Deixar questões técnicas sobre medicamentos, de responsabilidade da Anvisa, nas mãos de senadores, deputados e outros políticos pode comprometer a saúde da população.
Tenho uma sugestão a dar aos nobres deputados e senadores: façam uma lei para acabar com a Anvisa.
Livres da jurisdição da nossa agência responsável pela liberação ou proibição de medicamentos, vossas excelências ficarão à vontade para negociar diretamente com a indústria farmacêutica a aprovação de seus produtos.
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Faço essa afirmação, caro leitor, porque o Senado e a Câmara acabam de aprovar a comercialização de três inibidores de apetite que a Anvisa havia proibido em outubro de 2011: anfepramona, femproporex e mazindol.
Antes da proibição, o Brasil era o campeão mundial de vendas do femproporex. Esses inibidores de apetite não eram receitados apenas por endocrinologistas preparados para lidar com os efeitos colaterais. A maioria das prescrições vinha de ginecologistas, clínicos gerais, ortopedistas, dermatologistas e outros profissionais alheios à especialidade.
Médicos de conduta ética duvidosa prescreviam fórmulas magistrais em que essas drogas eram associadas a doses altas de hormônio tireoideano, diuréticos potentes, laxantes, benzodiazepínicos como o diazepam, protetores gástricos e o que mais a imaginação criadora lhes aconselhasse.
A decisão da Anvisa não foi tomada por capricho ou falta de informação. A conclusão foi a de que essas drogas não haviam demonstrado eficácia que justificasse o risco dos efeitos indesejáveis, e que a perda de peso causada por elas era pequena e restrita a poucos pacientes. Além disso, mesmo os que conseguiam emagrecer, geralmente engordavam ao interromper o tratamento.
A agência não estava sozinha: o mazindol fora retirado do mercado americano e europeu em 1999; a amfrepramoma, embora seja vendida nos Estados Unidos, tem a venda proibida na Europa; já o femproporex nunca recebeu aprovação legal nos Estados Unidos e foi proibido na Comunidade Europeia em 1999.
Como a sociedade pode confiar na agência encarregada de avaliar a qualidade e a segurança dos medicamentos no país, se aqueles que fazem as leis são os primeiros a desautorizá-la?
Na época, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia foi contra a proibição, com os mesmos argumentos defendidos hoje: 1) há poucos recursos farmacológicos para tratar a obesidade; 2) são drogas acessíveis à população de baixa renda, camada em que a epidemia de obesidade é mais grave; 3) a segurança teria ficado demonstrada por décadas de uso; as complicações seriam justificadas pelas doses elevadas e por associações formuladas com outros medicamentos, prescritas por médicos despreparados.
Se você, leitor, ficou indeciso para julgar de que lado está a razão, saiba que não está sozinho: com quase 50 anos de profissão, eu também me sinto confuso. É evidente que se trata de matéria controversa. Não é por acaso, que outros países enfrentam o mesmo dilema: proibir ou liberar?
O absurdo é entregar a decisão para deputados e senadores jejunos em assuntos médicos. Suas excelências não se dão conta de que o país dispõe de um órgão técnico, com profissionais treinados para analisar as evidências científicas que contrariam ou justificam a comercialização desses e de outros medicamentos.
Você se lembra do caso da fosfoetanolamina, a famigerada “pílula do câncer”?
Foi muito parecido. A Câmara e o Senado aprovaram o uso de uma droga que sequer fora submetida à análise da Anvisa. Na época, às voltas com um processo de impeachment, a presidente da república se apressou em sancionar a tal lei. Mais tarde, a Secretaria da Saúde de São Paulo gastaria cerca de R$ 10 milhões, para que o Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) comprovasse que se tratava de uma droga inútil.
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Agora a história se repete. O doutor Jarbas Barbosa, presidente da Anvisa, tem toda razão ao dizer: “Não concordamos com a liberação de medicamentos feita por lei. O papel do Congresso é outro: cobrar da Anvisa eficiência, transparência e acompanhar seus processos. Mas não substituir suas funções”.
A jornalista Claudia Collucci, especializada em saúde, também: “Há questões muito mais urgentes na saúde pública às quais os nobres deputados deveriam se ater, como a falta de remédios e as infindáveis filas de espera por cirurgias no SUS”.
Como a sociedade pode confiar na agência encarregada de avaliar a qualidade e a segurança dos medicamentos no país, se aqueles que fazem as leis são os primeiros a desautorizá-la?