No SUS, chegar ao diagnóstico e conseguir tratamento para neuromielite óptica é um desafio. Em especial para mulheres negras, as mais afetadas pela doença. Entenda.
“Pera aí, mas e se esse for o seu melhor?”. Sentada em uma cadeira de rodas, com a esperança inabalável de que iria melhorar, Mona Rikumbi foi questionada pela irmã. Da súbita dor de cabeça até o diagnóstico, a artista e técnica de enfermagem levou 14 anos para descobrir que o que a tinha levado à paraplegia era a neuromielite óptica (NMO). A partir daquela pergunta, ela entendeu: a vida continuava, mesmo se ela nunca mais voltasse a andar.
Mulher negra, periférica e então com 30 anos, Mona representa, assim, o grupo da população mais atingido pela NMO. Além disso, é o que mais enfrenta dificuldades para acessar tanto o diagnóstico quanto o tratamento, já que, no SUS, não existe uma linha de cuidados específicos para os cerca de 3 mil brasileiros que convivem com a doença.
Sequelas repentinas e irreversíveis: o que é a neuromielite óptica?
A neuromielite óptica é uma doença rara e autoimune que afeta sobretudo o sistema nervoso central. Quem tem a condição, produz um anticorpo chamado aquaporina-4 (AQP4-IgG), que ataca as proteínas responsáveis pelo transporte de água no cérebro, medula e nervo óptico. A consequência é o surgimento de inflamações, que resultam na morte de células e fibras nervosas da região.
A NMO se manifesta em surtos inflamatórios recorrentes e costuma instalar-se de maneira rápida. Um dia, surgem sintomas como dor no olho, vista turva, dor lombar e sensação de choques pelo corpo. Semanas depois, a pessoa pode perder completamente a visão e os movimentos.
As sequelas da neuromielite óptica são graves e cumulativas. Em até cinco anos após o início dos sintomas, mais de um terço dos pacientes podem ficar cegos de pelo menos um olho e metade deles fica paraplégico, necessitando de cadeira de rodas. Depois de um surto, os pacientes normalmente não se recuperam ou têm apenas uma recuperação parcial de suas capacidades.
“Quando a gente avalia a evolução natural da doença, 30% dos pacientes morrem em um período de três a cinco anos. É uma doença muito grave. Existem cânceres que não têm uma mortalidade tão alta”, compara a dra. Samira Luisa dos Apóstolos Pereira, neurologista e neuroimunologista do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Mulheres jovens negras são as mais atingidas pela NMO
A causa para essa doença ainda é desconhecida. O que se sabe, contudo, é que ela é nove vezes mais frequente em mulheres do que em homens, especialmente negras e asiásticas na faixa dos 30 anos. Existem, ainda, outros fatores de risco, como sedentarismo, obesidade e ter sofrido algum tipo de trauma craniano. Considerando que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 48% das famílias brasileiras são sustentadas por mulheres e 62% dessas mulheres são negras, o impacto da neuromielite óptica vai muito além da saúde.
“Elas são provedoras, muitas vezes mães solos, que carregam a família. O que a gente vê são pessoas que passam de cuidadoras à necessidade de serem cuidadas em menos de cinco anos. É uma doença que pode ter uma mudança muito dramática na vida dessas mulheres”, relata a especialista.
As dores de cabeça de Mona Rikumbi surgiram em 2000, quando ela estava prestes a completar 30 anos. Ativista do movimento negro, envolvida com a cultura de matriz africana e apaixonada pelo teatro desde muito nova, Mona havia interrompido a carreira na arte ao engravidar. Ela passou a trabalhar na equipe de enfermagem de um centro obstétrico, tentando garantir o sustento da família. Para trazer mais dinheiro para casa, conciliava três empregos na área.
No entanto, a cefaleia, que era muito forte e não passava nunca, levou Mona a procurar vários médicos. A maioria deles culpava a sobrecarga do trabalho ou o seu quadro de obesidade grau 3, sem dar muita atenção. Mesmo saindo de dois dos seus três empregos, a técnica de enfermagem não melhorou.
No Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo, ela enfim recebeu um diagnóstico: o de pseudotumor cerebral. Essa condição acontece quando a pressão dentro do crânio aumenta, provocando os mesmos sintomas de um tumor no cérebro, mas sem a presença dele. Pelos seis anos seguintes, Mona passou a receber punções seriadas, em que o líquido cefalorraquidiano excedente era retirado no hospital, fazendo as dores diminuírem temporariamente. Mas esse tratamento também parou de funcionar.
A opção foi fazer outro procedimento, que envolvia a implantação de um cateter para controle da pressão intracraniana. Apesar de inicialmente aliviar as dores, a intervenção começou a apresentar complicações, o que levou Mona de volta para o centro cirúrgico mais seis vezes. Na sétima, ela voltou sem o movimento das pernas. No entanto, como a ressonância não demonstrava nenhuma lesão na medula, os médicos acreditavam que ela logo iria melhorar.
“Eu saí do hospital em cadeira de rodas, mas com a promessa de que eu ia melhorar. Só que não foi melhorando. Foi piorando, né? Eu ainda conseguia arrastar um pouquinho a perna, sentir o xixi, perceber o cocô, sentir a temperatura. Mas tudo isso foi ficando incompetente. Eles falaram que a medula tem o tempo dela, pode ser em cinco minutos, cinco dias ou 50 anos. Eu nem pensei nos 50 anos, no máximo, 50 dias”, lembra Mona.
Em 2009, a artista sofreu uma mudança drástica. Ela só conseguia mexer os olhos, engolia com dificuldade e respirava o tempo todo com a ajuda de aparelhos. Mesmo se recuperando parcialmente, as infecções passaram a ser recorrentes, desencadeando, como resultado, surtos que deixavam novas sequelas. Durante cinco anos, a equipe de neurocirurgia e neuroclínica do hospital estudaram o caso de Mona até chegar ao diagnóstico de neuromielite óptica.
“Aí tudo já tinha acontecido. Eu já estava sem andar, já tinha perdido o esfíncter urinário e anal e a minha visão periférica também já estava lascada”, conta.
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Não existe teste diagnóstico para NMO no SUS
A situação de Mona parece atípica, mas não é. A demora para chegar ao diagnóstico correto é o principal fator que atrapalha a chance de recuperação dos pacientes com neuromielite óptica.
Em 41% dos casos, há erro inicial no diagnóstico, que se confunde com o de esclerose múltipla (EM). Até 1980, a NMO era considerada uma variante da esclerose. Hoje, sabe-se que são duas coisas diferentes: a EM, por exemplo, é mais comum em pessoas brancas e tem caráter degenerativo — ou seja, vai piorando com o passar do tempo.
Além disso, há uma distinção fundamental, que tem a ver com a dosagem de anticorpos aquaporina, exame responsável pela identificação da neuromielite óptica.
“Depois que o anticorpo foi descrito e estudado, nós tivemos várias pesquisas nessa área mostrando que ele está presente em 80% das pessoas que têm NMO e em 0% das que têm esclerose múltipla. Então, quando ele está presente, a gente fecha o diagnóstico de NMO”, explica a neurologista.
Quando há um erro, o uso de tratamentos para esclerose múltipla pode agravar o quadro do paciente, aumentando o risco de paralisia e cegueira, e até levar à morte. O exame diferencial é simples, feito a partir da coleta de sangue do paciente que vai para análise em laboratório. No entanto, ele não está disponível no SUS, apenas em clínicas particulares.
“A NMO não tem linhas de tratamento no Ministério da Saúde. Portanto, [o exame] não está disponível em todas as unidades do SUS. Ele pode ser encontrado no Hospital das Clínicas ou em um hospital terciário, mas deveria ser acessível para todos os médicos que suspeitam do diagnóstico. Um médico de saúde da família encaminha para o neurologista da rede primária e o neurologista não consegue fazer o teste. Ele só consegue fazer se mandar para o HC, e isso atrasa o diagnóstico do paciente. É algo que eu considero grave, porque é a falta de acesso para uma população predominante preta e parda que é atendida na rede”, critica a dra. Samira.
