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Pediatria

Quais são os impactos da violência física na infância?

criança de costas, segurando urso de pelúcia. violência física na infância pode deixar sequelas físicas e emocionais
Publicado em 28/06/2023
Revisado em 04/07/2023

Ainda é grande o número de pais e cuidadores que usa a violência física como forma de correção na infância. Especialistas falam sobre os prejuízos desse ato.

 

Embora muitos acreditem que os primeiros anos de vida serão apagados da mente da criança, é justamente na primeira infância que a estrutura de sua personalidade se forma. Quando uma criança é vítima de violência, ela não apenas sofre no presente, como poderá ter consequências desse sofrimento por toda a vida.

Em um levantamento da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal divulgado em junho de 2021, 67% dos pais e mães participantes responderam ter, ao menos uma vez, recorrido a gritos, chacoalhões ou palmadas nos filhos (de 0 a 3 anos) durante a pandemia. 

Segundo publicação do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), 26% das crianças vítimas de maus-tratos têm menos de 5 anos. No primeiro semestre de 2022, foram mais de 120 mil registros de violações contra crianças de 0 a 6 anos, sendo que 84% delas foram cometidas por familiares como pai, mãe, madrasta, padrasto ou avós. Os dados incluem violência física, psicológica, sexual e negligência. 

A publicação destaca que a violência gera prejuízos ao desenvolvimento infantil que posteriormente se refletem na sociedade. Alguns desses prejuízos são danos físicos (como traumas, machucados e hematomas); estresse (que causa prejuízos ao aprendizado e à memória e aumenta o risco de doenças crônicas); e mudanças de comportamento (como agressividade, ansiedade e problemas de adaptação escolar). 

No Brasil, além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conjunto de normas que visa garantir a proteção aos direitos da criança e do adolescente, temos outras duas leis, mais recentes, voltadas para a proteção na infância:

  • Lei nº 13.010/2014, conhecida como Lei Menino Bernardo, que estabelece o direito de crianças e adolescentes serem educados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. A lei recebeu esse nome em referência ao caso de Bernardo Boldrini, que foi assassinado em 2014, aos 11 anos, no Rio Grande do Sul. Os acusados pelo crime são o pai e a madrasta. 
  • Lei nº 14.344/2022, batizada de Lei Henry Borel, que estabelece medidas protetivas específicas para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar, e considera como crime hediondo o assassinato de menores de 14 anos. A lei ganhou esse nome em referência ao caso de Henry Borel, que foi espancado e morto em março de 2021, aos 4 anos de idade. Os acusados são a mãe e o padrasto. 

A Lei Menino Bernardo completou 9 anos no último dia 26 de junho, data que, desde a sanção da lei, passou a celebrar o Dia Nacional pela Educação sem Violência. 

        Veja também: Negligência é a forma mais comum de violência contra crianças e adolescentes

 

A cultura da violência 

Mesmo com leis protetivas e especialistas e pesquisadores cada vez mais evidenciando os prejuízos causados pela violência na infância, ainda é grande a quantidade de pessoas que pratica ou normaliza esse ato. A questão que fica é: se a sociedade condena a violência contra adultos, por que ainda considera aceitável o uso da força física contra crianças? 

“Nós temos a lei, mas só a lei não basta para você mudar uma cultura. E temos uma cultura que trata a criança como se fosse um animal a ser domesticado. Nós temos cérebro, nós temos modo de pensar, e a criança vai constituindo, nos seus primeiros sete anos de vida, a sua estrutura de personalidade, e infelizmente poucos se atentam a isso em todas as classes sociais, em todas as classes de cultura, de etnia, de credo”, afirma Luci Pfeiffer, pediatra e presidente do Departamento de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas na Infância e Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Para a especialista, na nossa cultura, a criança por muito tempo foi tida como alguém de menor valor, e existe uma ignorância que é passada de geração para geração que propaga a ideia de que você precisa de violência para ensinar, para educar. “Felizmente a gente evoluiu, nós sabemos hoje que uma criança muito pequena tem memórias e que uma criança muito pequena tem condição de aprender sem sentir dor”, diz a médica. 

“Nossas experiências pessoais na infância trazem um impacto profundo na maneira como criamos os nossos filhos. E viemos de uma educação baseada no relacionamento verticalizado, as decisões aconteciam de cima para baixo, seguindo uma hierarquia. Se voltarmos um pouco à história, entre o século 16 e 19, as crianças eram educadas com uma formação inspirada no que a indústria praticava com os trabalhadores: vigilância, castigo, delação e disciplina”, explica a psicóloga infantil Ana Flávia Fernandes. 

