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Retorno ao trabalho após tratamento do câncer: desafios, adaptações e direitos

Publicado em 06/02/2025
Revisado em 06/02/2025

Superar os desafios físicos e emocionais do retorno ao trabalho após o tratamento de um câncer exige suporte adequado e ajustes no ambiente profissional para garantir uma reintegração plena.

 

Receber um diagnóstico de câncer afeta a vida de qualquer pessoa. Afinal, o tratamento da doença altera a rotina, os planos e a forma como o paciente se vê no mundo, exigindo cuidados intensos à saúde. E quando a fase mais agressiva do tratamento termina, um novo desafio surge: o retorno à vida profissional.

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Para muitos, voltar ao trabalho representa um sinal de normalidade. No entanto, esse retorno nem sempre é simples. Os efeitos colaterais do tratamento, as limitações físicas e emocionais e a falta de compreensão no ambiente profissional são obstáculos que podem dificultar a reintegração.

Além disso, fatores socioeconômicos também influenciam na volta ao trabalho. Pessoas de classes sociais mais baixas costumam enfrentar desafios maiores, segundo especialistas, seja por causa da falta de suporte das empresas ou pela dificuldade em encontrar empregos que ofereçam condições adaptadas. 

 

Impacto do tratamento contra o câncer

O tratamento do câncer pode deixar sequelas que variam conforme o tipo de tumor e as terapias utilizadas, de acordo com o dr. Bruno Batista, oncologista clínico do Centro de Oncologia do Paraná (COP). Ele explica que os efeitos colaterais da quimioterapia, tipo de tratamento mais utilizado, podem incluir fadiga intensa, fraqueza muscular, formigamento, náuseas e diminuição da energia. “É como se a gente desligasse da tomada. A pessoa está lá ligada e, de repente, acaba a energia.” Esses efeitos podem impactar o desempenho de determinadas funções no trabalho.

A dra. Danielle Laperche, oncologista clínica e diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), diz que pacientes submetidos a tratamentos mais agressivos, como cirurgias complexas, também podem enfrentar sequelas físicas, como limitações de movimento ou dependência de colostomias, além de fadiga e alterações cognitivas. “Pacientes que ficam com sequelas de movimentos do braço, por exemplo, têm uma dificuldade bem maior de retorno ao trabalho.”

Além dos desafios físicos, os pacientes oncológicos também podem ter que lidar com questões psiquiátricas, como depressão e ansiedade, que dificultam a reintegração ao ambiente profissional. “Sintomas depressivos e ansiosos podem ser fatores que limitam e dificultam o retorno ao trabalho”, continua a dra. Danielle. 

Por isso, segundo o dr. Bruno, a decisão de voltar ao trabalho deve considerar a individualidade de cada pessoa. Ele cita o caso de uma paciente que faz quimioterapia semanal para câncer de mama e consegue trabalhar na maior parte do tempo, mas nos dois dias seguintes ao tratamento fica em casa devido ao cansaço extremo. 

“Ela combinou com a chefe e adaptou a jornada. Isso mostra que, com diálogo e flexibilidade, é possível conciliar tratamento e trabalho.”

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É preciso fazer adaptações na rotina

A adaptação da jornada de trabalho é fundamental para facilitar a reinserção do paciente, de acordo com os especialistas consultados. “Muitas vezes, a pessoa não consegue retomar as funções anteriores devido a limitações físicas ou cognitivas. Nesses casos, é importante que a empresa busque alternativas, como a realocação para funções menos exigentes ou a flexibilização do horário”, diz o dr. Bruno.

Aline Pimenta Ache, gerente geral da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), recebeu o diagnóstico de câncer de mama em 2017. Durante o tratamento, ela não deixou de trabalhar. “Fiquei um tempo em casa durante as sessões de quimioterapia, mas o retorno ao trabalho foi muito importante para mim. Precisava me sentir útil”, diz. 

Segundo Aline, que ficou livre da doença após sete anos de tratamento, o suporte no local de trabalho foi essencial nesse processo. “Desde o início, eu tive apoio. Meu presidente conversava comigo para entender minhas necessidades. Eu podia trabalhar de casa nos dias mais difíceis e voltar gradativamente. Tive muito apoio também dos colegas, o que fez toda a diferença.”

 

Mas essas adaptações nem sempre ocorrem

Embora a flexibilidade no trabalho seja essencial para a reintegração do paciente ao ambiente profissional, essa não é uma realidade para muitos. Um estudo publicado no final de 2018, na revista “Cancer”, revelou que apenas 29,1% das mulheres brasileiras com câncer de mama entrevistadas receberam ofertas de adaptação de seus empregadores. A pesquisa contou com a participação de 125 mulheres. 

Outra pesquisa, publicada em 2024 na “Cancer Research”, analisou o retorno ao trabalho após o tratamento. No total, os pesquisadores ouviram 461 mulheres com câncer de mama em estágio inicial entre junho de 2021 e maio de 2023. Das 266 mulheres que trabalhavam antes do diagnóstico, 31,2% não retornaram ao trabalho em dois anos. Um total de 53 (37,5%) relataram enfrentar dificuldades no regresso ao meio profissional.

