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Pediatria

Como os primeiros mil dias de vida impactam o envelhecimento

O processo de envelhecer começa muito mais cedo do que imaginamos. Especialista explica por que os primeiros mil dias são decisivos na longevidade

Mil dias para uma vida inteira. Essa é a frase que dá o tom da palestra de Alicia Matijasevich, pediatra com doutorado em Epidemiologia e professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) durante o evento Estadão Summit Saúde, realizado no mês de outubro na capital paulista. 

“O processo de envelhecer começa muito antes de 60, 70 anos, ou qualquer idade que a gente queira colocar. [Ele] começa mesmo antes de nascermos”, afirmou a especialista. 

Os primeiros mil dias consistem no período que vai da concepção até os dois anos de idade. Trata-se de um período crítico que define bases biológicas e sociais ao longo da vida. É nessa fase que acontece o desenvolvimento de órgãos e sistemas, o fortalecimento imunológico e cerebral, além do desenvolvimento motor, cognitivo e emocional.

 

Programação biológica e trajetórias de saúde 

Segundo Alicia, os primeiros mil dias de vida são compreendidos como um período de programação biológica e social, no qual há interações entre os genes e o ambiente que definem as trajetórias de saúde, desenvolvimento e envelhecimento.

“Quando estou falando de programação do desenvolvimento, quero esclarecer que não estou falando de determinismo biológico. A programação é um processo de adaptação onde o organismo em formação ajusta seu funcionamento conforme os sinais que recebe do ambiente. Esse processo é chamado de programação biológica. É como se o corpo aprendesse muito cedo a esperar certos ambientes e a se adaptar a eles, o que pode ter consequências positivas ou negativas, dependendo do ambiente em que o indivíduo se encontra.” 

Nos primeiros mil dias de vida, o organismo tem uma capacidade extrema de se adaptar às condições ambientais. Essas adaptações podem favorecer à sobrevivência ou aumentar o risco de doenças ao longo da vida. 

Veja um exemplo prático: imagine um feto que, durante a gestação, recebe pouca comida. Isso leva a um processo chamado de “fenótipo poupador”. Quando ele nasce, o cenário muda: há grande disponibilidade de alimentos. Ocorre, portanto, um descompasso entre o período fetal e pós-natal. “Esse descompasso leva ao maior risco de obesidade na vida adulta, de diabetes tipo 2 e outras doenças crônicas”, disse a médica.

Os primeiros mil dias são uma janela muito importante porque é quando o organismo é mais “plástico” e vulnerável às condições externas.

Veja também: Mitos e verdades sobre amamentação

 

Mecanismos biológicos 

Existem diversos mecanismos biológicos que explicam porque os primeiros mil dias impactam a forma como envelhecemos. Um deles é a epigenética. “O que são processos epigenéticos? É quando a exposição ambiental pode alterar a expressão funcional dos genes sem alterar a sequência do DNA. Essas ‘marcas epigenéticas’ funcionam como interruptores moleculares, ligando ou desligando genes em resposta a sinais ambientais”, explicou Alicia. 

Alterações epigenéticas podem ser produzidas, por exemplo, pelo fumo materno, traumas ambientais ou transtornos do clima. 

A pediatra lembra que, durante a fome holandesa (1944 a 1945), as gestantes expostas à desnutrição severa tiveram filhos que, mais tarde, apresentaram maior risco de doenças crônicas e cardiovasculares. Outros estudos apontaram ainda que essas pessoas mantinham alterações epigenéticas em genes envolvidos no crescimento e no metabolismo mesmo 60 anos depois da exposição intrauterina. 

“Outro mecanismo importante é o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA), principal sistema biológico de regulação do estresse. Durante os primeiros mil dias, esse eixo — que vai do cérebro até as glândulas adrenais — está em formação e é quando o organismo aprende como responder ao estresse”, informou a médica.

Em condições favoráveis, esse sistema é acionado diante de desafios, mas volta ao normal rapidamente. Porém, quando o bebê ou a gestante são expostos a estresse crônico, o eixo se torna hiperreativo. “A produção de cortisol e outras substâncias inflamatórias aumenta de forma persistente, afetando o metabolismo, o sistema imune e o desenvolvimento cerebral.”

O estresse tóxico deixa marcas epigenéticas e inflamatórias que, futuramente, aumentam o risco de depressão, doenças cardiovasculares e envelhecimento precoce. 

A nutrição e o crescimento físico estão entre os mecanismos mais conhecidos. O crescimento adequado nos primeiros dois anos de vida está associado a diversos benefícios de longo prazo, como maior estatura adulta, melhor desempenho escolar e maior produtividade e renda. Em contrapartida, o ganho de peso sem crescimento linear relaciona-se com um maior risco de obesidade e outras doenças crônicas. 

Ainda dentro da nutrição, o papel da amamentação é fundamental, garantindo benefícios para a saúde a curto, médio e longo prazo. “A amamentação é a intervenção isolada mais poderosa para promover saúde ao longo da vida”, destacou Alicia durante a palestra. 

 

Desigualdades sociais e políticas públicas

A pediatra explica que os mecanismos citados não ocorrem de forma isolada. Eles sofrem influência do contexto social, econômico e ambiental, refletindo e amplificando determinantes sociais de saúde. Além disso, as desigualdades acumuladas desde o começo da vida — seja em nutrição, educação, moradia, trabalho — impactam na velocidade do envelhecimento. 

“Essa é uma frase que muitos investigadores já falam: a desigualdade social tem expressão biológica. E as políticas públicas têm o poder de modificar essas trajetórias de saúde e envelhecimento ao longo da vida”, disse ela.

Nesse sentido, há diversos tipos de intervenções a serem feitas. As intervenções precoces incluem, por exemplo, suplementação pré-natal, apoio ao aleitamento, nutrição infantil, redução do estresse tóxico e fortalecimento de vínculos entre pais e filhos. “Intervenções nos primeiros anos de vida são as que dão maior retorno para a sociedade.”

Ela cita também intervenções ao longo da vida, como manutenção de ambientes saudáveis, oportunidades educacionais, condições de trabalho dignas e políticas de prevenção de doenças crônicas. “Mas [vale] lembrar que o envelhecimento saudável depende de políticas contínuas, não apenas de cuidados na velhice”, destacou. 

Há ainda as intervenções intersetoriais, que integram saúde, educação, assistência social e meio ambiente — como o Nurturing Care Framework, modelo promovido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que Alicia apontou como o mais completo para a primeira infância. 

A especialista diz que promover saúde desde o início da vida é investir em justiça social, desenvolvimento humano e envelhecimento saudável. “O envelhecimento saudável não é um processo biológico aleatório, é uma construção social que começa nos primeiros mil dias de vida”, concluiu.

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