A psicóloga destaca que o ECA foi criado em 1990, com o objetivo de acabar com o trabalho infantil e a exploração sexual de menores. “A partir de então é que a criança começou a ser vista como pessoa que tem sua própria voz, opiniões e experiências emocionais diferentes dos adultos. Essa forma de ver a infância tem muito suporte teórico e científico, porém, na prática, ainda está em processo de construção.”

A dra. Luci destaca ainda que a violência contra crianças é um problema presente em todas as classes sociais, mas as denúncias são mais frequentes nas classes menos favorecidas. “Eu digo que as paredes são mais finas e a coragem é maior.”

 

Impactos da violência física na infância

Os impactos da violência física – que normalmente acontece acompanhada da violência psicológica, que é aquela que consiste em gritos, ameaças e xingamentos – são os mais variados e vão depender, principalmente, da gravidade da violência.

Em casos considerados mais leves (como tapas, beliscões e puxões de orelha), um dos principais prejuízos é a dificuldade de aprendizado. Segundo a dra. Luci, é muito comum a situação, por exemplo, do cuidador que bate na criança e depois se arrepende, chora, e até pede desculpas. Mas como isso se repete com frequência, a criança fica confusa e não consegue distinguir o que é certo ou errado. 

“Ela vai ter os sintomas físicos da dor, vai ter a vergonha daquele pai ou daquela mãe, ou do adulto que a violenta de alguma forma – e os tapas e beliscões não vêm sozinhos, eles vêm com a fala, com esse olhar de ódio, de desprezo, de desvalorização – e com certeza é uma criança que vai ter dificuldade de aprendizado, porque a cabeça vai estar cheia. Qualquer um de nós que brigue com alguém e vá ter uma reunião logo em seguida, não consegue se concentrar. Então, a gente vai ter uma dificuldade de aprendizagem, e com isso toda uma sequência de prejuízos”, explica a médica. 

Em situações graves, as consequências também serão mais graves. Em seu trabalho com casos graves e gravíssimos de violência, a pediatra já lidou, inclusive, com tentativas de suicídio. “Imagine quando essa violência é extrema, e a criança não tem saída, ela não tem como, porque normalmente se você tem um pai e uma mãe agressores, você tem um histórico anterior, eles têm a história de pais que também agiram mal, que foram agressores. Então, essa criança é refém dos seus violadores.” 

E, como no caso das crianças que dão nome às leis, existem as situações em que a violência pode levar à morte. Segundo a SBP, foram registrados mais de 100 mil casos de mortes por agressão de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos entre os anos de 2010 e 2020 no Brasil. 

Uma das causas de morte é a chamada síndrome do bebê sacudido, que ocorre quando um adulto, com raiva, chacoalha uma criança pequena com muita força. Como o volume da cabeça é proporcionalmente maior do que o corpo, esse ato faz com que o cérebro se mova dentro da calota craniana e se choque contra essa região. Isso pode causar pequenas hemorragias e até levar à morte. A síndrome do bebê sacudido pode ocorrer em crianças de até 3 anos, em média, mas é mais frequente em bebês de poucos meses. 

        Veja também: Violência sexual na infância: como prevenir?

 

Sequelas emocionais e percepções distorcidas

A criança exposta à violência também está vulnerável a uma série de impactos emocionais, conforme explica Ana Flávia. 

“No corpo da criança não ficam registradas somente as marcas físicas da violência, mas também as emocionais, tais como, formação de identidade e autoconceito prejudicada, autoestima rebaixada, se mostra apreensiva, ansiosa, insegura, hostil e infeliz. Além disso, apresenta baixo rendimento acadêmico e déficit no repertório social, com tendência a ficar submissa, passiva ou agressiva.”

Segundo a psicóloga, quando um adulto bate em uma criança para repreendê-la, ele está ensinando a ela um conceito equivocado de como se resolve um problema: que a força física tem mais poder do que a comunicação e que amar é machucar o outro. “A criança deixa de gostar de si mesma, de achar que ela vale a pena, que é uma boa pessoa para os outros, uma boa filha, boa companhia e passa a acreditar ser merecedora de receber aquela violência e agressividade”, completa. 

