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Autismo e paracetamol: o que a ciência realmente diz

OMS, Anvisa e Ministério da Saúde alertam para os riscos da desinformação e reforçam que não há ligação comprovada entre autismo e paracetamol

As recentes declarações do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, insinuando que o uso de Tylenol (paracetamol) durante a gestação poderia causar autismo, reacenderam boatos já desmentidos pela comunidade científica. Na prática, Trump apenas reforçou as declarações do secretário de Saúde de seu governo, Robert F. Kennedy Jr., conhecido por sua postura antivacina e por falas controversas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e entidades médicas internacionais e nacionais foram categóricas: não existe evidência que sustente essa associação.

 

O que sabemos sobre o autismo

O transtorno do espectro autista (TEA) tem origem multifatorial, mas a base genética é predominante. Leandro Thadeu Reveles, médico formado pela Universidade de São Paulo (USP), psiquiatra da infância e adolescência pelo HCFMUSP e especialista em análise do comportamento aplicada ao autismo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), explica que cerca de 81% dos casos são quadros hereditários, isto é, o indivíduo herdou genes dos pais que levaram ao diagnóstico. Cerca de 19% das pessoas sofreram mutações novas na formação do embrião, então se trata de um quadro genético, mas não herdado dos pais, ocorrendo exclusivamente naquela pessoa.

Marina Zotesso, doutora e mestre em psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), professora do Instituto Lahmiei da UFSCar, no curso de pós-graduação em ABA aplicada ao autismo, reforça que o autismo é multifatorial, sem um ponto único de origem. Fatores genéticos e ambientais interagem, especialmente durante a gestação. Cuidados pré e pós-natais, nutrição adequada e a redução da exposição a substâncias potencialmente prejudiciais podem ajudar a reduzir riscos, embora não exista prevenção comprovada. Tudo deve estar baseado em evidências científicas, nunca em suposições ou especulações.

 

Fatores ambientais: o que a ciência já reconheceu

Além da genética, existem elementos ambientais que podem aumentar o risco de TEA, embora representem uma parcela pequena dos casos. O dr. Leandro cita o uso do ácido valpróico durante a gestação, consumo de maconha, prematuridade grave (crianças nascidas antes de 32 semanas de gestação ou com peso inferior a 1500 gramas) e idade paterna avançada. “Esses fatores representam apenas cerca de 1% da população com TEA e não garantem que a criança desenvolverá autismo, apenas aumentam a probabilidade.”

Marina acrescenta que, além de medicações, há indícios de que poluentes e alguns agrotóxicos podem interferir no desenvolvimento fetal, mas nunca de forma isolada. “Nenhum estudo aponta um agrotóxico específico como único desencadeador do autismo. 

O risco depende da intensidade da exposição e da interação com fatores genéticos. Estudos sobre medicações, nutrição e poluentes estão em andamento, e os resultados ainda são inconsistentes, mas alguns fatores mostram associação com maior risco para má-formação ou alterações no desenvolvimento neurológico”, explica.

Veja também: Como diagnosticar o autismo na infância

 

E o paracetamol?

No caso do paracetamol, as principais sociedades médicas são unânimes: não há comprovação de que o medicamento cause autismo. Estudos observacionais podem indicar associações, mas não confirmam a causalidade.

“Não há evidência que justifique interromper o uso do paracetamol durante a gestação quando indicado por um médico”, afirma Marina. O dr. Leandro ainda reforça que o medicamento continua sendo considerado a primeira opção para tratar febre e dor em gestantes, quando usado de forma criteriosa.

No Brasil, a Anvisa também se manifestou sobre o tema. Em nota à população, a agência reguladora afirmou: “O paracetamol é um medicamento registrado no Brasil, indicado para reduzir a febre e aliviar dores leves a moderadas, como dor de cabeça, dor no corpo, dor de dente, dor nas costas, cólicas menstruais e dores associadas a resfriados. Não há registros no país de notificações de suspeitas de eventos adversos que relacionem o uso de paracetamol durante a gravidez a casos de autismo.”

Na mesma linha, o Ministério da Saúde alertou em nota à imprensa de que “o anúncio de que autismo é causado pelo uso de paracetamol na gestação pode causar pânico e prejuízo para a saúde de mães e filhos, inclusive com a recusa de tratamento em casos de febre e dor, além do desrespeito às pessoas que vivem com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias”.

 

O aumento nos diagnósticos

O aumento aparente no número de pessoas com TEA não significa que mais crianças estejam desenvolvendo a condição. “Mudanças nos critérios diagnósticos e maior acesso à informação têm ampliado o número de diagnósticos corretamente identificados”, explica dr. Leandro.

