Narcolepsia | Entrevista

Dra. Dalva Poyares é médica neurologista e pesquisadora. Membro do Instituto do Sono da UNIFESP, é professora da disciplina de Medicina e Biologia do Sono da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. postou em Entrevistas

Compartilhar

Publicado em: 16 de fevereiro de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

O tratamento da narcolepsia é prolongado e visa ao controle das crises de sono e da perda do tônus muscular. Veja entrevista sobre narcolepsia. 

 

* Edição revista e atualizada.

 

Depois de noites mal dormidas, não é de estranhar que a pessoa fique sonolenta durante o dia. Recuperadas as horas de sono, porém, ela estará novamente em forma para reassumir as atividades. Entretanto, há pessoas que chamam atenção pela sonolência diurna excessiva. Algumas dormem enquanto conversam no meio de uma festa ou em pé na fila do ônibus e do banco. Se no ambiente social isso chega a ser curioso, profissionalmente pode ser um desastre, porque são rotuladas de preguiçosas e indolentes.

Na verdade, a sonolência incontrolável durante o dia é o principal sintoma de um distúrbio do sono chamado narcolepsia, uma doença benigna, mas de difícil diagnóstico, que pode ser confundida com a epilepsia, por exemplo, especialmente quando apresenta sua forma completa com sintomas de cataplexia, o que veremos a seguir.

O tratamento da narcolepsia é prolongado e visa ao controle das crises de sono e da perda do tônus muscular (que não ocorre em todos os casos), a fim de que o paciente possa manter a atividade pessoal, social e profissional em níveis adequados.

 

CARACTERÍSTICAS DA DOENÇA

 

Drauzio – O que caracteriza a narcolepsia?

Dalva Poyares – Narcolepsia é um distúrbio do sono caracterizado, principalmente, pela sonolência diurna excessiva. Essa sonolência é diferente daquela que sentimos quando não conseguimos dormir bem à noite. Os narcolépticos, independentemente de quanto tenham dormido à noite, não conseguem controlar a sonolência durante o dia e têm ataques de sono que podem ocorrer a qualquer momento e em situações inusitadas. Não é raro caírem no sono durante uma consulta médica ou em pé dentro do metrô ou do ônibus. Vários pacientes já relataram que dormiram operando máquinas,  ou na direção de veículos, o que é realmente muito perigoso.

Já em reuniões ou palestras, bem como em situações monótonas, a narcolepsia é muito comum entre eles.  Como a condição pode ter diferentes graus de gravidade, desde a sonolência mais leve comum em situações monótonas, como mais grave em situações em que o sono se torna realmente perigoso.

O  sono REM (Rapid Eyes Movement) é uma fase normal do sono em que os olhos se movimentam rapidamente e nós sonhamos. Nesse momento, o corpo perde completamente o tônus muscular. Não fosse assim, expressaríamos em gestos o que estávamos sonhando. Entretanto, apesar da paralisia muscular súbita, o cérebro está bastante ativo e os olhos se movimentam.

Cerca de 25% da noite transcorrem em sono REM e a paralisia muscular é primeiro sinal de que a pessoa entrou nessa fase do sono.

O narcoléptico pode entrar repentinamente nessa fase do sono, ficar mole e até cair, mesmo que o cérebro não adormeça.É isso que caracteriza a cataplexia.  A cataplexia pode ocorrer em alguns pacientes, não em todos, e, nesse caso, denominamos de narcolepsia tipo 1.

A cataplexia se caracteriza, portanto, por uma  anormalidade do sono REM, na qual após um estímulo como riso, gargalhada, susto ou emoções, o indivíduo sente uma fraqueza que, por vezes, o obriga a sentar ou apoiar-se, mesmo que esteja sentado. Em raros casos, a queda súbita ao solo pode ocorrer. Isso caracteriza o aparecimento repentino da perda de tônus normal, que temos quando entramos no sono REM.

 

ATAQUES DE SONO

 

Drauzio – A pessoa dormiu às 11h da noite e acordou às 7h30min, um número de horas de sono adequado para sentir-se alerta durante o dia. Quando o portador de narcolepsia volta a sentir sono depois de ter dormido o mesmo número de horas?