A culpa é um sentimento comum em crianças vítimas de violência. De acordo com a dra. Luci, mesmo nos casos mais extremos de violência, muitas crianças justificam o ato de seus próprios agressores dizendo que “aprontam”. “Ela se sente culpada de não ser suficiente para o amor daquele pai ou mãe, avô ou avó que espanca. E desses agressores o que eu escuto é: ‘Doutora, isso que eu fiz não é nada’. Eu pergunto: ‘E o senhor, a senhora, como é que foi sua infância?’. E eles dizem: ‘Eu apanhei muito’. Eu chego a escutar absurdos do tipo ‘eu me arrependo das surras que eu fugi, porque se eu tivesse apanhado tudo que meu pai ou minha mãe queria me bater, eu ainda seria uma pessoa melhor do que eu sou’, de tão incrustado que está naquela pessoa o direito do adulto fazer com o seu filho o que quiser. E eles vão reproduzindo. E essa cascata a gente tem que interromper, a sociedade tem que rever seus valores de infância e adolescência.”

O que essas vítimas mais relatam, conta a médica, é a memória da dor, do olhar, da expressão de raiva, de desagrado de seus cuidadores enquanto lhes agrediam. 

“É muito claro que o adulto que bate, bate porque perdeu seu controle. Se tivesse controle, iria ver a covardia do seu ato. E é realmente um ato de covardia, uma pessoa de 60, 70 kg bater em uma criança de 5, 10, 15 kg. E o difícil também dessa nossa cultura é que muitos dos meios que deveriam ser de proteção, como a escola, como os de Justiça, têm isso dentro de si: ‘se o pai e a mãe bateram, estão certos’. Não estão. Essa é a cultura que nós temos que mudar e cada vez mais falarmos para que pensem: como alguém se dá o direito de bater, de espancar, de aplicar castigos violentos? Por que adultos se dão esse direito como se a criança fosse uma posse?”, questiona.

 

Consequências na fase adulta

O peso da violência não fica apenas na infância e na adolescência. Se não houver tratamento e acompanhamento adequado, as sequelas podem perdurar por toda a vida e impactar a saúde, a personalidade e os relacionamentos da pessoa que foi vítima de agressão. 

“Crianças que foram expostas à indiferença, abuso, negligência e agressividade, podem buscar relações que se configurem dessa mesma forma”, explica Ana Flávia. 

Mesmo que as memórias da nossa infância não sejam tão claras, as marcas da violências permanecem com as pessoas por anos. “Está tudo guardado. E isso vai aparecer quando alguma situação semelhante se aproximar daquilo que eu tenho guardado lá numa gaveta do meu inconsciente. Então, por isso nós temos pessoas que reagem de forma muito violenta, muito intensa, a pequenas coisas, mas elas só estão puxando do inconsciente coisas que foram insuportáveis e que por serem crianças não deram conta de elaborar, não tiveram ajuda para isso. Não temos tantas pessoas com depressão, com angústias, com síndrome do pânico à toa”, explica a dra. Luci. 

Além disso, muitas vezes essa violência gera uma espécie de dependência emocional no futuro, quando os filhos têm uma necessidade constante de aprovação dos pais. “Muitas vezes as crianças que são maltratadas pelos seus pais passam a vida inteira querendo satisfazer o desejo desses pais, o desejo de algo que eles não sabem. E assim, muitos não constroem sua vida, continuam ligados à família anterior, dependentes dessa família, esperando uma hora que afinal eles vão acertar.”

Quando há uma ajuda para elaborar os acontecimentos – geralmente com profissionais de saúde mental – não significa que as memórias serão apagadas, mas elas não vão interferir na conduta da pessoa. 

Sabemos que o comportamento violento é, frequentemente, passado de geração para geração. Os pais que batem normalmente foram crianças que apanharam. Por isso, é importante que os adultos que sofreram violência reconheçam o problema e, se for o caso, procurem ajuda especializada para lidar melhor com suas próprias dificuldades e traumas e, consequentemente, não repetir o mesmo ciclo com os seus filhos. Quem planeja ter filhos pode buscar atendimento (normalmente com psicólogo) antes mesmo de a criança nascer.

        Veja também: Para que serve a psicoterapia?

 

Educar sem violência é possível 

Muitas pessoas acreditam que, sem o uso da violência, não é possível ensinar limites às crianças. Dizer “sim” para tudo, obviamente, não é a melhor opção. Na verdade, fazer isso seria uma forma de omissão, pois a criança não tem a maturidade necessária para entender os riscos e prejuízos de seus atos. 

“Veja, vamos pensar numa criança de três aninhos, que quer mexer em algo que não pode. Eu não preciso ficar gritando à distância ‘não mexa!’, medindo minha força com a dela. Se ela estiver muito curiosa, ela vai querer muito mexer. Eu posso chegar perto, e dizer: ‘olha, isso é assim, isso machuca, por isso você não vai brincar’, e eu guardo aquela coisa. O que importa é o ato final, ela não mexeu. Eu não preciso gritar, eu não preciso espancar. Mas eu preciso oferecer meu tempo. Preciso escutar a criança: por que você quer mexer? O que te chamou atenção nisso? Eu posso explicar. Não tem como ensinar uma criança sem dar a ela o nosso tempo”, afirma a pediatra.

