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Violência sexual na infância: como prevenir?

Saiba quais são os principais pontos de atenção, o papel dos pais e a importância da escola e da educação sexual na proteção das crianças e no combate à violência.
Publicado em 12/10/2022
Revisado em 11/10/2022

Saiba quais são os principais pontos de atenção, o papel dos pais e a importância da escola e da educação sexual na proteção das crianças e no combate à violência.

 

As crianças são um grupo muito vulnerável da sociedade e, sendo assim, estão sujeitas aos mais diversos tipos de violência, incluindo a violência sexual. Os dados são assustadores, mas é importante dar visibilidade ao tema para conscientizar a sociedade como um todo e fomentar a criação de políticas públicas que visem proteger as crianças e os adolescentes. 

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, cerca de 60% dos casos registrados de estupro ocorrem com crianças de até 13 anos de idade – vale destacar que qualquer ato sexual com menor de 14 anos é crime, mesmo que haja consentimento real ou presumido da vítima.

Em mais de 82% desses casos, o abusador é alguém conhecido da vítima, quase sempre um familiar, como pais, padrastos, avós, tios ou irmãos mais velhos. Em mais de 76% dos casos, a violência acontece dentro de casa. 

Em relação ao gênero, 85% das vítimas são meninas. A maioria é branca (49,7%), seguida por meninas negras (49,4%), mas o próprio levantamento traz a hipótese de uma possível subnotificação nos casos de violência contra meninas negras, já que as mulheres negras são as principais vítimas de violência doméstica e feminicídio no Brasil. 

A identificação e notificação dos casos é fundamental, mas o trabalho de enfrentamento à violência começa muito antes, com medidas de prevenção importantes e informações que visam educar pais, cuidadores e profissionais que lidam com a infância com o objetivo de proteger as crianças. 

 

Medidas de prevenção 

De acordo com Caroline Arcari, escritora, pedagoga e pesquisadora em enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, a literatura mostra que a prevenção desse tipo de violência pode ser feita em três níveis: primário, secundário e terciário.

 

Prevenção primária: 

A prevenção primária refere-se a toda informação que é passada para a sociedade, para que as pessoas entendam o que é a violência sexual e saibam que podem denunciar um caso a partir da suspeita e não da confirmação. “Inclusive, a nossa legislação estabelece como um dever de todo cidadão, de qualquer profissional que trabalha com a infância, encaminhar a denúncia a partir da suspeita”, explica. 

A prevenção primária também inclui a construção de políticas públicas e serviços de prevenção que também devem levar informação para a sociedade. A rede de proteção – formada por escola, segurança pública, serviços e de assistência social e serviços de saúde – também é responsável por disseminar informações sobre prevenção da violência sexual. 

 

Prevenção secundária:

A prevenção secundária consiste no trabalho de detectar possíveis vítimas para notificar os casos e interromper a violência. Isso é feito, por exemplo, por meio da formação de educadores e profissionais da rede de proteção, para que possam reconhecer os possíveis sinais no comportanto das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Profissionais capacitados têm maior probabilidade de identificar quando as crianças precisam de ajuda. 

“E também na prevenção secundária, a gente tem todo o atendimento às vítimas. Esse é um atendimento da família toda para que haja uma reeducação sexual, para que a criança seja protegida, para que ela não tenha contato com o agressor, para que ela tenha o apoio da família e o apoio da escola para poder se ressignificar e enfrentar toda a violência que passou”, afirma a especialista.

 

Prevenção terciária: 

A prevenção terciária ocorre no âmbito da responsabilização dos agressores, no fortalecimento da legislação para que as vítimas sejam atendidas com qualidade e para que não haja revitimização – quando o estado não tem um bom fluxo de atendimento.

“Se a gente não tem serviços que estão bem articulados, o que pode acontecer é os serviços fazerem a criança recontar. Então, por exemplo, se a criança revela violência sexual na escola e ela precisa de novo revelar para o conselheiro tutelar, e depois revelar para delegado, e depois revelar para a assistente social, a gente está revitimizando a criança. Um bom fluxo de atendimento em um município faz com que a criança fale apenas uma vez. Um bom relatório é construído para que essa criança só seja ouvida, se necessário, no âmbito do Judiciário, no depoimento especializado”, esclarece Caroline. 

A lei 13.431, de 2017, estabelece que a criança precisa ser ouvida na chamada escuta especializada. Isso significa que qualquer profissional da rede de proteção deve estar capacitado para colher uma revelação espontânea e para fazer um bom relatório caso perceba algum sinal de violência sexual e precise fazer a notificação. “Essa prevenção precisa ser feita em conjunto, ou seja, uma grande rede de proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente precisa estar bem articulada. E aí com todas essas instâncias da prevenção, a gente consegue completar esse enfrentamento.”