Dalva Poyares – O narcoléptico acorda geralmente sem sono, como acordam as pessoas sem o distúrbio que tiveram oito, nove horas de sono. No entanto, pouco tempo depois, até 2 horas depois, a sonolência está de volta e pode reaparecer em episódios ao longo do dia.

 

Drauzio – Quantos episódios de sono irresistível podem ocorrer por dia?

Dalva Poyares – Isso é difícil prever. Geralmente são muitos. O importante é que, na narcolepsia, o cochilo é sempre reparador. Veja o seguinte exemplo: a pessoa acordou às 8h30min, estava alerta, mas às dez horas foi tomada por sonolência irresistível. Se ela tiver a possibilidade de tirar um cochilo durante dez minutos, será o suficiente para mais uma hora em que permanecerá alerta. Caso contrário, passará o dia sonolenta. Por isso, nossa dica para quem tem narcolepsia é tirar um cochilo de dez, quinze minutos na hora do almoço, outro às 15 horas e, no final da tarde, mais um. Isso pode ajudá-lo a ficar mais alerta. Porém, isso não substitui o tratamento com medicamentos, em alguns casos. Porém isso não substitui o tratamento com medicamentos, em alguns casos.

 

Drauzio – Quanto tempo dura o cochilo se a pessoa com narcolepsia não for acordada?

Dalva Poyares – Isso é extremamente variável. Na maioria dos casos, dura no máximo meia hora e é típico da sonolência da narcolepsia a pessoa acordar dizendo que o cochilo foi reparador. Existem alguns narcolépticos que podem dormir 24 horas seguidas, se não forem acordados, mas que despertam, geralmente, sempre bem quando o sono é interrompido.

 

Drauzio – Pessoas que dormem 12h, 14h por dia, têm algum tipo de narcolepsia?

Dalva Poyares – Os estudos atuais mostram que o sono do indivíduo com narcolepsia não é longo e contínuo. Ele desperta muitas vezes à noite e pode até queixar-se de insônia. “Olhe, durmo tanto de dia, mas à noite custo para dormir e acordo várias vezes de madrugada.” Portanto, embora possa ocorrer, não é frequente encontrar uma pessoa com a doença que durma 12h, 14h seguidas.

 

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

 

Drauzio – Como você diferencia a narcolepsia de outros distúrbios, como a apneia do sono, por exemplo, e do sono normal que pessoas com vida agitada e que dormem pouco sentem?

Dalva Poyares – Muitas vezes, é difícil tanto para o leigo quanto para os médicos não especializados estabelecer essa diferença e fazer o diagnóstico da narcolepsia. No entanto, raramente, indivíduos com privação de sono procuram o médico, porque sabem que se dormirem mais um pouco no fim de semana, por exemplo, compensarão as horas de sono perdidas e voltarão a sentir-se bem.

Já os portadores de apneia do sono grave com paradas respiratórias acompanhadas de ronco sentem sono durante o dia todo. Não adianta tirarem um cochilo que a sonolência não melhora. Se a apneia for leve, fica mais difícil diferenciá-la da narcolepsia. O que facilita o diagnóstico é a presença do o ronco, um sintoma da apneia que incomoda quem está ao lado e obriga o paciente a procurar um médico.

Outra diferença importante é que o narcoléptico acorda relativamente bem pela manhã e o paciente com apneia acorda cansado, com sono, de modo geral. Na verdade, esse sono é quase uma constante em sua vida.  A apneia costuma acometer mais os homens acima do peso do que as mulheres, o que não acontece com a narcolepsia que pode manifestar-se igualmente nos dois sexos.

 

FATORES GENÉTICOS E PREVALÊNCIA

 

Drauzio – Existem fatores genéticos envolvidos na narcolepsia?

Dalva Poyares – Existem. Em cães, já se isolou o gene responsável pela narcolepsia. Sabe-se que a tendência genética está associada a um alelo ligado ao complexo maior de histocompatibilidade, ou seja, a uma proteína relacionada com a sonolência excessiva durante o dia.

Porém essa alteração genética pode levar a uma redução drástica de uma substância encontrada no nosso cérebro, numa área chamada de hipotálamo enterior, que é a hipocretina ou orexina, que, entre outras funções tem sido chama de o peptídio (proteína) da vigilância 9do alerta). Apenas pela coleta de líquido céfalo raquidiano, da espinha, pode-se detectar a redução da hipocretina, um exame invasivo, e, que mesmo que seja positivo, confirma a narcolepsia principalmente a tipo 1, mas não mudará o tratamento.