De acordo com o IBGE, 70% das pessoas que utilizam os serviços do SUS são mulheres, e 60,9% delas são pretas ou pardas.
Para Mona, que só descobriu a NMO 14 anos depois dos primeiros sintomas da doença, o diagnóstico foi essencial:
“Chegou para mim como um divisor de águas, não como um atestado de óbito. Eu não conhecia, né? Mas me deixou muito melhor do que eu estava, me conscientizando e entendendo que o que foi, foi. Eu não choro o que eu perdi, eu vejo o que ficou”, ressalta a artista.
Outros exames complementares para a doença envolvem a ressonância magnética, a análise do líquido cefalorraquidiano e testes de função visual.
Tratamento da neuromielite óptica: a última e maior barreira
Assim que recebeu a notícia, Mona logo começou o tratamento com azatioprina, medicamento que, segundo ela, a fez ter qualidade de vida. Como a NMO não tem cura, o objetivo dos tratamentos é justamente esse: atuar na prevenção de novos surtos e retardar a progressão de incapacidades.
Durante a fase aguda, que é quando a pessoa tem um surto (apresentou perda de visão ou diminuição de força na perna há poucas semanas, por exemplo), a indicação abrange corticoides, imunossupressores e plasmaférese. A plasmaférese é uma espécie de diálise que filtra os anticorpos e “limpa” o plasma sanguíneo através de sessões feitas no hospital.
Depois, o paciente deve receber, o quanto antes, medicamentos que reduzam o risco de um novo surto, os quais serão mantidos para o resto da vida. O inebilizumabe, o ravulizumabe e o satralizumabe têm indicação na bula para neuromielite óptica e são aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Já a azatioprina, bem como o micofenolato, o rituximabe e o tocilizumabe, são de uso off label — isto é, foram desenvolvidos para outras doenças, mas também podem ser utilizadas para a NMO.
O problema é que, on label ou off label, nenhum desses medicamentos está disponível no SUS.
Estudos recentes demonstraram que 82,7% dos pacientes que foram tratados com inebilizumabe por pelo menos quatro anos permaneceram livres de surtos. Em junho de 2024, houve a submissão do medicamento para análise do Conitec, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, mas a comissão deu parecer negativo à inclusão do medicamento. Entre os motivos discutidos pelo órgão estão questões orçamentárias, incertezas sobre as atuais evidências científicas e também a necessidade de inclusão do teste diagnóstico AQP4-IgG com prioridade em relação ao medicamento.
“Mas quem tem que disponibilizar o exame de anticorpo para diagnóstico é o próprio Ministério da Saúde. Então quer dizer que se a gente não tem como diagnosticar, não podemos liberar o remédio para tratar?”, questiona a neurologista.
De acordo com a dra. Samira, a disponibilização do teste na rede pública se tornou o foco da luta das associações médicas e de pacientes. A ideia é que, assim, se possa avançar com mais rapidez no diagnóstico e na definição de protocolos de tratamento da neuromielite óptica pelo SUS.
Mona teve acesso ao seu tratamento em parte pela rede pública, em parte pela rede privada. Com os remédios, ela não teve mais surtos de NMO e reencontrou na arte o sentido da sua vida.
“Quando eu me sentei na cadeira, vieram todas as possibilidades de voar, de fazer o que eu quiser com o meu corpo. Eu me encontrei na dança em cadeira de rodas. Conheci outra forma de entender a arte, muito mais complexa e até melhor do que antes”, detalha.
Por fim, em 2017, a artista abriu e participou do espetáculo Sonhos, realização da Associação Fernanda Bianchini – Cia Ballet de Cegos. Foi assim, dançando, que Mona Rikumbi se tornou a primeira mulher negra cadeirante a subir nos palcos do Theatro Municipal de São Paulo. Hoje, ela também é uma das estrelas da segunda temporada de Viver é Raro, série documental que conta a história inspiradora da artista e de outros seis brasileiros diagnosticados com doenças raras, a fim de mostrar a importância da criação de políticas públicas para esse grupo.
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