O fascínio pelo mundo marginal sempre foi tão presente na vida de Drauzio que, quando pequeno, saía escondido pelas ruas que abrigam o submundo de São Paulo.
O dr. Drauzio sempre teve um fascínio pelo mundo marginal. Ele nunca entendeu de onde veio esse interesse, já que o pai lhe dera uma educação correta e baseada no respeito ao próximo. Mais tarde, entendeu que isso era apenas um traço de personalidade que vinha desde a adolescência, quando saía escondido de casa enquanto o pai trabalhava para observar as ruas do submundo de São Paulo. Ouça neste episódio do Outras Histórias.
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Nunca entendi essa atração que eu tenho pelo mundo marginal sempre que eu tentei buscar as razões pra explicar que um homem da minha idade, criado por um pai que deu o exemplo e transmitiu aos filhos princípios rígidos de caráter, honestidade e respeito aos direitos alheios tem tamanho fascínio pelo mundo do crime.
Olá, eu sou Drauzio Varella, e aqui você vai ouvir Outras Histórias.
Hoje, eu aceito esse interesse como um traço de personalidade, sem me preocupar com questionamentos morais nem psicanalíticos. Mas, aos 12 anos de idade, a atração pelo universo dos que viviam em desacordo com os valores que me eram ensinados em casa aumentava em mim a perplexidade que permeia a transição da puberdade pra adolescência.
Nessa época, nós morávamos num sobradinho na Vila Mariana. O meu pai tinha dois empregos. Ele saía cedinho de casa, voltava pro almoço, como os homens faziam naquela época, não é. E aí ele acabava de almoçar e ia embora. Saía de um emprego às 6 e meia, entrava no outro às 7 da noite e lá ficava até meia-noite. Então, eu só via o meu pai na hora do almoço, quando via. A minha madrasta gostava de dormir às 9 da noite e ela obrigava a gente a ir pra cama, meus irmãos e eu. Dizia que tinha que dormir cedo porque a gente tinha aula no dia seguinte. Quando eu conseguia juntar o suficiente pra pegar o bonde – naquela época tinha bonde, né, era a condução mais barata –, eu esperava todos dormirem, levantava da cama, me vestia, escalava o parapeito do terraço do quarto da minha irmã, descia pela grade da janela da sala de visitas e ganhava a rua, ágil e silencioso como um gato. Pegava o bonde pra cidade. A gente morava na Vila Mariana, né, então, tem aqui um bonde que parava na Praça João Mendes. E aí eu descia do bonde, cruzava a Praça da Sé, seguia pela Rua Direita, pela Rua São Bento e atravessava o Viaduto Santa Ifigênia, e era o viaduto, o Santo Ifigênia, que me levava ao destino final, a boca do lixo.
Eu não ia atrás de sexo, eu não tinha idade, não tinha dinheiro e não tinha coragem pra tanto. Era o ambiente devasso que me atraía. As mulheres de batom vermelho, saia justa, encostadas nos postes, nas portas das casas, as idas e vindas dos clientes, os cafetões de terno de linho branco, os bares barulhentos, esfumaçados, os boleros que o rádio tocava e as guarânias, músicas paraguaias que faziam muito sucesso na época. O carro da polícia, que passava com a sirene ligada, os homens de unha esmaltada, em volta das mesas de bilhar, e as brigas das mulheres, que se agarravam pelos cabelos até que uma boa alma se dignasse a apartá-las.
Eu andava pelas calçadas, colado ao meio-fio pra guardar distância das profissionais, que me chamavam de nenê e faziam propostas indecorosas. Parava junto às portas dos bares para bisbilhotar os frequentadores, pronto pra me afastar feito um raio, assim que a primeira pessoa se aproximasse. O mais estranho é que essa ronda pela moradia do pecado estava longe de ser divertida, até pelo contrário, ela vinha acompanhada de sobressaltos, uma tensão permanente e um medo que congelava as mãos e fazia o coração disparar bastava avistar um policial, uma mulher chegar mais perto, um cafetão notar minha existência ou o balconista do bar olhar em minha direção.
Pontualmente, às 11 horas, eu tinha que voltar pra casa, pra chegar antes do meu pai. Aí, fazia o caminho de volta, atormentado e confuso, mas excitado por mergulhar na intimidade de um submundo inacessível a meninos como eu. No dia seguinte, morto de sono no colégio, as imagens da véspera me perseguiam, mas eu não contava nada pra ninguém, com medo de que me acusassem de pervertido ou depravado, adjetivos em moda naqueles dias.
Semanalmente estarei aqui para contar Outras Histórias. A trilha sonora foi feita pela In Sonoris e a produção é da Júpiter – Conteúdo em Movimento.
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