Menstruação – Outras Histórias #64

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A menstruação sempre foi cercada de tabus que dificultaram a realização de estudos dos transtornos causados por ela. 

 

A falta de pesquisas para desvendar a natureza de um fenômeno biológico que interfere com o cotidiano de metade da população mundial, durante décadas, é reflexo do valor que a sociedade atribui ao sofrimento das mulheres e do comportamento autoritário que os homens insistem em manter para subjugar os desígnios do corpo feminino.

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Menstruar é uma característica humana. É raríssima entre os mamíferos.

Olá, eu sou Drauzio Varella, e aqui você vai ouvir Outras Histórias.

Só menstruam as mulheres, as chimpanzés, as fêmeas de algumas espécies de morcegos e as fêmeas do musaranho-elefante, um estranho animal africano, que é do tamanho de um rato.

Enquanto, nas demais espécies, a camada que reveste a parte interna do útero, que é chamada de endométrio, é absorvida no fim de cada ciclo e a fase fértil exibida por meio de inchaço dos genitais externos, alterações comportamentais e odores que atraem os machos, nas mulheres, a ovulação é mantida em segredo. O único sinal visível de fertilidade é o sangramento vaginal, estrategicamente exposto nos dias em que não há óvulos a fecundar.

O endométrio se espessa no decorrer do ciclo, em preparação pra aninhar os óvulos fecundados. Mantê-lo nutrido indefinidamente em condições ideais para a nidação do óvulo fecundado exigiria gastos metabólicos permanentes, que são evitados quando você elimina o endométrio pra reconstruí-lo no ciclo seguinte.

A menstruação sempre foi cercada de tabus que dificultaram a realização de estudos dos transtornos causados por ela. Em 2018, foi publicada uma pesquisa com 738 mulheres na Arábia Saudita. E essa pesquisa mostrou que 91 delas teriam pelo menos uma queixa menstrual de irregularidade, interrupção das menstruações, dores, sangramento abundante.

Levantamentos que foram conduzidos em outros países mostraram que: primeiro, uma em cada cinco mulheres tem cólicas menstruais fortes a ponto de limitar as tarefas diárias; segundo, uma em cada 16 mulheres sofre as dores fortes da endometriose, uma doença em que o sangramento menstrual e restos de endométrio migram pro interior da cavidade abdominal, instalando-se nos órgãos pélvicos, nos intestinos, no peritônio, por exemplo; terceiro, uma em cada dez mulheres apresenta a síndrome do ovário policístico, capaz de provocar irregularidades nos ciclos, problemas dermatológicos, especialmente acne, e infertilidade; quarto, cerca de 80% das mulheres se queixam de sintomas do transtorno disfórico pré-menstrual, que é caracterizado por irritabilidade, depressão, ansiedade – são sintomas que surgem na semana anterior à menstruação, mas que persistem até o segundo ou terceiro dia depois que o sangramento se instala.

Menstruar 12 vezes por ano, durante anos consecutivos, é um fenômeno moderno. Antes da segunda metade do século XX, as mulheres engravidavam cedo e as taxas de natalidade eram altas. Somados aos nove meses de gravidez os períodos de amamentação, cada filho significava dois anos, às vezes, três anos de amenorreia, quer dizer, de ausência de menstruações. As estimativas são que, durante a vida fértil, uma mulher do passado menstruasse cerca de cem vezes, número incomparável à média de 400 menstruações na mulher atual.

Além da tendência moderna de engravidar mais tarde e dar à luz menos vezes, as meninas de hoje menstruam mais cedo. No Brasil e em muitos países, a primeira menstruação, que a gente chama de menarca, ocorre em média aos 12 anos de idade. Há apenas 20 ou 30 anos, acontecia seis meses mais tarde. No início do século XX, as meninas menstruavam pela primeira vez aos 14 anos em média.

Dietas com densidade calórica alta, a obesidade infantil, a vida sedentária, o estresse e até fatores ambientais, como a exposição aos bisfenóis e aos ftalatos, substâncias contidas nos plásticos, explicariam essa precocidade.

O tabu da menstruação vem de longe. Em 1920, um húngaro chamado Béla Schick assegurou ter observado que buquês de flores murchavam mais depressa em mãos de mulheres menstruadas. Concluiu que o sangue menstrual conteria uma espécie de veneno. Na Amazônia, há quem jure que o boto cor-de-rosa ataca canoas que transportem mulheres naqueles dias. Nos anos de 1950, pesquisadores da Universidade de Harvard injetaram sangue menstrual em animais. As mortes ocorridas não foram interpretadas como resultantes de infecções bacterianas, mas provocadas por improváveis substâncias tóxicas, às quais deram o nome de menotoxinas, que seriam toxinas que apareceriam no sangue menstrual.

Associar a menstruação às impurezas é crença presente em diversas culturas. O mesmo preconceito está por trás da dificuldade que as mulheres têm em tocar nesse assunto, em geral restrito à intimidade entre elas.

A falta de pesquisas pra desvendar a natureza de um fenômeno biológico que interfere com o cotidiano de metade da população, durante décadas, é reflexo do valor que a sociedade atribui ao sofrimento das mulheres e do comportamento autoritário que os homens insistem em manter para subjugar os desígnios do corpo feminino.

Se nós sofrêssemos as cólicas e os desconfortos comportamentais no período menstrual, aceitaríamos com passividade a justificativa de que “isso é coisa de homem”?

Semanalmente estarei aqui para contar Outras Histórias. A trilha sonora foi feita pela In Sonoris e a produção é da Júpiter – Conteúdo em Movimento.

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