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Entrevistas

Toxina botulínica | Entrevista

Publicado em 10/08/2011
Revisado em 11/08/2020

A toxina botulínica age na placa responsável pela transmissão do estímulo nervoso que produz a contração muscular, dificultando a transmissão do estímulo e levando ao relaxamento da musculatura. Veja entrevista sobre toxina botulínica.

 

Toxina botulínica é um composto altamente venenoso. Segregada pelas bactérias Clostridium botulinum e Clostridium parabotulinum, que se desenvolvem em enlatados ou nos alimentos mal conservados, já causou inúmeros envenenamentos. Ao penetrar no organismo, ela provoca náuseas, mal-estar, vômitos e fraqueza muscular progressiva. Caracteristicamente, as pálpebras caem (ptose palpebral).

O comprometimento da contração muscular é responsável pela falta de ar e dificuldade de deglutição que acometem o paciente. Quando a quantidade de toxina é muito grande, a pessoa morre em pouco tempo.

 

Veja também: Botulismo

 

Para entender o que acontece, é preciso lembrar que, entre o músculo e os nervos, há uma placa responsável pela transmissão do estímulo nervoso que produz a contração muscular. A toxina botulínica age nessa placa, dificultando a transmissão do estímulo e levando ao relaxamento da musculatura. É dessa propriedade fisiológica que advém sua utilidade terapêutica. Nos últimos vinte anos, foram apresentados vários trabalhos mostrando que, numa concentração bem baixa, ela pode ser usada para relaxar músculos contraídos, sintoma de patologias como as lesões cerebrais.

Todos conhecem o efeito da toxina botulínica, quando usada com finalidade estética para atenuar rugas do rosto. A musculatura relaxa e a expressão fica menos contraída. Esse é, porém, seu uso marginal, porque há outros muito mais importantes para garantir a qualidade de vida de alguns pacientes.

 

USO TERAPÊUTICO

 

Drauzio – A aplicação da toxina botulínica com finalidade terapêutica começou há mais ou menos 20 anos. Em que casos ela foi primeiramente utilizada?

Lúcia Helena Mercuri Granero – O uso terapêutico da toxina botulínica teve início na área da oftalmologia. No começo da década de 1980, Dr. Scott, um oftalmologista, publicou o primeiro trabalho sobre o uso dessa toxina para relaxamento de músculos oculares com resultado eficaz no tratamento de estrabismo. Outros estudos se seguiram e, em 1989, foi publicado um trabalho  mostrando que ela podia ser usada no tratamento dos distúrbios de movimento, especificamente nos casos de espasticidade (sequela de lesões do sistema nervoso central que provoca descontrole do tônus muscular tendendo à rigidez e à dificuldade de movimentos).

Caracteristicamente, esse problema ocorre após traumatismo craniano, lesões medulares ou congênitas, como no caso da paralisia cerebral, uma encefalopatia provocada pela falta de oxigenação na fase perinatal ou intraútero. Como consequência da lesão, surge distúrbio do tônus muscular. O músculo se torna muito mais excitável, extremamente contraturado e contraído, o que provoca alteração dos movimentos e da postura.

 

Drauzio – Vamos pegar a situação clássica da pessoa que teve derrame cerebral (AVC) e ficou com contraturas no antebraço. A toxina age anulando a contração dos músculos que puxam o braço a fim de que eles relaxem. Qual é a técnica de aplicação?

Lúcia Helena Mercuri Granero – A técnica foi sendo aprimorada no decorrer dos anos. Hoje, está bem estabelecida e funciona adequadamente. A toxina botulínica liofilizada vem em frascos e, depois de diluída em soro fisiológico, é aspirada numa seringa e aplicada no paciente. Se for um adulto que suporta algumas punções, pode ser injetada através de uma agulha bem fininha em braços, pernas, tronco e também na face, não para uso estético, mas para tratar distonias da face e do pescoço, ou seja, os espasmos nervosos faciais, vulgarmente conhecidos como tiques.

