No Brasil, 72 milhões de pessoas apresentam morbidades relacionadas a remédios todos os anos, segundo estudos. Saiba como a farmacogenética pode melhorar o tratamento.
Algumas pessoas tomam medicamentos e vacinas e apresentam efeitos colaterais, como febre, vômitos e dores musculares. Outras, por outro lado, ingerem a mesma dose do remédio ou do imunizante, mas não apresentam nenhuma reação adversa. Parte do fenômeno pode ser explicado pela farmacogenética.
A área, que virou objeto de estudo no final da década de 1950, trata da influência dos fatores genéticos de cada indivíduo na resposta aos medicamentos. Além disso, busca entender como o conhecimento das características individuais de cada um pode ser usado para obter a melhor resposta terapêutica.
No Brasil, segundo um estudo de 2018 baseado em dados do Ministério da Saúde, 59% das pessoas que vão a consultas médicas e recebem prescrição de pelo menos um remédio no ano experimentam morbidades relacionadas a medicamentos. Em números, isso é o equivalente a 72 milhões de indivíduos.
Por que as reações adversas ocorrem?
Essas reações acontecem porque quando um remédio é desenvolvido pela indústria farmacêutica, ele é desenhado para que a maioria das pessoas responda à dose disponibilizada no mercado. No entanto, apesar de todo ser humano compartilhar 99,9% do DNA, 0,1% do material genético apresenta diferenças, e isso interfere na forma como reagimos às substâncias.
“Os medicamentos atuam em proteínas específicas do organismo, que são codificadas pelos nossos genes, mas mutações ou polimorfismos vão modificar os receptores nos quais eles se ligam para produzir efeito, e isso pode facilitar ou dificultar sua ação”, explica o médico Guilherme Suarez Kurtz, livre-docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador da Rede Nacional de Farmacogenética (Refargen).
Os genes são pedaços do DNA com instruções para a produção das proteínas, que são moléculas com inúmeras funções no corpo, como metabolizar os medicamentos. Já as mutações e os polimorfismos são alterações nesses genes. Quando ocorrem, essas mudanças afetam as proteínas geradas e, como consequência, sua função padrão.
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Diferenças genéticas
Uma das principais famílias de enzimas (tipo especial de proteína cuja função é acelerar reações químicas) que trabalham na metabolização de remédios é o citocromo P450 (chamado também de CYP450), composto por moléculas responsáveis por atuar em cerca de 90% dos remédios disponibilizados no mercado, segundo estudos. Indivíduos ou mesmo populações podem apresentar polimorfismos nessas proteínas.
Essas variações genéticas, segundo a bióloga Mara Helena Hutz, professora titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aparecem por causa da seleção natural, processo pelo qual as espécies se adaptam ao ambiente. “Elas surgiram em resposta ao ambiente de forma geral. Então são diferentes de pessoa para pessoa e de grupos individualizados, de acordo com suas histórias evolutivas.”
Um exemplo de como variações genéticas podem afetar grupos vem da Ásia. Foi constatado que um a cada cinco pacientes filipinos tratados com carbamazepina – medicamento muito usado no tratamento de epilepsia – desenvolve a síndrome de Stevens-Johnson, uma doença que provoca lesões cutâneas. O mesmo não ocorre em africanos e europeus, por exemplo. O motivo são os polimorfismos.
Por isso, o FDA, órgão que aprova os medicamentos e tratamentos nos Estados Unidos, recomenda que pacientes com ancestralidade asiática sejam testados antes de tomar o remédio e, caso necessário, seja utilizada outra substância como substituta.
Testes farmacogenéticos
Os testes farmacogenéticos entram nessa história, portanto, como ferramentas para auxiliar aqueles que não respondem de forma adequada a um fármaco por causa da dose ou devido aos efeitos colaterais. “Se o teste mostrar que uma pessoa é deficiente nas enzimas necessárias para metabolizar determinado medicamento, você pode mudar a dose ou dar um outro remédio”, diz a professora Mara.