Veja também: Negligência é a forma de violência mais comum contra crianças e adolescentes

 

Sinais de alerta

Grande parte dos casos de violência sexual não apresenta sinais físicos, aponta Caroline. Por isso, é preciso prestar atenção principalmente às mudanças de comportamento na criança, como: deixar de brincar; mudar o padrão alimentar (comer demais ou parar de comer); não socializar como antes; começar a ir mal na escola; ter problemas de memória; voltar a fazer xixi ou cocô na cama; e voltar a chupar a dedo. 

Os meninos tendem a ficar muito agressivos na escola, e as meninas em geral ficam mais apáticas. “Não porque isso é uma forma biológica de reagir. Isso é cultural, é socialmente construído”, destaca a escritora. 

No caso dos adolescentes, eles também podem começar a se autolesionar, se cortar, fugir da escola ou procurar brigas na escola.

“Mas a gente não pode somente contar com esses sinais. Tem criança que é abusada há tanto tempo que a gente simplesmente não vê mudança no comportamento. Uma criança, por exemplo, que é abusada dos três aos dez anos por um familiar, por um tio, por um pai, talvez ela não demonstre mudança de comportamento, porque para ela é tão corriqueiro que ela não vai revelar nada diferente.”

Nesses casos, a única forma de a criança entender o que está acontecendo com ela e revelar para um adulto de confiança é através da educação sexual. “Ela precisa que tanto a família quanto a escola providencie espaços seguros para que ela possa construir essas ferramentas de autoproteção”, afirma a pedagoga. 

A dra. Luci Yara Pfeiffer, pediatra e presidente do Departamento Científico de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também destaca alguns pontos de atenção: crianças que demonstram atitudes ou atos sexuais acima do esperado para a idade, o que indica que estão sendo expostas a conteúdos sexuais, seja por meio direto ou via internet; adulto que cria situações de isolamento, intimidade progressiva com a criança, se coloca como protetor ou exige exclusividade de sua atenção; crianças com sinais de atraso no desenvolvimento e desinteresse pelas atividades de sua faixa etária; e crianças que aparecem com presentes de vários tipos e valores, sem explicação para tal.

Em relação aos sinais físicos, quando estão presentes, podem ocorrer infecções urinárias de repetição, infecções na área genital, infecções sexualmente transmissíveis (IST) – que são um sinal direto de violência sexual –, lesões em área genital e, na adolescência, aborto ou gravidez.

 

Educação sexual é ferramenta de proteção

Segundo Caroline, a educação sexual consiste nas ferramentas construídas junto das crianças e dos adolescentes para o exercício da sexualidade. “Eu costumo dizer que a sexualidade – longe de ser definida como ato sexual ou prazer sexual – é, na verdade, a busca do bem-estar na relação com a gente e com o outro. A relação sexual é apenas uma forma de bem-estar em fases específicas da vida: adolescência, vida adulta e terceira idade. Mas a sexualidade está presente desde o momento do nascimento”, afirma. 

A educação sexual começa, portanto, quando a sexualidade está presente, ou seja, desde o nascimento. E isso acontece através da família. “No momento da troca de fralda, essa criança precisa saber desde pequenininha o nome das partes íntimas. A criança aprende, por exemplo, a falar “mamãe” ou “papai” de tanto a gente falar. Então, como é que a criança vai aprender sobre as partes íntimas? Do mesmo jeito que ela aprende o que é a mãozinha dela, o que é a orelha, o que é o bumbum, o que é a barriga. É a gente falando, no momento do banho, na troca de fralda dizer: ‘olha, eu estou trocando a sua fralda, agora vou colocar pomada na sua vulva ou na sua pepeca’. Pode-se falar para a criança tanto os nomes formais, científicos, quanto o apelido, não tem problema ter o apelido, se o adulto prefere assim. Até porque a gente fala xixi e cocô, por exemplo, são termos que vem para facilitar a criança aprender também sobre essas funções.”

Mas esse tipo de educação precisa ir além das palavras. A forma como o corpo da criança é tratado também é importante. Por exemplo, quando a criança demonstra que não quer ficar no colo do Papai Noel, não quer dar beijo ou abraço em alguém, isso precisa ser respeitado. “Quando a gente respeita o que a criança está expressando, a gente também está fazendo educação sexual. A forma como o adulto trata essa criança, o respeito que ele dirige a ela, a forma como ele vai verbalizando também sobre as funções do corpo, sobre o que a criança precisa saber, tudo isso a gente chama de educação sexual.” 

