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Genética no Brasil | Entrevista

Mesmo com origem no século XIX, por décadas a genética permaneceu desconhecida do grande público. O geneticista Willy Beçak conta como era a genética no Brasil nos anos 50 e como caminharam as pesquisas na área no país. 
Publicado em 01/02/2012
Revisado em 11/06/2021

Mesmo com origem no século XIX, por décadas a genética permaneceu desconhecida do grande público. O geneticista Willy Beçak conta como era a genética no Brasil nos anos 50 e como caminharam as pesquisas na área no país. 

 

Após falar sobre a história da genética, o especialista Willy Beçak traça um panorama sobre a pesquisa nesta área da ciência no Brasil.

 

Drauzio – Quando começou a manifestar-se seu interesse pela Genética?

Willy Beçak – Meu primeiro contato com a Genética aconteceu no colégio. Foi um caso de paixão à primeira vista, que norteou minhas opções no futuro.  Por isso, escolhi um curso da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade São Paulo que tinha Genética como disciplina básica, fundamental, e procurei um trabalho que me mantivesse em contato com ela, fosse o magistério ou a pesquisa científica.

 

Drauzio – Hoje é muito fácil entender esse fascínio que os estudantes têm pela Genética. No entanto, na década de 1950, quando era uma área meio desconhecida da ciência, deve ter sido mais difícil explicá-lo.

Willy Beçak – De fato. A Genética era tão desconhecida que, em geral, as pessoas me perguntavam: “Mas, para que serve isso?”. Acontece que Afrânio do Amaral (depois do Vital Brasil, o diretor do Butantan que mais se dedicou ao ofidismo), me convidou para ser pesquisador no Instituto. Seu argumento foi o seguinte: “Olhe, apesar de o pessoal falar que a Genética só serve para conhecer a drosófila, minha visão é diferente. Acho que entender realmente o seu significado é fundamental num instituto de pesquisa como o nosso”.

Como era professor de cursinho e tinha certa experiência em dar aulas, os meus primeiros meses de Butantan passei explicando para os pesquisadores e médicos que ali trabalhavam o que era Genética, sua aplicação e importância para a saúde pública.

 

CITOGENÉTICA

 

Drauzio – Naquela época, não entendíamos direito os mecanismos da evolução, nem sequer atinávamos com a relevância das experiências com as mosquinhas da banana para explicar o fenômeno da hereditariedade na espécie humana.  

Willy Beçak – Até o início da década de 1950, não se conhecia ainda o número exato dos cromossomos existentes na espécie humana, nem que o DNA era um material genético da maior importância. Os avanços nas pesquisas, porém, vieram em cadeia. Em 1953, num artigo na revista inglesa “Nature”, Watson e Crick  descreveram que a dupla hélice do DNA era responsável pelo material genético; em 1956, Tijo e Levan provaram que o ser humano tinha 46 cromossomos (23 pares) em cada célula e não 48 como antes se acreditava. Em 1959, Jérôme Lejeune, na França, descobriu que a síndrome de Down era uma anomalia cromossômica causada por uma cópia a mais do cromossomo 21.

No Brasil, foi em 1960 que começou a funcionar o Laboratório de Genética no Instituto Butantan, o primeiro a realizar o estudo citogenético dos cromossomos humanos.

 

Drauzio – Que relevância tiveram os avanços da citogenética para a saúde?

Willy Beçak – Citogenética é um ramo da biologia que se ocupa do estudo da estrutura e da função dos cromossomos humanos e da correlação entre as alterações no material cromossômico e a ocorrência ou recorrência de doenças de caráter genético. Para tanto, foi de fundamental importância contar com o microscópio óptico e com o desenvolvimento de determinadas técnicas de cultura de células do organismo.

Antes de conhecer a composição do material cromossômico, quando as pessoas eram encaminhadas ao laboratório para estudar se uma doença era hereditária ou não, nós nos baseávamos somente na história da genealogia familiar. Ou seja, verificávamos a presença da enfermidade nos diferentes membros da família (pais, avós, filhos, primos, tios, sobrinhos, etc.), se era transmitida sempre diretamente dos pais para os filhos (dominante), ou se às vezes ficava silente (recessiva). Era sob a égide do estudo da genealogia, que se estabelecia o diagnóstico e o aconselhamento genético, indicando a probabilidade de o casal ter um filho ou um outro descendente com aquela afecção. Não possuíamos nenhum meio material para identificar o problema. Foi só com o conhecimento dos cromossomos humanos e de que várias dessas doenças eram condicionadas por alterações do material cromossômico que conseguimos fazer a correlação necessária.