 

Drauzio – Dói?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Dói, como qualquer outra injeção. Dói o trauma da agulha, a perfuração que o provocou. Na verdade, temos de procurar músculos profundos para introduzir boa parte da agulha e esse procedimento é doloroso. Os pacientes relatam que a dor não provém do líquido em si, mas de sua acomodação entre as fibras de tecido. No entanto, é uma dor bastante suportável e eles aguentam fazer várias punções no mesmo dia.

 

Drauzio – Em média, quantas doses vocês aplicam em cada paciente?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Varia muito de um caso para outro. Algumas toxinas são envasadas em frascos de 100 unidades e outras, em frascos de 500 unidades. O número de frascos prescritos vai depender do número de pontos a serem tratados e da quantidade total de unidades necessárias. Por exemplo, pacientes com sequelas de derrame cerebral, que apresentam o padrão típico de membro superior flexionado e perna mais distendida, requerem doses mais altas, porque o comprometimento abrange muitos músculos. Casos mais leves, como o pé equino-varo em que só o pé está em posição alterada, as doses são menores, porque é menor o número de músculos a serem tratados.

 

Drauzio – Que profissionais são treinados para fazer as injeções?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Dentro das especialidades médicas, o profissional que cuida da reabilitação do portador de deficiência é o fisiatra, mas existem profissionais de áreas afins, como a neurologia e a ortopedia, que também utilizam a toxina botulínica com finalidade terapêutica.

 

Drauzio – De qualquer modo, os profissionais precisam ser muito bem treinados…

Lúcia Helena Mercuri Granero – Sem dúvida. O treinamento deve ser feito em centros que reconhecidamente trabalham com essa terapêutica, com experiência comprovada, casuística grande e utilizado por profissionais extremamente habilitados, porque a toxina botulínica pode provocar efeitos colaterais graves.

 

INDICAÇÕES

 

  • Sequelas de lesões encefálicas

Drauzio – Em que situações clínicas a toxina botulínica é utilizada com a finalidade de provocar relaxamento muscular?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Ela é utilizada para tratar as sequelas de lesões do sistema nervoso central. Atualmente, as mais comuns são as provocadas por lesões encefálicas adquiridas por causa de traumatismos de crânio e pelas provocadas por derrames cerebrais e paralisia cerebral.

 

Drauzio – Você poderia explicar o que é paralisia cerebral e quem pode ser acometido por ela?

Lúcia Helena Mercuri Granero – A paralisia cerebral é provocada por uma lesão que ocorre numa fase em que o sistema nervoso central da criança ainda está em formação. Didaticamente, essa fase é dividida em fase pré-natal, perinatal e pós-natal, uma vez que a gestante pode ter algum tipo de intercorrência durante a gestação ou no momento do parto que vai acarretar a lesão cerebral, ou a lesão pode ocorrer depois do nascimento. Por exemplo, partos complicados ou má assistência na hora do nascimento podem provocar falta de oxigenação (anóxia) do feto, o que lhe traz sofrimento e pode ser causa de lesão cerebral. Depois do nascimento, meningite, traumas, crises convulsivas e certas doenças genéticas só diagnosticadas após o parto são outras causas de lesões cerebrais responsáveis por distúrbios do movimento e do tônus muscular, que deixam a criança rígida.

 

Drauzio – Além desses, que outros problemas podem provocar lesões que afetam a musculatura e provocam contrações?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Lesões medulares por fratura, acidentes – motociclísticos, automobolísticos ou por arma de fogo – e doenças degenerativas, como a esclerose múltipla, podem provocar rigidez muscular e o tratamento feito com toxina botulínica traz benefícios para o paciente. Nesses casos, é preciso avaliar o padrão de rigidez que está interferindo com a qualidade de movimento ou com a postura e atuar sobre esses músculos.

