Diferenças de gênero | Entrevista

Dr. José Salomão Schwartzman é neuropediatra. Formado na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), é professor titular de pós-graduação em Distúrbio do Desenvolvimento na Faculdade Presbiteriana Mackenzie. postou em Entrevistas

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Publicado em: 16 de outubro de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Embora seja uma questão polêmica, não é só por fatores puramente culturais que a menina prefere as bonecas e os meninos, a bola e os carrinhos. Veja entrevista sobre diferenças de gênero.

 

Na Grécia antiga, a diferença de gênero era explicada pela quantidade de calor atribuída, originalmente, a um único sexo biológico que reagiria de maneira mais perfeita, exteriorizando o aparelho reprodutivo no corpo de um homem, ou menos perfeita, deixando-o dentro do abdômen das mulheres. Essa idéia de inferioridade feminina atravessou os séculos, e nossos antepassados achavam que elas jamais conseguiriam atingir o nível de inteligência característico do sexo masculino.

Durante a Revolução Francesa, cujo lema era igualdade, liberdade e fraternidade, as mulheres lutaram ao lado dos homens e sua participação foi de fundamental importância para a conquista dos objetivos revolucionários. Vencida essa fase, porém, elas retomaram o lugar que ocupavam na sociedade, pois continuaram a ser consideradas incapazes para assumir responsabilidades cívicas e políticas.

Depois da Segunda Guerra Mundial, no século 20, vozes se levantaram contra o preconceito que a sociedade patriarcal e machista impunha às mulheres. Nos livros “O Segundo Sexo”, “A Mística Feminina” e “A Mulher Eunuco”, as autoras Simone de Beauvoir, Betty Friedman e Germaine Gree, respectivamente, combateram a marginalização feminina e defenderam a igualdade entre os sexos.

Hoje, sabemos que felizmente há diferenças biológicas entre homens e mulheres, que aparecem logo nos primeiros anos de vida e levam cada um dos sexos a desenvolver determinadas aptidões. Muito se tem discutido se a menina gosta de bonecas e os meninos de jogar bola porque a educação e as atividades a que são expostos incentivam essa preferência. Embora seja uma questão polêmica, estudos mais recentes revelam que essas diferenças começaram a ser estabelecidas pela ação dos hormônios sexuais ainda dentro do útero materno. Não é só por fatores puramente culturais que a menina prefere as bonecas e os meninos, a bola e os carrinhos. Uma força biológica dentro deles orienta essas escolhas.

 

DIFERENÇA DE COMPORTAMENTOS

 

Drauzio – O sexo se estabelece na vida intrauterina e os hormônios sexuais agem no cérebro, interferindo na formação das sinapses, ou seja, na formação das conexões entre os neurônios das meninas e dos meninos de maneira diferente. Você poderia explicar como isso acontece?

José Salomão Schwartzman – O cérebro do bebê do sexo masculino é banhado por quantidade maior de testosterona, o hormônio masculino, do que o cérebro da menina. Parece – pelo menos é essa a teoria que se defende atualmente – que, quando banhado por muita testosterona, o cérebro é construído de forma diferente. Existem evidências de que manipular esse hormônio em animais de laboratório ou mesmo em pessoas provoca a mudança de determinados comportamentos que são sexo-dependentes.

Tais diferenças de comportamento, boa parte dos indivíduos atribui a fenômenos culturais, mas há sinais claros de que outros fatores também pesam. É óbvio que os aspectos culturais e sociais existem, mas não se pode negar o papel biológico presente nesse processo. Por exemplo, comparadas com os meninos, as meninas nascem com uma diferença de maturação cerebral de quatro semanas. Se lembrarmos que a gestação normal é de 40 semanas, quatro semanas correspondem a 10% a mais no desenvolvimento desse processo de maturação.

 

Drauzio – O que quer dizer maturação cerebral nesse contexto?

