Como o transtorno de estresse pós-traumático afeta os relacionamentos afetivos?

Na tentativa de evitar reviver o trauma, pessoas com Transtorno de Estresse Pós-Traumático podem acabar se isolando. Saiba o que fazer.

mulher triste, sentada no sofá com a cabeça apoiada no braço. Transtorno de estresse pós-traumático precisa de diagnóstico correto

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Publicado em: 10 de janeiro de 2023

Revisado em: 31 de janeiro de 2023

Entre os principais sintomas do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) estão o isolamento e o comportamento evitativo, que podem dificultar as relações mais íntimas

 

Todo transtorno mental traz sofrimento ao paciente, e, consequentemente, reflete naqueles que estão ao seu redor. Parceiros e parceiras, familiares e amigos podem ter dificuldades em lidar com determinadas situações provocadas por transtornos como depressão e ansiedade, sendo uma delas a sensação de impotência, por não saberem exatamente como ajudar. 

Com o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), isso não é diferente. Na verdade, algumas características da condição, como a tendência ao isolamento, comportamento evitativo e a hiperexcitação emocional, têm um impacto direto nas relações mais próximas de quem é diagnosticado. 

Em resumo, o TEPT faz parte dos chamados “transtornos relacionados a traumas e estressores”, como delimita o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais). Ele está relacionado à vivência de eventos traumáticos, seja como vítima direta ou como observador íntimo do evento, e é comum que uma pessoa com transtorno de estresse pós-traumático desenvolva também transtornos de ansiedade, dissociativos e obsessivo-compulsivo. 

Nem todas as pessoas que passam por um evento traumático vão desenvolver a condição. Isso vai depender da capacidade do cérebro e da estrutura psicológica do indivíduo de processar esse trauma. Quando faltam recursos psicológicos, os riscos de desenvolver o transtorno de estresse pós-traumático são maiores. 

O TEPT é marcado principalmente pela revivência, ocorrência de lembranças intrusivas sobre o evento traumático, que desencadeia as crises de flashback, nas quais a pessoa sente estar revivendo o trauma, o que provoca reações fisiológicas e emocionais intensas. 

Na tentativa de impedir os episódios de flashback, a pessoa começa a evitar ativamente situações que possam despertar gatilhos. O problema é que, dessa forma, ela passa a se isolar do convívio social, já que estímulos simples (sons, imagens, cheiros) podem desencadear as memórias indesejadas. 

Esse estado de estresse constante é extremamente cansativo para a pessoa, que gasta uma enorme quantidade de energia apenas para manter corpo e cérebro funcionando. O sofrimento intenso é, muitas vezes, reprimido, o que provoca um efeito rebote: quando a pessoa não consegue mais conter essas emoções, acontecem as explosões de raiva que trazem prejuízo para as relações.

 

Fatores de risco do transtorno de estresse pós-traumático 

Quanto mais vulnerável socioeconomicamente, maiores os riscos de, uma vez vivenciada a situação traumática, o indivíduo vir a desenvolver o transtorno de estresse pós-traumático. Ainda de acordo com o DSM-5, uma pesquisa epidemiológica realizada nos Estados Unidos revelou que, comparado a pessoas brancas norte-americanas, taxas maiores do transtorno foram relatadas entre latinos norte-americanos, afro-americanos e nativos americanos.

No Brasil, o Prove  (programa de atendimento à violência e estresse pós-traumático) publicou um estudo que revelou que a população urbana brasileira está altamente exposta a situações de trauma justamente por conta da violência urbana – alta incidência de assaltos, sequestros, assassinatos, violência policial, etc. Ao entrevistar 3744 pessoas, o estudo encontrou um risco condicional de 11,1% para TEPT. No recorte de gênero, detectou-se ainda que as mulheres apresentam risco 3 vezes maior que os homens. 

A idade também influencia de diferentes formas. O primeiro ponto é que quanto mais cedo o trauma for vivenciado (ex: na fase pré-escolar, antes dos 6 anos), maior o risco de desenvolvimento do TEPT, se não houver o acolhimento adequado dessa pessoa. O mesmo vale para o período: quanto maior a exposição, maior a vulnerabilidade. 

Já nos mais velhos, “a deterioração da saúde, a piora do funcionamento cognitivo e o isolamento social podem exacerbar sintomas de TEPT”, como diz o DSM-5.

Profissionais que lidam com morte violenta, como policiais e profissionais de saúde, tendem a estar mais suscetíveis ao transtorno de estresse pós-traumático. O mesmo vale para pessoas que tiveram acesso a informações de eventos trágicos com outros indivíduos relativamente próximos.