 

Drauzio – Essa proteína é encontrada no sangue de toda pessoa com narcolepsia?

Dalva Poyares – Infelizmente, não. Pode falhar em alguns casos.

 

Drauzio – Qual é a prevalência da narcolepsia?

Dalva Poyares – Sabe-se que a prevalência do distúrbio é diferente em negros e em caucasianos (principalmente europeus e norte-americanos). No Brasil, por causa da miscigenação racial, ainda não foi possível determinar a positividade para o exame genético e não há estudos sobre a prevalência da narcolepsia, mas parece que é grande. Em geral, os primeiros sintomas aparecem aos 20, 25 anos, logo após o término da adolescência.

 

SONO REM

 

Drauzio – Há pessoas que confundem narcolepsia com epilepsia. Há alguma relação entre elas?

Dalva Poyares – Não há. Acho que a confusão vem da semelhança entre os sufixos das duas palavras que querem dizer ataques, mas os ataques de sono da narcolepsia são muito diferentes da convulsão epilética provocada por atividade elétrica anormal do cérebro.

Na realidade, a narcolepsia advém de uma alteração no equilíbrio existente entre algumas substâncias químicas do cérebro, alguns neurotransmissores, responsáveis pelo aparecimento do sono REM em horas inadequadas.

 

Drauzio – O sono normal começa com o desligamento do controle muscular. É um sono de ondas lentas seguido pela fase do sono REM, na qual a atividade do cérebro é intensa, tão intensa quanto a atividade de vigília, e os olhos se movimentam. O narcoléptico salta a fase de sono superficial e entra direto na fase REM do sono?  

Dalva Poyares – É exatamente isso que acontece. Qualquer pessoa normal entra no sono REM cerca de hora e meia depois de ter adormecido. Antes, a pessoa normal sente sonolência e passa pela fase do sono de ondas lentas. O sono REM é dependente desse sono inicial.

No narcoléptico, o sono REM aparece em qualquer momento, sem aviso, sem que o indivíduo passe pelo sono de ondas lentas. Essa manifestação de sonolência diurna súbita é fundamental para o diagnóstico.

 

CATAPLEXIA

 

Drauzio – Você poderia explicar com maiores detalhes a cataplexia?

Dalva Poyares – A cataplexia é caracterizada por perda do tônus muscular, ou seja, por uma fraqueza muscular súbita que pode ser desencadeada por emoção muito forte. Por exemplo, se a pessoa levar um susto ou der risada diante de algum fato engraçado, perde a força, amolece e sente sonolência. É um sintoma breve, que dura no máximo dez minutos e ocorre em alguns casos de narcolepsia (existe narcolepsia sem cataplexia).

Às vezes, essa perda do tônus é leve, quase imperceptível para os leigos. O paciente está conversando, ouve um caso engraçado, dá risada, o braço e o pescoço amolecem um pouquinho, o queixo cai, mas não necessariamente ele pega no sono.

 

Drauzio – Uma vez num jantar, vi uma pessoa falando muito animada. De repente, porém, caiu num sono profundo e precisou ser amparada na saída. Isso é narcolepsia?

Dalva Poyares – É bem provável que seja. Nos casos de apneia do sono, a sonolência é constante, não aparece de uma hora para outra. Se a pessoa está animada e de repente cai em sono profundo, a probabilidade de ser portadora de narcolepsia é enorme. Essa doença pode causar constrangimentos sociais. Tenho pacientes que caíram no sono e meteram o rosto no prato de comida enquanto jantavam em um restaurante, antes de serem medicados.

 

DIAGNÓSTICO

 

Drauzio – Como é feito o diagnóstico da narcolepsia?