Além disso, ela diz que as regras da casa precisam ser claras e coerentes e bem explicadas para as crianças. “Nenhum ser humano precisa sentir dor para aprender. A gente pode ensinar conversando, com a palavra justa, coerente. Precisamos escutar e as crianças têm coisas maravilhosas para nos dizer.”

Conversar e explicar não significa que a criança vai aceitar tudo facilmente e não vai se frustrar, afinal, isso faz parte do desenvolvimento. “Uma criança que cresce entendendo o porquê das regras vai ter seus choros de cansaço, vai ter seus choros de quando a brincadeira não agradou, porque ela não tem como pensar como a gente, nós que vamos ensiná-la”, completa. 

Ana Flávia explica que existem muitos caminhos para construir uma relação de respeito mútuo, mas o principal é entender que é muito difícil os pais conseguirem estabelecer limites quando não estão emocionalmente conectados com seus filhos. 

“A disponibilidade emocional faz com que a gente exercite o músculo da empatia e perceba que as necessidades das crianças são diferentes das nossas. Isso não quer dizer que somente as delas são importantes e sim que por termos um cérebro mais evoluído que o da criança, temos mais capacidade de mantermos a calma e pensarmos em soluções que acomodem minimamente as necessidades de todos”, explica a psicóloga. 

 

Como denunciar a violência contra crianças

A proteção às crianças não é dever apenas da família, mas também do estado, da comunidade e da sociedade como um todo, conforme descrito no ECA. Segundo a dra. Luci, a denúncia deve ser feita mesmo em casos de suspeita. No caso dos profissionais de saúde, é obrigatório fazer esse tipo de notificação. Veja algumas formas de realizar a denúncia: 

  • Polícia (190): em casos de emergência (por exemplo, ao ouvir uma briga envolvendo crianças na casa de um vizinho), deve-se acionar diretamente a Polícia; 
  • Disque 100: serviço disponível em âmbito nacional que permite denúncias anônimas, mas é importante ter dados de endereço, nome da criança e dos pais (os estados podem ter números diferentes, então vale conferir o número na sua região);
  • Conselho Tutelar: se houver a suspeita de que a criança está sofrendo violência, a escola pode notificar o Conselho Tutelar sobre o caso; 
  • Ministério Público: casos graves também podem ser denunciados ao Ministério Público, que é o órgão máximo de proteção à infância. 

A dra. Luci ressalta que a maioria das cidades também possui redes de proteção à criança, portanto, é importante se informar, buscar orientações nos serviços públicos – como os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), por exemplo –, nas escolas, etc., para fazer uma notificação. A recomendação da especialista é que a denúncia seja feita sempre em dois serviços diferentes pois, assim, se um falhar, o outro poderá atender ao chamado. 

“Todos devem denunciar, mas não só denunciar. Se estão por perto da família, tentar orientar, tentar encaminhar para um tratamento, falar da importância de conversar. Às vezes, você tem pessoas que estão tão perdidas que uma palavra amiga de conforto e de dizer ‘olha o que você está fazendo’ pode ajudar muito”, afirma a especialista. 

Em casos graves, a criança precisa ser retirada daquela situação de risco. Nos casos em que há a possibilidade, os agressores também podem ser encaminhados para tratamento. 

“A criança precisa de ajuda. Todos nós temos que dizer não à violência, ela é algo que vem com a nossa cultura, mas que hoje pagamos um preço muito alto da violência da nossa sociedade, que transforma crianças e adolescentes em pessoas violentas. Nenhuma criança nasce agressiva. Ela nasce esperando o cuidado, e precisa do cuidado de todos nós. E às vezes é um olhar mais cuidadoso da professora, da escola, porque essas crianças vão ter sintomas. E o mais triste que a gente percebe é que muitas crianças só são encaminhadas para o tratamento porque estão incomodando o mundo adulto – porque ela é agressiva na escola, porque tem algum comportamento erotizado, porque quer bater nos outros. Quando ela incomoda, ela é encaminhada para tratamento. E a gente tem que encaminhar para tratamento toda a criança e adolescente que sofre violência, antes que ele tenha sintomas que vão violar o outro”, finaliza a médica. 

        Veja também: Como identificar e agir ao suspeitar de violência contra crianças

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