 

Drauzio – A esclerose múltipla é uma doença em que o sistema imunológico ataca a bainha de mielina que envolve os nervos e isso altera a condução do estímulo nervoso do nervo para o músculo. Essa doença evolui em surtos, de forma geralmente lenta. Em que fase da doença é indicada a toxina botulínica?

Lúcia Helena Mercuri Granero – A indicação depende mais do quadro motor do que da fase da doença em que o paciente está. Em geral, quem encaminha esse paciente para o fisiatra é o neurologista, dizendo: ”Tentei tratar a rigidez, a espasticidade, com medicação oral, sem sucesso. Talvez um tratamento local com toxina botulínica consiga promover o relaxamento muscular desejado”.

Portanto, a fase da doença não tem relação direta com a utilização dessa toxina. Se o paciente tem surtos repetidos e diminuição progressiva da qualidade de  movimentos e da independência pessoal porque a rigidez está se instalando, o uso da toxina botulínica pode prevenir deformidades ou outras complicações.

 

Drauzio – E na doença de Parkinson, doença que provoca o clássico tremor de extremidades?

Lúcia Helena Mercuri Granero – A doença de Parkinson vem sendo estudada para avaliar o real benefício que a toxina botulínica pode representar. No entanto, alguns trabalhos que temos desenvolvido mostram que esses benefícios existem do ponto de vista funcional, desde que o quadro seja bem avaliado. Às vezes, o parkinsoniano relata dificuldade em locomover-se, em trocar o passo e o exame precisa ser minucioso para descobrir o que está interferindo nessas ações a fim de atuar exatamente em cima dos músculos comprometidos.

Embora a doença de Parkinson ainda não seja uma indicação clássica, o tema está sendo pesquisado, pois a toxina botulínica tem-se mostrado eficiente no tratamento de muitas patologias diferentes.

 

  • Tiques nervosos

Drauzio – Você mencionou rapidamente os tiques nervosos. Quais deles podem ser tratados com toxina botulínica?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Muitos pacientes têm tiques, isto é, espasmos musculares faciais basicamente na região dos olhos (piscamentos) ou da boca (repuxamentos). Do ponto de vista medicamentoso e psicoterapêutico, isso é muito difícil de ser tratado. Como a toxina botulínica enfraquece a musculatura, os tiques são atenuados.

 

Veja também: Entrevista sobre tiques

 

Drauzio – Relaxando os músculos, ela não provoca assimetria entre as duas metades do rosto?

Lúcia Helena Mercuri Granero – É preciso analisar muito bem o caso para isolar os grupos de músculos que estão atuando no careteamento e lembrar que o lado com espasmos está com hiperatividade. O objetivo é diminuir essa atividade aproximando-a do nível da outra hemiface. Como as doses são bem estudadas, a assimetria não se mostra importante e o resultado é bem próximo do que se considera bom.

 

Drauzio – No caso das cefaleias, em que circunstâncias é indicada a toxina botulínica?

Lúcia Helena Mercuri Granero – A toxina presta-se para o tratamento das cefaleias tensionais, relacionadas com o estado de tensão e sobrecarga, e das cervicogênicas, resultantes de contratura na região cervical. De tratamento difícil, a profilaxia que se fazia antes deixava o paciente bem por uns tempos, mas depois surgiam crises intensas. O uso da toxina botulínica, nesses casos, traz melhores resultados do que o tratamento medicamentoso e prolonga o espaço entre as crises.

 

Drauzio – As cefaleias cervicogênicas não respondem aos analgésicos comuns, mas, em geral, respondem aos anti-inflamatórios. Resultantes da contração involuntária da musculatura cervical, elas exigem diagnóstico bastante preciso para que a toxina possa ser usada.

Lúcia Helena Mercuri Granero – É verdade. À semelhança de qualquer outra terapêutica, a boa indicação garante parte do sucesso do tratamento com a toxina botulínica.

