 15 a 20 anos para ser formado.

Além do custo e da especialização dos profissionais, a neuromodulação enfrenta seus próprios desafios. Expandir a técnica para outras doenças esbarra na complexidade de enfermidades que vão além dos distúrbios de movimento ou de desequilíbrios químicos mais simples, como é o caso da depressão. Ainda assim, a área caminha para ultrapassar essas barreiras. “Estamos aumentando conhecimento para a atuar cada vez mais em zumbido, anorexia nervosa, TOC e controle do apetite”, afirma o dr. Fonoff.

Entre os novos campos de estudo, o da obesidade é um dos que mais vem recebendo atenção. A primeira dificuldade é a multiplicidade de causas possíveis. Ela pode ser fruto de um problema endócrino, caso em que a neuroestimulação pode ajudar bastante. Contudo, há casos em que também há um componente comportamental, e aí a forma de atuação fica mais complexa. “Em um estudo, conseguimos pegar um paciente com 160 kg e fazê-lo chegar a 100 kg. Porém, outros pacientes não apresentaram a mesma resposta justamente porque tinham um fator emocional. Então, se você aumenta o metabolismo deles para gastar mais energia, eles podem comer mais e compensar. Esse fator constitui um sistema extremamente complexo, mas cada vez mais aprendemos onde atuar no cérebro para tratar também esse tipo de problema”, afirma De Salles.

Os estudos na área avançam para ampliar o leque de distúrbios que possam se beneficiar da técnica. Resta saber quantas pessoas terão acesso a ela.

 

* O site Parkinson Hoje disponibiliza uma série de cartilhas úteis e gratuitas para pacientes com Parkinson ou tremor essencial. Uma delas é específica sobre a cirurgia descrita nesta matéria. Consulte clicando aqui.

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