Um estudo cruzado randomizado publicado neste ano mostrou que pacientes com resultados farmacogenéticos tiveram uma porcentagem menor (21%) de reações adversas em comparação com o grupo controle (27,7%) que recebeu tratamento padrão. Outra pesquisa chegou à conclusão que a economia de custos com a terapia guiada por farmacogenética pode chegar a até US$3,9 mil (cerca de R$19,4 mil) por paciente no ano.
Mas não são todos os testes no mercado que passam as informações úteis para o tratamento clínico, segundo o dr. Kutz. O que de fato tem aplicação e é consenso entre os especialistas, diz o médico, está nas diretrizes da área de farmacogenética, como no Consórcio para Implementação de Farmacogenética em Clínica (CPIC, na sigla em inglês). As pesquisas estão mais avançadas nas áreas de oncologia, psiquiatria, doenças infecciosas e cardiologia.
“Uma coisa é um laboratório mandar listas de polimorfismos genotipados (que tiveram as variantes genéticas verificadas) e para os quais na vasta maioria não há informação concreta de consenso de que isso vai ter impacto clínico. A outra é você demonstrar que essa associação tem relevância clínica e que justifica modificar o tratamento”, disse o dr. Kurtz, que também é pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Veja abaixo alguns casos em que a farmacogenética pode ajudar a reduzir riscos e efeitos colaterais.
Câncer
A tiopurina é um fármaco utilizado no tratamento da leucemia linfoide aguda (LLA), o tipo de câncer mais comum na infância. Boa parte das crianças precisa tomar o medicamento ao longo do tratamento. Cerca de 10% delas, no entanto, têm variações no gene que codifica a enzima que metaboliza o medicamento, o que impacta a toxicidade e a tolerância.
Por meio de um programa nacional que envolveu nove instituições federais, o dr. Kurtz analisou o DNA de crianças com LLA em busca das variações genéticas capazes de afetar o tratamento. “Emitimos então recomendação para reduzir a dose de tiopurina nessas crianças com os polimorfismos. Em alguns casos, em que a variação é maior, a redução chega a 10 vezes a dose padrão”, diz.
Psiquiatria
Variações genéticas também podem afetar a resposta a remédios psiquiátricos. Em 2018, por exemplo, o jornalista brasileiro Jorge Pontual disse em uma entrevista que se tratou da depressão por 40 anos com o medicamento errado. Ele só descobriu o problema após realizar um teste farmacogenético.
Uma avaliação sistemática de artigos sobre tratamentos com antidepressivos e antipsicóticos, guiados por informações genéticas individuais, apontou que há custo-benefício e economia quando a pessoa sabe previamente as informações genéticas individuais.
Cardiovascular
A varfarina é um dos anticoagulantes mais usados na prática clínica para prevenção e tratamento de coágulos sanguíneos (trombose). As variações genéticas dos indivíduos, no entanto, podem afetar a resposta ao medicamento. Por causa disso, a dose necessária do fármaco pode variar em até 20 vezes entre as pessoas por causa das características genéticas individuais, segundo estudos.
O clopidogrel é um medicamento normalmente prescrito para pessoas com stents, pequenos tubos de malhas colocados no interior de uma artéria com objetivo de evitar a obstrução do fluxo sanguíneo. Algumas pessoas têm variações no genes associados à produção de enzimas metabolizadoras desse fármaco. Como consequência, o remédio tem função reduzida e alguns indivíduos apresentam reações cardiovasculares adversas.
Em ambos os casos, as informações do DNA podem ajudar o médico a direcionar a dosagem do paciente e, se for preciso, substituir a droga.
Doenças infecciosas
Outro exemplo é o antirretroviral abacavir, indicado para tratamento da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) em adultos e crianças. Devido a questões genéticas, cerca de 8% dos indivíduos podem ter erupções cutâneas, diarreia, náusea, vômito e febre, além de outras manifestações. Com a genotipagem prévia, é possível indicar uma terapia alternativa para pacientes desse grupo.
Importante ressaltar que a genética não é o único fator a modular as respostas individuais aos medicamentos. Idade, sexo, patologias, gravidez, disfunções e etnia, por exemplo, também contribuem para a variabilidade.
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