Muitas pessoas se deslocam para determinadas regiões de risco sem saber que deveriam ter tomado certos cuidados antes de viajar. Atualmente existem núcleos de medicina de orientações para viajantes sobre como prevenir diversas doenças.
No final de novembro de 2004, tive uma experiência inesquecível. Viajei para a Floresta Amazônica, para uma área onde desenvolvemos um projeto de pesquisa sobre plantas da flora brasileira, a fim de extrair extratos para testá-los experimentalmente em células tumorais malignas e bactérias resistentes a antibióticos. É um trabalho que faço há mais de 12 anos, com regularidade e frequência. Devo ter ido para esse local mais de cem vezes sem nenhum problema, tanto que me descuidei da dose de reforço da vacina contra febre amarela, que eu tinha tomado fazia muito tempo. O descaso custou caro. Infelizmente, peguei febre amarela, uma doença grave que coloca em risco a vida das pessoas infectadas pelo vírus: cerca de 50% dos que adquirem a doença vão a óbito.
O que aconteceu comigo, médico, ciente da importância dessa vacina que deve ser renovada a cada dez anos e, portanto, com a obrigação de respeitar as datas para fazê-lo, pode acontecer com outras pessoas, por descuido ou falta de informação. São muitas as que se deslocam para determinadas regiões de risco sem saber que deveriam ter tomado certos cuidados antes de viajar e que existem núcleos de medicina do viajante para orientá-las como prevenir diversas doenças.
ORIENTAÇÃO AOS VIAJANTES
Drauzio – Como funcionam os núcleos de medicina do viajante como o que existe no Hospital Emílio Ribas?
Jessé Alves – Se considerarmos que, no exterior, a preocupação em orientar os viajantes existe há mais de 20 ou 30 anos, pode-se dizer que, no Brasil, os núcleos de medicina do viajante constituem uma experiência bastante recente, embora sejam muito importantes para orientar o número crescente de pessoas que viaja para o exterior ou para dentro do país e que pode colocar-se em situações de risco por falta de informação adequada.
No Brasil, o primeiro centro de atendimento desse tipo de que temos notícia foi criado no Rio de Janeiro, há mais ou menos sete anos.
Drauzio – O curioso é que é exigido certificado de vacina contra a febre amarela se a pessoa for viajar para o Peru, Colômbia ou Venezuela. Sem ele, não entra no avião. No entanto, qualquer um de nós pode ir a Manaus, cidade encravada na floresta amazônica, onde há risco de contrair a doença, sem tomar a vacina. Você não acha que o viajante doméstico deveria estar sujeito ao mesmo tipo de exigências a que se submete quem vai viajar para o exterior?
Jessé Alves – Concordo inteiramente. Não se discute que os viajantes internos devem receber a mesma orientação que é dada para quem vai viajar ao exterior. É obrigação das autoridades sanitárias informar a população a respeito do risco que corre e cobrar dela respeito às medidas preventivas necessárias, sempre que possível. No entanto, esse controle é mais complicado quando se trata dos viajantes internos, pois um número pequeno de pessoas viaja de avião. A grande maioria viaja de ônibus ou usa meios de transporte próprios, o que dificulta a fiscalização. Para realizá-la com eficiência, os órgãos públicos de saúde precisariam contar com um contingente enorme de profissionais de que não dispõem, pelo menos, no momento.
Veja também: Viajantes internacionais devem atualizar as vacinas
SERVIÇO DE ATENDIMENTO
Drauzio – Como é o atendimento da pessoa que vai viajar oferecido pelos núcleos de medicina do viajante?
Jessé Alves – A pessoa passa, primeiro, por uma consulta médica, na qual se levanta e avalia seu histórico de saúde: as doenças e infecções que já teve, as vacinas que tomou. A seguir, investiga-se seu roteiro de viagem. Se o destino for a Região Sul, onde o risco de infecções tropicais (malária e febre amarela, por exemplo,) é pequeno, as orientações são bastante limitadas. No entanto, se for a Região Norte, onde essas doenças ainda são frequentes, a orientação se volta especialmente para as medidas preventivas a serem adotadas antes de partir e durante a viagem.
Drauzio – Que orientação recebem as pessoas que vão viajar para Amazônia?
Jessé Alves – Na região amazônica, merecem atenção especial as doenças transmitidas por insetos, como febre amarela, malária e leishmaniose, e as doenças que podem ser transmitidas através da alimentação e da água, como hepatite A e febre tifoide.
