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A meus colegas médicos | Artigo

Publicado em 18/04/2011
Revisado em 11/08/2020

Por conhecer de perto a realidade, médicos têm a obrigação de cobrar dos governantes a aplicação da lei do planejamento familiar.

 

Enquanto as mulheres com formação universitária têm em média 1,4 filho, as que vivem abaixo da linha de pobreza começam a tê-los na adolescência e não param mais. Existe modelo mais perverso?

Nós, médicos, conhecemos de perto essa realidade. Somos testemunhas da falta de anticoncepcionais nos postos do SUS e do calvário que as mães de muitos filhos percorrem na vã esperança de colocar DIU ou laquear as trompas.

Somos nós os responsáveis por esse descalabro?

Não, os principais culpados são os governantes que controlam as verbas públicas e definem prioridades e o poder de intimidação que a cúpula da Igreja Católica exerce sobre eles. Quando as autoridades eclesiásticas condenam o uso de qualquer anticoncepcional que não seja a obsoleta “tabelinha”, para os políticos é mais prudente esquecer essa história de planejamento familiar, coisa de gente pobre, uma vez que os mais abastados compram pílulas na farmácia, colocam DIU em nossos consultórios, fazem laqueadura e vasectomia nos hospitais particulares.

Embora sejam os maiores culpados, justiça seja feita, eles não são os únicos: a sociedade contribui com o silêncio. Parece que ninguém vê a molecada equilibrando bolinha nos faróis, as adolescentes grávidas da periferia, o número de crianças nas favelas. Somos cegos ou avestruzes?

 

Veja também:Leia um artigo sobre controle de fertilidade

 

Fiz uma série para a TV sobre o tema da natalidade, que me obrigou a viajar pelo país, visitar postos de saúde, conversar com colegas, autoridades e com muitas mulheres que dependem dos serviços do SUS. Fiquei horrorizado: nenhuma área da saúde pública é mais desprezada do que a da saúde reprodutiva da mulher! E é nesse ponto que entra a nossa responsabilidade.

Há colegas nossos nas linhas de frente que, apesar dos salários baixos e das condições precárias em que trabalham, conduzem programas de distribuição de anticoncepcionais, centros de orientação sexual para adolescentes e fazem o possível para agilizar a burocracia que inviabiliza esterilizações cirúrgicas.

Mas eles são poucos. Infelizmente, a maioria evita o envolvimento com o assunto e, assim, contribui para afunilar o gargalo que dificulta o acesso à contracepção.

Vou dar o exemplo da vasectomia e da laqueadura, procedimentos regulamentados pela lei federal 9.263, de janeiro de 1996, que raríssimos colegas conhecem, mas que garante o direito à cirurgia pelo SUS no caso de “homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos…”, desde que observados alguns requisitos legais.

Sabemos que, por falta de leitos públicos, entre a internação de uma mulher com um tumor uterino e outra para laqueadura o médico é forçado a escolher a primeira. É evidente que não me refiro a esses casos, mas àqueles em que nossa boa vontade é fator decisivo. Quantas vezes conseguimos resolver problemas dos pacientes nas condições mais adversas graças a nosso empenho pessoal?

A mãe de sete filhos aos 30 anos, que preenche todos os requisitos para a laqueadura e que espera anos sem ser chamada, quando tem a felicidade de ver o médico, muitas vezes ouve que ainda é jovem, que irá se arrepender, que o marido poderá morrer e ela casar com um rapaz sem filhos. A regra é fazer o possível para demovê-la da intenção e não mover uma palha para agilizar a paquidérmica burocracia dos hospitais públicos.

Isso, quando não lhe é dito ser proibido fazer laqueadura pelo SUS, argumento que os inescrupulosos utilizam para cobrar o procedimento “por fora”.

O desconhecimento generalizado da existência de uma lei federal que trata do planejamento familiar não enobrece nossa profissão. Por lei, todas as brasileiras em idade reprodutiva têm o direito de receber anticoncepcionais de graça pelo SUS. Isso inclui meninas de 11 anos que menstruaram pela primeira vez; mulheres e homens maiores de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos, que optaram por laqueadura ou vasectomia.

A justificativa de que o médico poderá enfrentar processos em caso de arrependimento não procede. Ser processado por acatar a lei? Nesse caso, correriam mais risco as esterilizações livremente realizadas em pacientes particulares, estes sim, com condições financeiras para pagar advogados.

As vozes paralisantes dos esquerdistas de porta de botequim, que interpretam a defesa do acesso universal à contracepção como tentativa de acabar com a pobreza impedindo o nascimento de pobres, bem como as imposições medievais da igreja não podem nos intimidar. Os próprios padres, quando em contato com a miséria de seus paroquianos, só não pregam abertamente a contracepção por impedimentos hierárquicos. Contrária a ela é a cúpula dirigente, há muito apartada de seus rebanhos, a mesma que comete o crime continuado de condenar o uso de camisinha num mundo em que 40 milhões de pessoas carregam o vírus da Aids nas secreções sexuais.

Sabedores de que muitos de nossos governantes são os primeiros a burlar as leis, nós, médicos, devemos cobrar deles a aplicação da lei do planejamento familiar. Apesar do aviltamento da profissão, ainda dispomos de algum poder: chefiamos postos de saúde, dirigimos hospitais, ocupamos secretarias municipais e estaduais e cargos importantes no Ministério da Saúde.

Se não esquecermos que a função primordial da medicina é aliviar o sofrimento humano, poderemos dar um exemplo à sociedade ao contribuir, de fato, para assegurar às pessoas mais pobres o direito de planejar o tamanho de suas famílias. Exatamente como fazemos com as nossas.

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