 

Drauzio – A toxina botulínica também pode ajudar pessoas com hiperidrose, isto é, portadoras de sudorese profusa nas mãos, axilas etc.?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Não atuo exatamente nessa área, mas os dermatologistas têm-se referido aos bons resultados do tratamento com toxina botulínica nas hiperidroses axilares, palmares e plantares. A melhora é boa e perdura por tempo prolongado, em média 5 ou 6 meses.

 

DURAÇÃO DO EFEITO

 

Drauzio – Nas espasticidades, quanto tempo dura o efeito benéfico da toxina botulínica?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Vários fatores podem interagir para que o efeito dure mais ou menos tempo. Como sou da área de reabilitação, entendo que o paciente com sequela e portador de deficiência tem de fazer tratamento reabilitacional do momento em que a sequela apareceu até o final da vida. Hoje, não mais se discute que o paciente espástico, rígido, tem de fazer um trabalho de alongamento muscular e de reeducação do movimento para não gerar alterações nas estruturas articulares nem musculares. Em geral, o portador de espaticidade ou déficit motor, para andar ou movimentar o membro superior, ou mesmo para corrigir o posicionamento, precisa de um programa de atividades físicas e de acompanhamento terapêutico simultaneamente.

 

Drauzio – Quer dizer que a aplicação da toxina botulínica não exclui a necessidade dos outros tratamentos?

Lúcia Helena Mercuri Granero – De forma nenhuma. Isso já está muito bem estabelecido. O paciente precisa ser tratado com outras terapias ou, minimamente, precisa fazer exercício no domicílio para alongamento muscular e reeducação do movimento.

 

Drauzio – De quanto em quanto tempo, a aplicação deve ser repetida?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Em média, varia de 4 a 6 meses.

 

PERGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL

 

Simone Vieira – São Paulo (SP) – A toxina botulínica pode bloquear a sudorese por vários meses?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Nos casos de sudorese abundante, o efeito é mesmo de meses e, em geral, dura de 4 a 6 meses.

 

Camila Guerreiro da Silva – Porto Alegre (RS) – Com o tempo o uso da toxina pode causar danos para saúde?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Nenhum estudo demonstrou que as aplicações repetidas tragam sequelas ou danos para a saúde. O que se pode dizer é que o fato de ser uma toxina estranha ao organismo, ele possa produzir anticorpos antitoxina botulínica. Se isso acontecer, o paciente não responderá mais ao tratamento com essa substância. Felizmente, a ocorrência desse tipo de imunidade criada contra a toxina é baixíssima.

 

Aída Diniz Campos –São Paulo (SP) – Até que ponto a toxina botulínica melhora os sintomas do mal de Parkinson?

Lúcia Helena Mercuri Granero – Não está bem estabelecido se a toxina botulínica é boa indicação para tratar o mal de Parkinson. O paciente precisa ser bem avaliado para verificar em que medida o uso da toxina poderá beneficiá-lo, melhorando a mobilidade e deixando os movimentos mais soltos e leves e a postura menos rígida.

 

Drauzio – O tratamento com toxina botulínica é caro. É possível o paciente ser tratado pelo SUS?

Lúcia Helena Mercuri Granero – É possível. Em São Paulo (SP), a população dispõe de centros de referência para o uso terapêutico da toxina botulínica onde será atendida pelo SUS. Eles existem no Hospital São Paulo da Faculdade Paulista de Medicina (UNIFESP) onde trabalho, no Hospital das Clínicas da USP, na Santa Casa e na AACD.

Mas não é só em São Paulo que esse serviço existe. A toxina botulínica está disponível no Brasil inteiro, de norte a sul, em centros de referência em hospitais públicos e, cada vez mais, têm sido abertos novos centros, em geral em hospitais-escola, com médicos treinados e especialistas em áreas como neurologia, ortopedia e fisiatria.

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