O Laboratório de Genética do Butantan foi o primeiro a aplicar a citogénetica humana no Brasil. Desenvolvemos uma técnica que permitiu basear o aconselhamento genético em dados objetivos. Uma vez feita a coleta de sangue dos pais e, depois de cultivar as células e analisar o material ao microscópio, era possível dizer para um casal, com grande margem de acerto, se um filho possuía alterações cromossômicas próprias de determinada doença genética e qual era a probabilidade de outros filhos serem afetados.

Apesar de nem todas as doenças genéticas serem condicionadas por anomalias cromossômicas, a citogenética representou uma contribuição extremamente importante para o estudo das enfermidades. Hoje, graças aos avanços decorrentes do esforço para o mapeamento do genoma humano, dominamos técnicas bioquímicas e citológicas mais desenvolvidas e sofisticadas. Um exemplo são as sondas genéticas que têm afinidade por um gene específico em determinado cromossomo.  Se o gene for anômalo, ela se fixa naquele lugar, o que facilita identificar os portadores de alterações. Nos genes normais, elas não se fixam.

 

PRODUÇÃO CIENTÍFICA

 

Drauzio – Como era o ambiente científico quando você começou a trabalhar no Instituto Butantan?

Willy Beçak – O ambiente era composto basicamente por médicos. Parte deles se dedicava ao estudo de doenças parasitológicas ou transmissíveis e parte, ao estudo das serpentes e de seus venenos. A produção do Instituto, por excelência, era de soros antiofídicos contra vários tipos de serpente e de soros antipeçonhentos, em especial, contra o veneno de aranhas e de escorpiões.

Mais tarde um pouco, teve início a produção de vacinas contra a varíola, por exemplo, que era uma doença contagiosa prevalente no Brasil. Ela era preparada em escarificações de carneiro com o vírus vacínico, isto é, um vírus atenuado.

 

Drauzio – No final dos anos 1960, trabalhei na enfermaria de varíola do Hospital Emílio Ribas, quando a doença era mesmo prevalente. A vacinação mudou esse quadro. Que outros produtos foram desenvolvidos no Instituto Butantan, que reverteram em ganhos para a saúde da população naquela época?

Willy Beçak – Além dos soros contra o veneno de animais peçonhentos, o Butantan passou a fazer as vacinas antirrábica, contra tétano, coqueluche e tifo e a BCG, que continuam sendo produzidas até hoje.

 

PESQUISADORES ESTRANGEIROS

 

Drauzio – Nessa época, muitos pesquisadores estrangeiros vieram trabalhar no Brasil. Há alguém que você gostaria de mencionar?

Willy Beçak – Trabalharam no Instituto Butantan pesquisadores de fama mundial, como Heinz Fraenkel-Conrat e Karl Slotta que isolaram, caracterizaram e cristalizaram a crotoxina, uma proteína extraída do veneno da cascavel. Slotta era químico e descreveu também a eletroforese em papel. Fraenkel-Conrat recebeu mais tarde o prêmio Nobel por ter decodificado e recristalizado o vírus do mosaico do tabaco. Numa época em que se discutia se o vÍrus era um organismo vivo ou não, um cristal ou não, ele mostrou qual era o material genético do vírus.

 

Drauzio – O que mais os atraía nos institutos de pesquisa brasileiros?

Willy Beçak – Tanto o Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, quanto o Butantan e o Adolfo Lutz, em São Paulo, receberam grande número de pesquisadores de fora que passaram temporadas bastante longas no Brasil, não só para estudar as doenças tropicais, parte delas vigentes até hoje, mas também para o estudo da diversidade.

 

FALTA DE VISÃO POLÍTICA

 

Drauzio – O Butantan, que foi um centro avançado de pesquisa, atravessou depois fases muito difíceis. O que explica esses maus momentos?

Willy Beçak – Infelizmente, quando as interferências políticas se tornaram comuns nos institutos de pesquisa, muitos cientistas foram expulsos. Embora readmitidos mais tarde, essas temporadas de ausência e interrupções prejudicavam muito o andamento dos trabalhos. Por isso, assim como os outros institutos de pesquisa, até bem pouco tempo atrás, o Butantan experimentou fases de crescimento intercaladas com períodos de grande crise.

 

Drauzio – O Estado não tem verba para manter os institutos de pesquisa funcionando a contento. O dinheiro, às vezes, vem; às vezes, não vem. Como essa inconstância pode interferir no futuro dessas instituições? 

Willy Beçak – Esse é um ponto extremamente importante e que me interessa muito. No Brasil, tanto o governo federal quanto o estadual precisam estabelecer uma política consistente visando ao desenvolvimento científico e tecnológico. O fato é que, às vezes, eles aumentam ou diminuem a verba, por pressão ou condescendência, mas lhes falta a visão de que as conquistas da ciência são fundamentais para o progresso do País.