Ter algum transtorno mental prévio ao evento traumático e baixo nível de cortisol, hormônio liberado em situações de medo, ansiedade e estresse, aumentam esse risco. É o que explica o dr. Rodrigo De Almeida Ramos, médico psiquiatra, mestre em medicina e doutorando em medicina pela Santa Casa de São Paulo.

“Quando em quantidades normais ou aumentadas, [o cortisol] tende a inibir o armazenamento de memórias pela ação sobre neurotransmissores específicos no cérebro, como adrenalina e noradrenalina. Com esse hormônio em falta pode haver uma super consolidação dessas lembranças [traumáticas] em áreas cerebrais relacionadas ao armazenamento de memórias como o hipocampo. 

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Sintomas do estresse pós-traumático

Os flashbacks não são a única característica do transtorno. Os sintomas do TEPT são divididos nos seguintes grupos:

  • Reexperimentação: lembranças e sintomas intrusivos e flashbacks; 
  • Esquiva/evitação: Evitação persistente ou esforços para evitar recordações e estímulos associados ao evento traumático, como pessoas, ambientes e atividades, por exemplo: evitar pensar no episódio ou até mesmo evitar imagens, lugares e pessoas que remetam ao evento; 
  • Alterações negativas no humor e na cognição: incapacidade de recordar aspectos relevantes do evento traumático, pensamentos negativos persistentes e exacerbados sobre si mesmo, sobre os outros e o futuro; ideias distorcidas persistentes sobre causas e consequências do evento traumático, levando ao sentimento de culpa a si e aos outros; estado emocional negativo persistente, raiva, medo e tristeza constantes, distanciamento em relação ao mundo externo e incapacidade frequente de sentir emoções positivas; 
  • Alterações no despertar e na reatividade: Hipersensibilidade, estado de alerta constante, irritabilidade, surtos de raiva e agressividade, comportamentos de risco ou autodestrutivos, resposta exagerada aos estímulos externos, sobressaltos, dificuldades para concentração e agitação durante o sono.

Vale reforçar que os sintomas nem sempre surgem imediatamente após o trauma. Em alguns casos, essas respostas podem ocorrer algum tempo depois. Os sintomas costumam ser os mesmos, mudando apenas o intervalo da manifestação.

Monica Marcello, psicóloga clínica, completa. “Os sintomas do TEPT têm início após o evento traumático e persistem ao menos por um mês, causando grande prejuízo da vida social, profissional e afetiva, necessitando de tratamento especializado. Portanto, o diagnóstico e o tratamento sempre devem ser feitos por uma equipe multidisciplinar de saúde, abrangendo as necessidades orgânicas, psicológicas e sociais”, explica. 

 

TEPT e os relacionamentos afetivos

Tudo isso causa um impacto direto na qualidade de vida. A distorção cognitiva, a hipersensibilidade e o isolamento provocados pelo comportamento esquivo refletem nas relações afetivas da pessoa, o que torna a manutenção desses laços um desafio tanto para a pessoa em sofrimento, quanto para os seus entes queridos. 

“O trauma pode afetar a ideia que o paciente tem sobre os eventos normais da vida, como casamento, vida profissional, estudos, e deixar a sensação que essas coisas não ocorrerão. O isolamento e as crises de temperamento podem, muitas vezes, levar ao término de um relacionamento quando estes indivíduos acabam não conseguindo lidar com tudo que sentem e/ou não procuram por ajuda”, elucida Carolina Mascena, psicóloga clínica e pós graduanda em especialização na terapia cognitivo-comportamental pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). 

Por isso, o ideal é que familiares e pessoas mais próximas se informem sobre a condição, para aprenderem a como ser parte dessa rede de apoio, e não hesitem em cuidar também da própria saúde mental. 

“A estafa, o sentimento de impotência por não conseguir ajudar são traços comuns aos entes queridos e amigos próximos dessas pessoas, uma condição comum é processo de codependência no qual o ente querido entra em um estado de agonia por não conseguir satisfazer ou ajudar a pessoa com TEPT”, complementa Carolina.

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Como acolher uma pessoa com TEPT?

A resposta para essa pergunta foi unânime entre os profissionais de saúde ouvidos pelo Portal: pratique uma escuta acolhedora, sem julgamentos, tenha paciência e incentive a buscar ajuda profissional.