Dalva Poyares – Uma vez levantada a suspeita de narcolepsia, pede-se que o paciente faça uma polissonografia (um registro do sono durante a noite inteira) e um teste das latências múltiplas do sono durante o dia. O objetivo da polissonografia é afastar a possibilidade de associação da apneia do sono com a narcolepsia, o que não é incomum.
O teste de latências múltiplas é realizado no mesmo laboratório do sono em que é feita a polissonografia e consiste em colocar o indivíduo deitado num quarto escuro durante 20 minutos, a cada duas horas, cinco vezes num dia, para medir o tempo que leva para dormir. É um exame mais simples para verificar se a pessoa dorme durante o dia, determinar sua atividade cerebral e se entrou na fase de sono REM nesse período.

Nessas situações, o normal é a pessoa tirar um breve cochilo em um ou dois dos cinco períodos, especialmente depois do almoço, e demorar, em média, mais do que dez minutos para pegar o sono. Não é normal a tendência a pegar no sono ser menor do que cinco minutos em todas as oportunidades e o indivíduo entrar na fase REM nos vinte minutos que dura o exame.

 

Drauzio – O uso de bebidas alcoólicas, de drogas ilícitas ou a ingestão de certos alimentos pode desencadear esses episódios de sono incontrolável?

Dalva Poyares – Na realidade, o uso de estimulantes pode minimizar a ocorrência desses episódios e ajudar o indivíduo a manter-se alerta. Daí, a importância de estabelecer o diagnóstico correto, pois todos os medicamentos e outras substâncias – o álcool é uma delas – que induzem o sono pioram o quadro.

 

TRATAMENTO

 

Drauzio – Como deve ser tratada a narcolepsia?

Dalva Poyares – Tratar a narcolepsia é importante para afastar os rótulos de preguiçosos e dorminhocos que cercam os portadores da doença. Muitos são demitidos do emprego por causa da sonolência ou eles mesmos se demitem por constrangimento.

Narcolepsia não é uma doença grave que ofereça risco de vida diretamente. O risco é indireto, uma vez que a pessoa pode envolver-se em acidentes ao dirigir carros ou motos ou ao operar máquinas. Por isso, a escolha de certas profissões é desaconselhada aos portadores de narcolepsia.

O tratamento da sonolência e da cataplexia são distintos, mas os medicamentos indicados para um dos sintomas podem melhorar também o outro. O objetivo é manter o nível de alerta adequado e controlar os ataques catapléticos, quando existem.

Uma substância nova chamada motafanil tem-se mostrado eficaz para deixar o paciente mais alerta, e relativamente segura para evitar a sobrecarga do sistema cardiovascular, uma vez que os estimulantes podem aumentar a pressão arterial e o número de batimentos cardíacos. Infelizmente, esse medicamento não é produzido no Brasil e custa caro no nosso país. De qualquer forma, constitui a primeira escolha. Se não estiver disponível, existem outros estimulantes, também utilizados por crianças com déficit de atenção.

A cataplexia responde melhor ao tratamento com antidepressivos. Existem vários no Brasil que podem ser indicados. Às vezes, é válido combinar doses menores de estimulantes e antidepressivos.

 

PERGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL

 

Tatiana Gonçalves Teixeira – Florianópolis/SC – A narcolepsia pode estar associada à falta de vitaminas e sais minerais?
Dalva Poyares – Não. Nenhum estudo mostra a deficiência de vitaminas e sais minerais como causa da narcolepsia, que está associada a uma tendência genética e ao desequilíbrio de algumas substâncias químicas no cérebro.

 

Jaqueline Aparecida Bom – São Paulo/SP – Existe alguma relação entre narcolepsia e distúrbios psiquiátricos?

Dalva Poyares – Existem relatos na literatura sobre a associação da narcolepsia com a apneia do sono e com alguns transtornos psiquiátricos, como a depressão. No caso especifico da depressão, é preciso cautela ao fazer o diagnóstico, pois sonolência excessiva é sintoma de muitos processos depressivos, que alteram também o sono REM.

 

Claudia Monteiro – Belo Horizonte/MG – Existe um perfil psicológico característico das pessoas com sonolência incontrolável?

Dalva Poyares – É difícil responder essa pergunta, na medida em que a maioria das pessoas não sabe que a narcolepsia é um problema de saúde nem tem acesso ao tratamento. Elas simplesmente são rotuladas de sonolentas, preguiçosas. Talvez como consequência do problema que as isola, são pessoas mais inibidas e mais tímidas, de personalidade mais reclusa que evitam o contato social e apresentam mais dificuldades profissionais.

Veja mais