Os Estados Unidos, até hoje, são os que mais investem em ciência e tecnologia. Mesmo assim, estão preocupados com o que vai acontecer daqui a vinte anos, porque acreditam não estar investindo o suficiente. País com essa consciência, certamente, reconhece sua responsabilidade social no que se refere à saúde pública, à educação e ao desenvolvimento científico e tecnológico.

No Brasil, existe pouca preocupação com a pesquisa. As verbas estão muito aquém das necessidades. Em São Paulo, a FAPESP supre em parte essa deficiência, porque tem receita própria. A meu ver, porém, é obrigação do Estado investir maciçamente em institutos de pesquisa.

Não é exagero dizer que a contribuição científica e tecnológica para o desenvolvimento de novas espécies do Instituto Agronômico, fundado pelo imperador Pedro II, há mais de cem anos, e dos institutos Butantan e Adolfo Lutz para a saúde pública, foi fundamental para o progresso do Estado, que deixou de ser uma província atrasada e pequena para transformar-se no expoente que é hoje. No entanto, se investe muito pouco para que esses institutos continuem funcionando e em projetos de pesquisas que os tornem competitivos internacionalmente.

 

Drauzio – Os americanos investem 3% do produto nacional bruto em pesquisas científicas; a França e a Itália menos da metade desse valor. Como consequência, em muitos campos, os Estados Unidos estão anos e anos na frente da Europa. Diante dessa perspectiva, não parece lógico que investir em pesquisa é a única forma de assegurar uma vida melhor para nossos filhos e netos? Que cegueira é essa que impede nossos dirigentes de enxergarem essa realidade?

Willy Beçak – Continuo dizendo que alguns políticos se empenham em prestigiar mais a pesquisa científica, mas o fazem por condescendência, não porque tenham consciência de sua importância. Parte da responsabilidade cabe a eles, é certo, mas parte cabe a nós. A comunidade científica tem-se isolado muito, fala intramuros, o que está errado. Temos que nos valer da mídia, ir ao Senado, à Câmara dos Deputados, aos chefes de governo e insistir na importância do apoio à pesquisa científica e tecnológica. Cabe a nós, e à sociedade como um todo, o dever de pressionar.

Veja o que aconteceu na França. O Instituto Pasteur de Paris não é patrocinado apenas pelo governo. A comunidade também está envolvida nesse trabalho. Como estava para ser fechado por falta de verba, o povo se mobilizou e exigiu das autoridades e das instituições que investissem para mantê-lo funcionando. Aqui no Brasil, gasta-se tanto dinheiro à toa, dinheiro que poderia ser aplicado em ciência e desenvolvimento.

 

GENÉTICA NO BRASIL

 

Drauzio – Como você vê o futuro da Genética no Brasil?

Willy Beçak – Nos idos dos anos de 1960, o Brasil tinha a terceira maior escola de Genética do mundo. Pergunta-se: por que era a terceira e não é mais? Porque naquele tempo era mais barato fazer ciência. Bastava o cientista ter um bom microscópio, alguns corantes e um pouco de imaginação. O resto era suor, transpiração.

Hoje, fazer ciência pressupõe contar com equipamentos sofisticados, drogas muito caras e grandes equipes. Nosso país ainda se destaca em algumas áreas, mas poderia fazer muito mais. Temos um potencial enorme de profissionais capazes e nosso jovem cientista é extremamente criativo. Tanto é que, quando emigra para trabalhar nos Estados Unidos, por exemplo, não o deixam voltar, porque sua contribuição é valiosa. O que lhes falta aqui são condições financeiras e locais para trabalhar. Veja o que aconteceu no Instituto Butantan. Mudanças nos critérios de aposentadoria fizeram com que vários profissionais antecipassem sua saída, mas nenhum deles foi substituído durante anos e o número de pesquisadores caiu bastante.

Embora especificamente na área da Genética tenhamos muita gente boa trabalhando, é preciso fazer muito mais. Os avanços em saúde pública foram muitos, mas as mesmas doenças que nos preocupavam cem anos atrás – dengue, febre amarela, malária, tuberculose – estão ai, não foram erradicadas. Não há dúvida de que as pesquisas genéticas podem contribuir muito para a prevenção dessas enfermidades, a única forma de resolver os problemas de saúde pública no Brasil e de competir em nível internacional.

 

Drauzio – O que você diria aos estudantes interessados em escolher uma profissão ligada à Genética?

Willy Beçak – Diria que o futuro promete ser muito bom. Claro está que encontrarão dificuldades, mas o campo de trabalho é magnífico e precisa de gente jovem e criativa.

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