Havendo vacina para prevenir a doença, o primeiro passo é orientar o esquema de vacinação. Contra a febre amarela, por exemplo, é importante que a pessoa se vacine pelo menos dez dias antes de entrar nas áreas de risco para que haja tempo de formar os anticorpos que a protegerão contra a doença, quando chegar no local.
Além disso, se a pessoa pretende permanecer por período prolongado na região amazônica, que concentra grande número de casos de hepatite B, precisa também ser imunizada contra essa doença.
MALÁRIA
Drauzio – E se não houver vacina para prevenir a doença, qual é a recomendação?
Jessé Alves – Para doenças como a malária que não podem ser prevenidas através de vacinas, existem recomendações que ajudam a pessoa a proteger-se contra a picada do inseto transmissor. Entre elas, destacam-se o uso adequado de repelentes e de roupas que cubram a maior parte da superfície do corpo, e o cuidado em evitar a exposição nos horários em que os mosquitos atacam mais, o que acontece geralmente ao entardecer.
No Brasil, temos carência de repelentes com concentração ideal da substância ativa. Por isso, a orientação sobre a maneira de aplicá-lo corretamente é de extrema importância.
Drauzio – Qual é a forma adequada de usar o repelente?
Jessé Alves – Primeiro, é importante verificar se a concentração da substância ativa, o dietiletiltoluamida (DEET), está entre 25% e 30%. Concentração acima desse valor talvez não garanta grau maior de proteção, mas não representa problema no que se refere ao aumento do risco de toxicidade ou a qualquer efeito indesejável que o produto possa oferecer. O problema aparece quando ele não atinge a concentração ideal de DEET, porque irá repelir os insetos por períodos muito mais curtos.
Como a grande maioria dos repelentes disponíveis no mercado brasileiro não indica no rótulo a concentração de DEET, é necessário renovar sua aplicação pelo menos a cada quatro horas. Entretanto, em locais muito úmidos, por causa da transpiração mais intensa, a aplicação deve ser repetida a cada duas horas, mesmo que a concentração da substância ativa seja adequada. Além disso, cada vez que entrar na água ou molhar o corpo, esse produto precisa ser passado novamente na pele.
Vale lembrar, ainda, um detalhe importante: para ser eficaz contra a picada de insetos, é indispensável que o repelente esteja em contato direto com o meio externo. Por isso, se a pessoa necessita também de filtro solar – o que é comum nas regiões muito quentes -, deve aplicar primeiro o filtro e, por cima, o repelente.
Drauzio – O repelente pode ser passado no rosto?
Jessé Alves – Não se deve passar o repelente apenas na área dos olhos e da boca. Fora isso, é importante que seja aplicado na maior parte possível do corpo, inclusive na nuca e nas orelhas, áreas que, geralmente, costumam ser esquecidas.
Drauzio – A única alternativa para evitar a malária, doença para a qual não existe vacina, é o uso do repelente?
Jessé Alves – Não é. Avaliando o risco a que o indivíduo será exposto nas regiões em que existe a malária, é possível prescrever algumas medicações que evitam a aquisição da doença ou, mesmo que não a evitem, fazem com que se manifeste de forma menos grave. Essas drogas, porém, só devem ser tomadas com a orientação expressa de um especialista.
Drauzio – Que drogas são essas?
Jessé Alves – Os antibióticos usados normalmente no tratamento da malária podem ser prescritos também como prevenção da doença. No Brasil, essa prática ainda não é muito adotada, porque usar essas drogas de modo abrangente pressupõe o risco de que o parasita adquira resistência nas regiões onde é mais comum. Por isso, elas devem ser indicadas com muito critério por um especialista na área.
REGIÕES DE RISCO
Drauzio – Em que regiões a malária e a febre amarela são mais comuns?
Jessé Alves – Para a malária, são regiões de risco todos os estados que compõem a Amazônia Legal: Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia, Acre, Amapá, norte do Mato Grosso e a fronteira do Maranhão com o Pará. Alguns casos da doença foram registrados em lugares distantes dessas áreas, por exemplo, na região de Mata Atlântica do Estado de São Paulo. Como são casos pontuais, o risco de transmissão da doença não é grande.
Drauzio – A prevenção da malária é cercada de uma série de mitos. Há quem diga que tomar complexo B evita a picada do mosquito. Na Amazônia, existe a crença que tomar uma colher de creolina por semana também afasta os mosquitos. O que existe de verdade nessas crenças?
