Estudo genético compara os genes de populações africanas e de afrodescendentes que habitam as Américas, ajudando a elucidar o papel da escravidão na composição genética do continente americano.
Os avanços na área da genética permitiram o mapeamento de grande parte do genoma humano. No entanto, há uma grande disparidade entre as informações sobre o genoma de populações europeias e não europeias, pois sempre estudou-se melhor a genética dos povos europeus.
Assim, a pesquisa que analisou o genoma de 6.267 pessoas, entre africanos e afrodescendentes que vivem nas Américas, teve grande repercussão na comunidade científica. O estudo internacional, liderado pelo biólogo Eduardo Tarazona Santos, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mapeou e comparou informações genéticas de 25 populações de locais diferentes.
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Escravidão
O comércio transatlântico de escravizados, realizado por brasileiros, britânicos, dinamarqueses, holandeses, franceses, alemães, portugueses, espanhóis e suecos, foi responsável por levar para as Américas mais de 9 milhões de africanos, entre o início do século 16 e pouco mais da metade do século 19.
A economia e a organização social das Américas foi, durante muito tempo, baseada na mão de obra de pessoas trazidas à força para o continente americano. A escravidão deixou marcas indeléveis nas sociedades americanas e caracterizou um dos períodos mais terríveis da nossa história.
Para melhor compreender sua influência na formação genética dos americanos, o estudo comparou, também, os dados genéticos das populações dos continentes africano e americano com os registros demográficos desse comércio. Assim, a pesquisa descobriu, entre outros achados, que as pessoas escravizadas levadas para as Américas vieram principalmente do centro-oeste africano, onde estão Nigéria e Gana. Para a América do Norte e Caribe foram enviadas pessoas do oeste africano, onde hoje estão localizados Senegal e Gâmbia. Já para o sul do Brasil vieram povos bantu do sul e do leste da África.
Esses dados correspondem aos registros históricos de embarques e desembarques realizados durante o período da diáspora africana. “Verificamos que o período de maior miscigenação nas Américas coincidiu com o de maior chegada de escravizados, entre os anos 1750 e 1850”, revela Tarazona.
Outro achado revelou que há mais semelhança genética entre descendentes de africanos da América do Norte e do Sul do que entre estes e africanos. Isso porque, segundo o geneticista, antes de serem vendidos, os escravizados eram misturados, para que não conseguissem se comunicar entre si. Portanto, sabe-se que há mais diversidade genética entre os povos da África do que entre os afrodescendentes que hoje habitam as Américas.
Brasil: país da democracia racial?
Durante muito tempo acreditou-se que o Brasil, por ser muito miscigenado, era um país em que não havia preconceito racial. Hoje praticamente há consenso entre historiadores, antropólogos e pesquisadores de que a miscigenação entre europeus, africanos escravizados e os povos originários das Américas se deu de forma violenta, por meio de estupros, e seletiva, com o intuito de tornar a população local mais branca e com traços físicos mais semelhantes aos dos europeus.
Apesar de o estudo citado não adentrar essa questão, Tarazona afirma que somos mais miscigenados que países que adotaram políticas segregacionistas, como Estados Unidos e África do Sul, mas que a raça influenciou e ainda influencia os relacionamentos, e isso pode ser observado também na genética dos povos americanos. “Dizer que há democracia racial é exagero, não somos tão miscigenados assim”, conclui.
Importância para a Medicina
O estudo, além de nos permitir conhecer a origem dos povos americanos, também tem relevância para a saúde e a Medicina, de acordo com Tarazona. Conhecendo o genoma desses povos é possível identificar mutações genéticas que podem estar relacionadas a diversas enfermidades.
Por conta da miscigenação, as mutações responsáveis por doenças como câncer de mama e fibrose cística estão mais espalhadas geograficamente do que na África, onde houve menos miscigenação.
“Conhecemos muito pouco o genoma das populações não europeias, assim também não sabemos bem a que doenças elas estão mais suscetíveis”, explica Tarazona. “Nosso trabalho contribui para conhecer melhor a genética dos africanos e saber como os genes oriundos da África se distribuem nas Américas.”
A diáspora foi tão intensa que, ainda de acordo com o geneticista, é possível encontrar nas Américas a maior parte da diversidade genética africana. Assim, genes oriundos do continente africano e que podem estar relacionados a doenças genéticas estão presentes nas Américas, mas de forma mais dispersa, do ponto de vista geográfico, do que na África.
De fato, a saúde da população descendente de africanos é um assunto pouco abordado por especialistas em saúde, um tanto porque não conhecemos muito acerca da variedade genética desses povos, outro tanto por questões relacionadas ao racismo.
Nesse sentido, o estudo pode não apenas ser útil para nos ajudar a compreender a história dos antepassados dos povos não europeus, mas fornecer dados para que a Medicina melhore o acesso à saúde da população afrodescendente.