É preciso diferenciar o contato físico da educação. Muitas vezes, alguns familiares acabam forçando a criança a interagir com uma pessoa – seja conhecida ou não – porque acham que, do contrário, ela será vista como mal-educada. “A gente tem que evitar esses extremos: ou forçar a criança ou deixá-la ser mal-educada. A gente pode ensinar a criança a ser simpática de várias formas, e ela não precisa necessariamente ter contato físico com as pessoas para isso”, diz a especialista. Ela pode mandar um beijo de longe, se quiser, pode dar um “oi” de maneira gentil ou mandar um tchauzinho, por exemplo. 

“Se a gente força a criança a ter contato físico com as pessoas, a gente está sim criando um comportamento vulnerável. Se a gente força, a gente está dando o recado de que o corpo não é dela. Aí não adianta vir com estratégias de autoproteção para falar ‘o corpo é seu’. Será mesmo que o corpo é da criança, se os adultos estão o tempo todo forçando contatos e afetos que a criança nem queria receber?”, questiona. 

Basta imaginar a mesma situação acontecendo com você, adulto: você gosta de sair abraçando pessoas que não conhece? Provavelmente, não. “Como é que um adulto que está conhecendo o outro se expressa? Às vezes, a gente dá um ‘oi’ de longe mesmo, a gente estende a mão quando quer ser formal, porque o adulto logicamente valoriza as próprias vontades. A criança também tem que ter esse direito. Entre simpatia e autoproteção, a gente vai focar na autoproteção”, destaca Caroline. 

Veja também: Isolamento e violência doméstica | Entrementes

 

O papel dos pais e cuidadores

O primeiro passo para que pais e cuidadores atuem no combate à violência sexual é ter um bom vínculo com a criança. “Se há um bom vínculo, se há uma educação respeitosa, sem uso de violência, sem uso da palmada, existe maior probabilidade desse vínculo estar saudável e da prevenção ser feita com eficácia”, afirma Caroline.

Segundo a especialista, estatisticamente, crianças que sofrem violência física em casa tendem a se calar quando estão passando por uma situação de violência sexual, pois elas se sentem culpadas e acreditam que vão apanhar caso revelem o ocorrido. “As pesquisas têm mostrado que as crianças que são educadas sem o uso da violência, sem a suposta disciplina que recorre à palmada, têm maior probabilidade de revelarem o abuso sexual para os cuidadores, para algum familiar, e de buscarem ajuda.” 

Por isso, é muito importante que os pais e cuidadores busquem ter uma boa relação com a criança, conversar sempre, saber como é o dia a dia dela, mostrar que acreditam nela e validar os seus sentimentos e falas. Infelizmente, muitos adultos desqualificam o relato da criança e acham que ela está mentindo ao relatar algum abuso, o que é muito incomum. 

“As pesquisas também têm mostrado que em menos de 3% dos casos a criança pode estar mentindo, ou que está relatando alguma memória implantada. Na grande maioria das situações, quando a criança revela ou busca ajuda, ela de fato está falando a verdade. Então, cuidadores e familiares precisam estar bem informados, precisam validar os sentimentos da criança, tratá-la com afeto, com carinho, mas também lembrar que ela é um sujeito de direitos e é assim que ela deve ser educada”, completa Caroline.

A dra. Luci destaca algumas medidas práticas direcionadas aos cuidadores, como não deixar as crianças sozinhas em casa ou em locais públicos e orientá-las a não conversar com estranhos e nem aceitar convites ou coisas de pessoas que seus pais ou responsáveis não conheçam. 

“Da mesma forma, os pais ou responsáveis não podem deixar suas crianças sob cuidados de terceiros que não conheçam bem e saibam de seus comportamentos usuais com crianças e adolescentes. É preciso muito cuidado com a terceirização do cuidar, porque a criança não tem como se defender de qualquer tipo de violência, nem física e nem psiquicamente”, afirma a médica. 

 

Qual é o perfil do abusador? 

Como já mencionamos no início da matéria, a imensa maioria dos casos de violência sexual contra crianças é cometida por uma pessoa conhecida. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 95% dos criminosos são homens e em 40% dos casos, o abusador é o pai ou o padrasto da vítima.

É necessário que as pessoas saibam que o abusador não é um homem que pega a criança na rua para fazer maldades. Ele está dentro de casa, e em geral é alguém que a criança gosta e confia. “O abusador é na maioria das vezes um adulto confiável – confiável no sentido de que a família confia, de que a criança convive. Muitas vezes, ela tem uma relação de afeto, de amor por esse adulto”, comenta Caroline. 