Jessé Alves – No Brasil, não existem estudos sobre o uso de óleos naturais que muitas pessoas utilizam como prevenção contra a picada do mosquito, e seria interessante fazer uma pesquisa sistemática nessa área. Entretanto, já foram realizados estudos utilizando o complexo B como repelente, que se mostrou totalmente ineficaz nesse caso. De concreto, a única evidência é que somente o DEET é a substância ativa capaz de repelir a picada de insetos. Portanto, a pessoa pode fazer uso do complexo B, se quiser, mas deve também aplicar o repelente na pele.
FEBRE AMARELA
Drauzio – Quais as regiões de risco para a febre amarela?
Jessé Alves — Para a febre amarela, além de todos os estados da Amazônia Legal, a região de risco abrange Mato Grosso do Sul, Goiás, as áreas de fronteira desses estados com os estados vizinhos, o oeste da Bahia, praticamente todo o estado de Minas Gerais, o oeste de São Paulo e do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Já foi constatada, em todos esses lugares, a transmissão do vírus da febre amarela ou, pelo menos, em algum momento, foi registrada a existência do vírus em grupos de primatas, que são os reservatórios desse vírus na natureza.
Drauzio – Você poderia explicar a diferença entre febre amarela silvestre e febre amarela urbana?
Jessé Alves – A febre amarela silvestre é transmitida pelo mosquito Haemagogus que pica um macaco infectado pelo vírus e o transmite ao homem. É uma doença extremamente grave, mas o número de casos é pequeno no Brasil.
O vetor da febre amarela urbana é o mesmo mosquito que transmite a dengue, o Aedes aegypti, que foi reintroduzido em nosso país nos anos 1970. Embora, desde a década de 1940, não se registrem casos de febre amarela urbana, o risco existe. Basta uma pessoa ser infectada na mata e ir para uma cidade onde há o mosquito Aedes aegypti, para servir de foco para um surto da forma urbana da doença. Por isso, são muito importantes as medidas de combate ao mosquito para evitar que tenhamos novamente casos de febre amarela nas cidades, fato que já ocorreu com a dengue.
HEPATITES A E B
Drauzio – No caso das hepatites A e B, que cuidados devem ser tomados pelas pessoas que vão viajar?
Jessé Alves – A hepatite A e a hepatite B, apesar do nome praticamente idêntico, são doenças muito diferentes. A hepatite A é adquirida basicamente pelo contato com alimentação e água contaminadas. O vírus eliminado pelas fezes pode infectar os reservatórios de água ou a mão das pessoas que manipulam alimentos e ser transmitido. A melhor forma de evitar o contágio é a vacinação. Existe uma vacina específica contra a hepatite A que, infelizmente, ainda não é distribuída pela rede pública de saúde.
Quem não puder tomar a vacina deve redobrar as precauções. Sempre que possível, deve tomar água mineral engarrafada de boa procedência ou, pelo menos, água que tenha sido filtrada e fervida (a fervura ajuda a eliminar a grande maioria de bactérias e vírus). O uso de cloro ou de substâncias à base de iodo na água também ajuda a reduzir o risco de aquisição da hepatite A.
A hepatite B é uma doença transmitida pelo contato sexual ou pelo sangue contaminado e para a qual existe uma vacina bastante eficaz. Atualmente, no Brasil, são vacinadas contra a hepatite B todas as crianças e adolescentes até os 20 anos. Quem está nessa faixa de idade e ainda não tomou a vacina deve procurar um posto de saúde para fazê-lo.
Drauzio – A vacina contra a hepatite B é indicada também para pessoas mais velhas?
Jessé Alves – A vacina contra a hepatite B não é prescrita para as pessoas mais velhas de forma universal, mas quem deseja prevenir-se contra a doença pode tomá-la, pois não tem nenhuma contraindicação.
No entanto, precisam tomar essa vacina as pessoas que vão viajar para lugares onde a doença é mais prevalente, como é o caso da região amazônica, por exemplo; as pessoas com comportamento de risco, ou seja, aquelas que não usam preservativo nas relações sexuais ou usam drogas injetáveis; os profissionais de saúde e quem reside com indivíduos com diagnóstico confirmado da doença e possa ter contatos ocasionais com as secreções do doente.
Drauzio – Quais as regiões do Brasil onde o risco de adquirir hepatites é maior?
Jessé Alves – No Brasil, a distribuição do vírus da hepatite A é grande. Na verdade, esse vírus está mais ligado às condições socioeconômicas e às medidas de saneamento básico existentes do que propriamente a áreas geográficas. Provavelmente, o risco seja maior no Nordeste, especialmente na região litorânea, em virtude dos problemas sérios relacionados com o tratamento e saneamento dos esgotos.