Além disso, Marina reforça que a ciência agora conta com instrumentos padronizados para avaliar sinais de autismo e protocolos robustos de diagnóstico. Antes, muitos casos eram classificados como outros transtornos ou permaneciam sem diagnóstico. “Hoje, maior conscientização, acesso a avaliações de qualidade e critérios ampliados permitem identificar corretamente esses casos”, acrescenta.

Em abril de 2025, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) apontou que 1 em cada 31 crianças de 8 anos nos Estados Unidos é autista. A divulgação desse dado levou Robert F. Kennedy Jr. a falar em “epidemia de autismo”. Especialistas esclarecem que essa interpretação é equivocada: o número reflete avanços diagnósticos, não aumento real de casos.

Veja também: Autismo em adultos: como lidar com o diagnóstico tardio

 

O impacto da desinformação

Falas de figuras públicas sem base científica podem causar sérios efeitos. “Quando informações especulativas são divulgadas como se fossem verdades, a ciência perde credibilidade, e muitas pessoas tomam decisões com base em fontes únicas de informação. Por exemplo, no caso do paracetamol, pesquisas publicadas não indicam risco de autismo, mas a população pode acreditar em boatos. Isso aumenta a desinformação e coloca em risco a confiança na ciência”, afirma Marina.

O psiquiatra complementa que declarações sensacionalistas podem desviar recursos de tratamentos eficazes, gerar culpa nos pais, levar a processos judiciais equivocados e atrasar intervenções validadas pela ciência.

 

Como gestantes podem se proteger

A recomendação é clara: seguir fontes confiáveis, como OMS, Anvisa e artigos científicos revisados, e sempre buscar evidências robustas antes de tomar decisões. “A opinião de um especialista, mesmo que seja o médico de confiança, não é igual a evidência científica. As evidências surgem de pesquisas grandes, sérias e principalmente de revisões sistemáticas com metanálise”, ressalta o psiquiatra.

Nesse caminho, o acompanhamento médico deve ser visto como central, mas nunca baseado apenas em percepções individuais. “Confie no acompanhamento médico, entenda a formação do profissional e peça referências e artigos que sustentem suas recomendações. Cada gestante é única, e decisões sobre medicações, alimentação e estilo de vida devem ser individualizadas. Evite agir com base em informações alarmantes ou sensacionalistas, que muitas vezes têm interesses políticos ou sociais”, orienta a psicóloga.

Veja também: Autismo em crianças em 5 perguntas

 

Em resumo

  • TEA tem base genética predominante e não está associado ao uso de paracetamol;
  • Fatores ambientais influenciam o risco de desenvolver o transtorno, mas representam uma parcela pequena dos casos (1%);
  • Exposição a medicações específicas, poluentes e agrotóxicos podem aumentar o risco, mas não há causalidade isolada comprovada e são necessários mais estudos;
  • O aumento de diagnósticos decorre da evolução dos critérios, conscientização e acesso à informação;
  • Segundo o CDC (2025), 1 em cada 31 crianças de 8 anos é autista, número que reflete avanços diagnósticos e não epidemia;
  • Boatos podem causar pânico, recusa de tratamento e desrespeito às famílias autistas;
  • A desinformação enfraquece a ciência e coloca famílias em risco.

 

Referências:

Pflugfelder, S., Gram, E. B., & Damkier, P. (2025). Acetaminophen in Pregnancy: A Population-Level Drug-Utilization Study of Prescription-Based Acetaminophen Use Among Pregnant Women in Denmark From 2001 to 2023. Basic & clinical pharmacology & toxicology, 136(6), e70048. https://doi.org/10.1111/bcpt.70048

Ahlqvist, V. H., Sjöqvist, H., Dalman, C., Karlsson, H., Stephansson, O., Johansson, S., Magnusson, C., Gardner, R. M., & Lee, B. K. (2024). Acetaminophen Use During Pregnancy and Children’s Risk of Autism, ADHD, and Intellectual Disability. JAMA, 331(14), 1205–1214. https://doi.org/10.1001/jama.2024.3172

Damkier, P., Gram, E. B., Ceulemans, M., Panchaud, A., Cleary, B., Chambers, C., Weber-Schoendorfer, C., Kennedy, D., Hodson, K., Grant, K. S., Diav-Citrin, O., Običan, S. G., Shechtman, S., & Alwan, S. (2025). Acetaminophen in Pregnancy and Attention-Deficit and Hyperactivity Disorder and Autism Spectrum Disorder. Obstetrics and gynecology, 145(2), 168–176. https://doi.org/10.1097/AOG.0000000000005802

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