  • Escute: ao se mostrar disposto a escutar a pessoa, mantenha-se neutro, sem julgar a gravidade do trauma vivenciado por ela. Escute mais do que pergunte. A menos que o próprio indivíduo compartilhe mais detalhes sobre a situação, não pergunte. Prefira perguntas abertas, como “quer conversar sobre isso?” ou “posso te ajudar a encontrar uma solução para isso?”.
  • Ofereça suporte: caso o trauma envolva uma situação criminal, converse com a pessoa sobre a possibilidade de buscar o auxílio necessário e se ofereça como suporte nesse processo. 
  • Reconstrua o vínculo: tenha paciência e lembre que confiança e intimidade são conquistados aos poucos, e não atribuídos gratuitamente. “É como se o TEPT zerasse toda a configuração cerebral das relações que a pessoa tinha antes. Então, pacientemente temos que reconquistar a confiança, o respeito e a intimidade dela”, resume o doutor Rodrigo. 
  • Ajude-a a enxergar outras perspectivas: sem diminuir a dor do outro, ajude-o a entender como existe uma diferença entre o que ocorreu no passado, por ocasião do trauma, e o que está ocorrendo no presente. Lembre a pessoa de que está à disposição para ajudá-la a enfrentar esses medos. 

 

Como lidar com situações de gatilho?

O primeiro impulso pode ser naturalmente evitar o contato da pessoa em sofrimento com qualquer situação ou elemento que possa ser um gatilho para as crises, seja ele interno (sentir-se só, ter   memórias intrusivas, sentimentos de tristeza e culpa, tensão muscular ou dores físicas) ou externo (notícias, datas comemorativas, sensações, lugares e pessoas). Mas, a longo prazo, essa não é uma solução viável. 

“A decisão da família e amigos sobre evitar ou facilitar a exposição do paciente às situações de possíveis gatilhos emocionais depende do momento em que está o tratamento de saúde e o nível de recuperação, avaliando a necessidade da exposição e os benefícios ou riscos para o tratamento”, recomenda Marcello. 

O psiquiatra continua: “Num primeiro momento pode-se até evitar situações que ativem a memória traumática, mas progressivamente deve-se estimular a pessoa a enfrentar esse bloqueio interno mostrando que aquela situação foi um perigo no passado, mas que não necessariamente será uma ameaça no presente ou no futuro”.

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O que fazer durante as crises?

Uma das principais dúvidas de quem convive com uma pessoa com transtorno de estresse pós-traumático está relacionada a como agir durante as crises de flashback. O primeiro passo é manter a calma e passar confiança para a pessoa em crise. Nessas situações, é possível utilizar técnicas respiratórias e meditativas (mindfulness), como aconselha o doutor Rodrigo.

“Pode-se pedir para a pessoa inspirar em três segundos e expirar em seis, por exemplo, servindo de guia nessas trocas gasosas. A preferência pela expiração estimulará o chamado sistema nervoso parassimpático, parte nervosa que controla nossas vísceras, e levará a liberação de substâncias calmantes, que tendem a tranquilizar o indivíduo.”

Tentar trazer a pessoa de volta ao momento presente, de forma que ela se conecte com o aqui e o agora também pode auxiliar, de acordo com Carolina Mascena, pós-graduanda em terapia cognitivo-comportamental – terapia considerada de primeira escolha para o tratamento de traumas. 

“Mostre os objetos ao redor, o ambiente e os sons, que evidencie o momento presente. Acolher e trazer para o agora faz com que o indivíduo tire a sensação que tem culpa pelo o que está sentindo ou acontecendo, pois eles podem ter vergonha da situação”, finaliza Carolina. 

 

Onde procurar ajuda?

Para o indivíduo com os sintomas ou com o diagnóstico de TEPT, é fundamental que haja um acompanhamento psicológico. Como o transtorno atinge diversas áreas da vida, o mais recomendado é o tratamento multidisciplinar, que pode contar com psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais e outros profissionais. É possível recorrer aos Centros de Atenção Psicossocial, que integram a estrutura do SUS, e contam com equipes multidisciplinares para acolher a pessoa em sofrimento, além de orientar e fortalecer sua rede de apoio. Veja como buscar atendimento aqui. 

Se você faz parte da rede de apoio de um indivíduo com TEPT, tão importante quanto ser paciente e acolhedor com o outro, é ter essa postura consigo mesmo. 

“Essas pessoas também precisam de apoio no sentido de falar sobre o que sentem ao estar lidando com alguém nesta condição, receber acolhimento e direcionamento de como agir em determinadas situações. Além disso, de aprenderem sobre o transtorno e sobre o que é possível que elas façam, e o que depende unicamente do indivíduo e seu próprio tratamento”, destaca a psicóloga Carolina. 

Ainda são escassos os grupos de apoio para familiares e amigos de pessoas com TEPT, de forma que alguns deles podem ser achados em instituições como o Hospital das Clínicas ou o Prove (Serviço de Assistência e Pesquisa em violência  e estresse pós traumático) da UNIFESP.

Se não for possível sair ou caso queira apenas conversar sobre o que está sentindo, acesse o chat do Centro de Valorização da Vida (CVV) ou ligue através do 188; a ligação é gratuita e o serviço está disponível 24 horas por dia. O CVV é formado por voluntários e promove o apoio emocional e a prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.

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