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Os avanços e o futuro do programa de HIV/Aids no Brasil | Coluna

laço vermelho, símbolo da luta contra a aids
Publicado em 30/11/2018
Revisado em 11/08/2020

O Programa Nacional de HIV/Aids do Brasil é reconhecido como exemplo no mundo inteiro. No entanto, futuro das políticas para a área é incerto.

 

“Sua história e a história da aids estão, de certa forma, inextricavelmente ligadas”, afirmou a respeito de Freddie Mercury Mark Langthorne, um dos biógrafos do cantor da banda inglesa “Queen”, em entrevista recente à revista americana “HIV Plus”: ”

Mercury morreu em 1991, apenas três anos após receber o diagnóstico de aids,  em decorrência de uma pneumonia. O cantor, à época, revelou a poucos amigos que tinha a doença. Havia muitos motivos para manter a aids em segredo. O estigma que cercava aqueles que recebiam o teste positivo era implacável, reduzindo as pessoas a vítimas dignas de compaixão e repulsa. Quem viveu de perto a epidemia da doença nas décadas de 1980 e 1990 certamente se lembra do preconceito com que eram tratados os indivíduos que tinham HIV.

O tratamento da doença era extremamente limitado, restringindo-se a medicamentos antirretrovirais (havia apenas os inibidores da transcriptase reversa) que, usados isoladamente, tinham um impacto discreto na mortalidade geral dos pacientes, que morriam de infecções oportunistas como pneumonia e tuberculose pouco tempo depois de receberem o exame positivo.

 

Veja também: HIV e prevenção das IST com o dr. Rico Vasconcelos

 

Esse cenário mudou radicalmente a partir de meados da década de 1990, quando um novo grupo de drogas passou a ser estudado, os inibidores da protease. Associados aos antirretrovirais já utilizados, o tratamento conhecido como “coquetel” demonstrou um efeito antiviral capaz de melhorar a imunidade e a consequente resposta a infecções oportunistas, reduzindo significantemente a mortalidade dos pacientes com HIV/Aids.

Graças aos movimentos organizados por grupos mais vulneráveis ao vírus no início da epidemia, vários países adotaram políticas de prevenção e tratamento do HIV. No Brasil,  o Ministério da Saúde passou a distribuir, em 1996, de forma gratuita e universal os medicamentos para HIV/Aids, em um dos programas mais abrangentes e eficientes do mundo.

O Programa Nacional de HIV/Aids, que visa a fornecer serviços de assistência de saúde, informação e educação para prevenção, diagnóstico precoce e tratamento a pessoas que, muitas vezes, estão à margem de políticas públicas, é reconhecido no mundo todo. A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecem o Brasil como referência mundial no controle da epidemia.

A renomada revista científica inglesa “Lancet” ressaltou a importância da política de HIV/Aids brasileira para a América Latina em editorial publicado em fevereiro deste ano, destacando o pioneirismo do País ao adotar a PrEP (terapia de pré-exposição ao HIV) como política pública.

A bem-sucedida política do programa brasileiro se reflete em números. O Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2018, divulgado pelo Ministério da Saúde no dia 27/11/2018, revelou uma queda de quase 16% no número de novos casos de HIV nos últimos cinco anos. Em 2012, foram registrados 21,7 casos por 100 mil habitantes, ante 4,8 em 2017. A mortalidade também caiu: em 2012, houve 5,7 mortes relacionadas à aids por 100 mil habitantes, enquanto em 2017 foram registradas 4,8 mortes por 100 mil habitantes.

Para o infectologista da Universidade de São Paulo (USP) Rico Vasconcelos, a queda tanto no número de novos casos quanto na mortalidade se deve ao aumento no número de pessoas testadas, à melhoria no diagnóstico, à redução entre o tempo de descoberta do vírus e o início do tratamento e à garantia do tratamento disponível para todos. Para ele, o programa do Ministério da Saúde é um dos melhores da área da Saúde, um exemplo de boa gestão de recursos de uma equipe que resiste à constante troca de ministros da Saúde ocorrida nos últimos anos (o Brasil teve 6 ministros diferentes em apenas cinco anos).

Ainda há muito a se fazer, no entanto. Apesar de os números de novas infecções ter passado de 43.269 em 2013 para 37.791 em 2017, outra pesquisa do Ministério da Saúde revelou que 1 a cada 4 homens do município de São Paulo que tem relações sexuais com homens tinha HIV. Um dado ainda mais alarmante dessa pesquisa mostrou que 18,4% dos entrevistados tinha o vírus. No grupo, que incluía homens de 11 capitais e Brasília, 83,1% se declaram gays, 12,9% heterossexuais ou bissexuais e 4% outros. Do total, 75% faziam sexo só com homens. A prevalência do HIV na população geral é, de acordo com o ministério, de 0,4%.

Para Rico Vasconcelos, é preciso que os jovens tenham educação sexual e que a sociedade combata o estigma de populações mais vulneráveis à infecção pelo HIV, como homossexuais, homens que fazem sexo com homens, trabalhadores e trabalhadoras sexuais e transexuais. “Sempre que uma população é estigmatizada, ela se torna automaticamente mais vulnerável ao HIV”, afirma.

Nesse sentido, as declarações feitas pelo futuro ministro da Saúde Luís Henrique Mandetta são preocupantes. Em entrevista ao jornal “O Globo”, divulgada em 25/11/2018, Mandetta afirmou não acreditar na efetividade das campanhas de prevenção e educação continuada em escolas ou unidades básicas de saúde, afirmando que “sexualidade é uma questão para tratar dentro de casa”.

Para o ortopedista e deputado federal, houve uma “banalização da doença”, pois “o País começou a trabalhar muito a questão do medicamento”. O futuro ministro parece desconhecer, com essa afirmação, que tratar pessoas com HIV, além de prolongar a vida dos pacientes, também faz parte da política de prevenção de novas infecções, já que indivíduos tratados podem apresentar carga viral indetectável e, assim, deixar de transmitir o vírus para parceiros e parceiras.

Os dados das pesquisas e a avaliação de especialistas e organizações de saúde do mundo todo mostram que, em relação à prevenção e tratamento do HIV/Aids, estamos no caminho certo e devemos segui-lo. Qualquer passo fora dele será visto como retrocesso, com risco de voltarmos à época em que a história de milhões de pessoas estava determinada pela aids.

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