LEISHMANIOSE
Drauzio – Você mencionou a leishmaniose, uma doença que poucos conhecem. Quais são as características dessa doença?
Jessé Alves – A leishmaniose é uma doença distribuída em praticamente todos os estados do Brasil, mas há áreas que concentram maior número de casos, como alguns estados do Nordeste (Ceará, Piauí e Maranhão), o sudeste de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e, na região norte, Amazônia, Pará, Roraima e Amapá.
Existem dois tipos de leishmaniose: a que acomete principalmente a pele e as mucosas (boca e nariz) e a visceral que acomete órgãos internos, como baço, fígado e medula óssea. A leishmaniose é uma doença grave que pode levar à morte.
Drauzio – Qual é o agente etiológico da leishmaniose?
Jessé Alves – O agente da leishmaniose é um protozoário, a Leishmania, que compreende várias espécies. Ele é transmitido pela picada de um mosquito popularmente conhecido como Mosquito Palha, cujo nome cientifico é Phlebotomus. Conforme a espécie, esse micro-organismo produz formas diferentes da doença. A leishmaniose visceral é a mais grave delas e pode ser fatal, se não for precocemente diagnosticada e tratada.
Drauzio – Existe vacina contra a leishmaniose?
Jessé Alves – Não existe vacina. A única forma de prevenir a doença é evitar a picada do inseto vetor do parasita, o que se consegue usando o repelente sempre e de maneira correta.
FEBRE TIFOIDE
Drauzio – Além da malária, febre amarela, hepatites e leishmaniose, que outras doenças devem ser alvo da atenção dos viajantes?
Jessé Alves – Podemos citar a febre tifoide, doença transmitida por uma bactéria que é adquirida através da alimentação ou de água contaminada. Ela é frequente nos estados das regiões norte e nordeste e está diretamente ligada a práticas de higiene e condições de saneamento básico.
A vacina contra a febre tifoide só pode ser indicada em casos específicos. Não é uma vacina que ofereça proteção ampla contra todos os casos da doença, mas sempre é melhor do que nada.
PRECAUÇÕES
Drauzio – Quando você viaja para esses lugares, que tipo de alimentos você não come?
Jessé Alves – Quando viajo, adoro experimentar alimentos típicos. Acho que conhecer a culinária local faz parte integrante da viagem. No entanto, é sempre importante evitar alimentos crus. Saladas, frutas previamente descascadas, carne e peixes crus ou mal cozidos são veículos de transmissão de uma série de doenças. Por isso, é importante prestar atenção se a comida foi preparada recentemente e se foi aquecida antes de ser levada à mesa. Isso pode reduzir bastante o número de casos de doenças transmitidas por alimentos.
Drauzio – Tem gente que não come salada fora de casa. É justificável essa cautela?
Jessé Alves – Existe o risco de adquirir doenças transmitidas pelas pessoas que preparam os alimentos, principalmente alimentos crus. Aliás, alimento cru nunca é 100% seguro se não for manipulado pela pessoa que vai ingeri-lo. Portanto, ao pedir uma salada fora de casa, é importante avaliar se o local preenche minimamente as condições de higiene adequada e se existe fiscalização e cuidado no preparo dos alimentos.
Drauzio – Em São Paulo existe um núcleo de medicina do viajante no Hospital Emílio Ribas e outro no Hospital das Clinicas. No Rio de Janeiro, há um núcleo na UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Três núcleos para atender as pessoas que viajam para os locais de risco – e são muitos -, num país das dimensões do Brasil, é muito pouco. O que você aconselha aos viajantes que não têm acesso a esses núcleos especializados?
Jessé Alves – As pessoas devem buscar informações sobre os lugares a que se dirigem. Atualmente, essas informações estão disponíveis na internet. Em posse desses dados, aquelas que não puderem ter acesso a um centro especializado devem procurar um clínico geral ou um infectologista para obter orientações sobre vacinas e outras formas de evitar doenças durante as viagens.
Drauzio – E no caso das viagens internacionais?
Jessé Alves – Esse é um público extremamente importante. Atualmente, no Hospital Emílio Ribas, a metade das pessoas que nos procuram vai fazer viagens internacionais para países como a Índia ou para países da África e da Ásia, onde existem doenças que não são comuns no Brasil. Por isso, os viajantes precisam obter informações especificas sobre elas e se existem medidas de proteção, como as vacinas, que podem ser tomadas antes do embarque e durante a estada no local.
Site
www.emilioribas.sp.gov.br