As mães e avós raramente estão envolvidas. “Normalmente, quando elas aparecem na estatística como abusadoras, elas estão em um processo de omissão ou de facilitação da vítima para o seu agressor. Às vezes, são mães que sofrem violência doméstica, que se ausentam ou que sabem, mas não buscam ajuda.”

Outro ponto que é importante destacar é que, segundo a especialista, nem sempre o abuso vai causar dor na criança, vai machucar ou deixar marcas. Muitas vezes, o agressor consegue o silêncio da vítima tocando-a de forma “gentil”. “Ele cria uma situação muito lúdica. Normalmente, ele não tenta penetração, não pega a criança à força. O que ele faz é comprar brinquedos, presentes, ser muito presente para criança, dar muito afeto. O agressor não só comete o abuso sexual, ele cuida da criança, faz carinho no cabelo, senta no chão para brincar com ela e também comete o abuso. E quando ele comete o abuso, ele faz com um toque gentil que faz com que a criança ache que aquilo é carinho.” 

O livro “Pipo & Fifi” (Editora Caqui, 2012), escrito por Caroline, foi criado justamente para orientar as crianças sobre o que não é normal nessas situações. A metodologia usa os termos “toque do sim” e “toque do não” para ensinar à criança quais toques são saudáveis e quais não são. 

“A gente não usa o termo “toque bom” e “toque ruim” porque, muitas vezes, o toque na situação de abuso sexual pode ser um toque bom. A criança vai entender como um toque bom porque é um toque prazeroso. Toque do sim é tudo aquilo que é saudável, que de fato simboliza um carinho, um cafuné, um cuidado, uma atenção, uma necessidade de higiene, de cuidado com a saúde. E o toque do não é quando o adulto toca nas partes íntimas da criança, pede segredo, e que não é para ajudar com higiene e saúde”, explica. 

Veja também: Educação sexual ajuda a diminuir vulnerabilidades das mulheres | Coluna

 

A importância da escola

Todas as informações relacionadas à educação sexual devem ser passadas de forma contínua, e isso pode acontecer formalmente ou informalmente. “Informalmente é como acontece na família. Tem um papo com a criança, ou está dando banho na criança e aproveita esse momento para orientar quem pode ou não pode dar banho nela, por exemplo; e tem o espaço formal, que é quando a educação sexual acontece na escola”, explica Caroline.

O papel da escola no enfrentamento à violência sexual é muito grande, porque a criança passa muito tempo nesse ambiente, e muitas vezes é através de uma brincadeira ou de um desenho que ela vai sinalizar que está vivendo alguma situação de abuso. E a equipe pedagógica tem ferramentas e está capacitada para reconhecer esses sinais e notificar o caso.

Além disso, se a imensa maioria das situações de violência sexual acontece dentro de casa, a educação sexual não pode ser tarefa somente da família. “Aí que vem a importância da escola. Se a criança está sendo abusada dentro do núcleo familiar, é na escola que a criança tem a oportunidade primeiro de aprender – o que pode, o que não pode, se os adultos que estão convivendo com ela estão se relacionando de forma respeitosa com ela – e o segundo ponto é que a criança tem na escola uma oportunidade de buscar ajuda.”

 

Consequências da violência sexual

A violência sofrida na infância pode deixar marcas a longo prazo se não for interrompida e tratada. “Muitas vítimas de violência sexual na infância não identificadas e/ou não tratadas do aspecto físico e psíquico seguem suas vidas com atraso global de desenvolvimento, dificuldades de aprendizagem, de relacionamento com seus pares, sendo as atitudes de autoagressão uma consequência bastante frequente”, afirma dra. Luci. 

Por isso, a pediatra destaca a importância de proteger as vítimas tanto dos danos físicos quanto psíquicos. “É preciso que a criança seja retirada do lugar de responsável pela violência sofrida, do lugar da culpa, e o dano físico imediatamente tratado, bem como o psíquico, pelo tempo que for necessário para que ela não carregue a culpa e nem a forte impressão que estará marcada para sempre, como pessoa de menor valor.” 

Porém, ela também ressalta sobre a importância de não reforçar a agressão como um dano permanente na vida da vítima. “A família deve ser também acompanhada, quando não é a agressora, para que não trate aquela criança como uma vítima para sempre, pois, como sobrevivente de uma agressão, ela deve ser valorizada pela capacidade de continuar a evoluir e seguir sua infância, sem que este ato violento seja interpretado como uma marca que levará para toda a vida”, finaliza a médica. 

Veja também: Como reconhecer e agir ao suspeitar de violência contra crianças

 

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