“Isso tem um impacto tanto individual como social, porque muitas vezes os pacientes precisam retomar o trabalho devido à estrutura familiar, mas enfrentam diversas barreiras do próprio mercado de trabalho para que isso seja possível”, diz a dra. Danielle, completando que muitos precisam recorrer a benefícios governamentais e nem sempre conseguem se manter financeiramente, agravando ainda mais a situação.

 

Questões sociais

A classe social do paciente influencia diretamente na facilidade de adaptação ao trabalho, de acordo com especialistas. A dra. Danielle observa que trabalhadores com menos escolaridade e empregos operacionais encontram mais dificuldades, pois muitas dessas funções exigem esforço físico contínuo e não oferecem a possibilidade de ajustes.

“Pacientes com empregos administrativos muitas vezes conseguem uma adaptação mais simples, como trabalho remoto ou horários flexíveis. Já aqueles que dependem de funções braçais enfrentam uma barreira muito maior”, explica.

Para pessoas de classes mais baixas, a perda do emprego pode significar uma grande instabilidade financeira, tornando difícil continuar com o acompanhamento médico adequado, de acordo com a oncologista. 

 

Obrigações das empresas

Do ponto de vista das condições de trabalho, as empresas não são obrigadas a oferecer adaptações, como trabalho remoto ou redução da jornada, segundo o advogado Washington Barbosa, especialista em direito previdenciário, mestre em direito das relações sociais e trabalhistas e CEO da WB Cursos. “No entanto, o bom senso nesses casos sempre tem sido obedecido. Então é muito comum que os empregadores, mesmo sem a obrigação de reduzir e de adequar a jornada de trabalho, acabem fazendo isso.” 

Se a jornada de trabalho estiver impactando o tratamento, segundo o especialista, o paciente com câncer também pode também pedir  auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença) e até a aposentadoria por invalidez em casos mais graves. 

A empresa também não assegura a estabilidade no emprego, segundo Washington, e pode demitir a pessoa , sem justa causa, assim que ela retornar do tratamento. “A lei não trata esse assunto. Porém, o paciente pode procurar a Justiça do Trabalho, alegando que a demissão foi discriminatória. E há várias decisões favoráveis a esse aspecto que concedem a estabilidade da pessoa com câncer”, diz.

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Direitos dos pacientes com câncer 

Apesar de as empresas não terem obrigações específicas, os pacientes com câncer contam com uma série de direitos que podem facilitar tanto o enfrentamento da doença quanto a readaptação após o tratamento. 

A seguir, confira alguns dos principais. As informações foram compartilhadas por Stefano Ribeiro Ferri, especialista em direito do consumidor e saúde e assessor da 6ª Turma do Tribunal de Ética da OAB/SP, e extraídas do guia prático sobre os direitos dos pacientes com câncer, compartilhado pela advogada Renata Vilhena Silva, especialista na área de direito à saúde.

  • Direito ao benefício por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença): Segundo a cartilha, esse benefício é assegurado a “todos os trabalhadores que são segurados do INSS por período maior de 12 meses, que precisam ficar afastados por mais de 15 dias do trabalho em razão de doença”. O tempo total de afastamento é definido em perícia. 
  • Direito ao saque do FGTs e PIS/PASEP: No caso do PIS/PASEP, o saque é liberado para pacientes com neoplasia maligna ou por causa do diagnóstico de dependentes. Já em relação ao FGTS, a cartilha explica que “o trabalhador terá direito ao saque desde que esteja com sintomas da doença no momento do levantamento, independentemente de estar registrado, bastando ter saldo na sua conta vinculada”. 
  • Aposentadoria por incapacidade permanente: Conhecida como aposentadoria por invalidez, é concedida aos segurados do INSS que estão incapacitados permanentemente para o trabalho. No caso do câncer, não basta apenas ter a doença, mas deve ser constatada a “incapacidade laborativa de forma permanente para receber (o benefício)”, de acordo com o guia. 
  • Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF): A pessoa com câncer tem direito à isenção de imposto de renda. “Mesmo os rendimentos de aposentadoria ou pensão recebidos acumuladamente não sofrem tributação, ficando isento o doente de câncer que recebeu os referidos rendimentos”, segundo Stefano.
  • Contribuição Previdenciária ao INSS: Pacientes com câncer podem ter direito à isenção da contribuição previdenciária se forem aposentados por invalidez, de acordo com Stefano.

 

Dicas para facilitar o retorno ao trabalho após o tratamento do câncer

Algumas estratégias podem facilitar o retorno ao trabalho, segundo os especialistas consultados e a Aline, gerente geral da ABHH que tratou o câncer de mama por sete anos:

  • Planejamento gradual: Retornar ao trabalho aos poucos, negociando uma carga horária reduzida inicialmente. Isso pode ajudar na adaptação.
  • Diálogo: Conversar com o empregador e os colegas de trabalho sobre limitações e necessidades pode contribuir para um ambiente mais acolhedor.
  • Suporte psicológico: Buscar terapia ou grupos de apoio pode ajudar a lidar com o impacto emocional da experiência.
  • Adaptação: Se necessário, avaliar a possibilidade de realocação para funções compatíveis com as novas condições físicas.
  • Acompanhamento médico: Manter consultas periódicas é essencial para monitorar a saúde e ajustar as demandas do dia a dia.

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