José Salomão Scwartzman – Cérebro mais maduro significa que algumas funções biológicas estão mais bem preparadas para realizar determinadas atividades e essa diferença mantém-se pelo menos até o final da adolescência. Pais que têm filhos dos dois sexos, professores com classes mistas, médicos que atendem meninas e meninos, sabem que o desenvolvimento de homens e mulheres não obedece aos mesmos padrões. Os meninos movimentam-se mais no período perinatal, nas primeiras duas ou três semanas após o nascimento. Em compensação as meninas adquirem hábitos como o controle do esfíncter, por exemplo, muito mais cedo. Também está estatisticamente comprovado que elas falam antes e melhor do que os meninos. Costuma-se brincar até que começam a falar primeiro e nunca mais param.

Outra constatação importante é que, em média, as meninas amadurecem mais rápido do que os meninos e são superiores no que se refere à habilidade motora fina. Talvez, por isso, na linha de montagem de aparelhos eletrônicos, haja mais mulheres do que homens trabalhando. No entanto, os meninos têm desempenho superior, por exemplo, nas atividades que exigem habilidades motoras mais grosseiras, como jogar bola ou atirar um objeto para acertar o alvo. É curioso observar, por exemplo, que as marcas olímpicas de homens e mulheres numa modalidade esportiva em que ambos treinem o mesmo número de horas são sempre diferentes, porque se baseiam numa vantagem biológica inicial que o treino não consegue superar. Por isso, homens e mulheres não concorrem juntos nas competições de arco e flecha e tiro ao alvo.

 

Drauzio – Esse número maior de mulheres em certos ramos de atividade, muitos atribuem ao fato de até hoje elas ganharem menos do que os homens.

José Salomão Schwartzmann – Em muitos casos, elas são preferidas porque são melhores do que os homens naquela atividade e não porque ganham menos.

 

INTELIGENCIA ESPACIAL

 

Drauzio  Existe outro tipo de habilidade mais desenvolvida nos meninos do que nas meninas?

José Salomão Schwartzman – Meninos têm desempenho superior ao das meninas nas atividades que envolvem inteligência espacial, como encontrar o caminho que conduz à saída de um labirinto. Nos adultos, a evidência mais representativa dessa diferença é a dificuldade que habitualmente as mulheres têm de decifrar um mapa rodoviário, coisa que os homens fazem com mais tranquilidade.

Na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde dou aula nos cursos de pós-graduação, uma de minhas alunas do curso de Fisioterapia, que tinha sido bombeiro, fez uma pesquisa interessante. Ela testou bombeiros homens, bombeiros mulheres, universitários e universitárias na tarefa de encontrar um caminho dentro de um labirinto.

Não sei se todos sabem, mas faz parte do treinamento dos bombeiros um exercício que se chama “casinha da fumaça”, com o intuito de prepará-los para alguma eventualidade em que seja necessário encontrar uma rota de escape. Minha aluna construiu o labirinto e registrou o tempo que cada participante levava para cumprir a tarefa. O resultado foi que homens bombeiros eram melhores do que mulheres bombeiros e que estas eram superiores aos homens não bombeiros que eram superiores, por sua vez, às mulheres não bombeiros. Isso demonstrou claramente que o treino interfere, mas não anula a diferença de base que deve ser biológica.

Experiências de laboratório mostraram também que os ratinhos são melhores do que as ratinhas para andar num labirinto e encontrar comida. Outra coisa que se descobriu nos testes com ratos, e que vale para a espécie humana, é que se o labirinto for coberto com um pano, as ratinhas não encontram mais o alimento porque não usam as pistas cartográficas. Usam objetos de referência. Os homens, quando explicam como chegar a um determinado lugar, à Avenida Paulista de São Paulo, por exemplo, dizem: “Você sai do Largo São Francisco, pega a rua Cristóvão Colombo que muda de nome e vira Brigadeiro Luís Antônio e sobe essa avenida até o cruzamento com a Paulista”. A mulher sistematicamente vai dizer: “Você sai da Faculdade de Direito, pega a rua que tem um prédio cinza na esquina, anda até o fim, atravessa na faixa em frente daquela loja e vai subindo a Brigadeiro. A avenida Paulista fica depois daquela igreja…” Essas características parecem biológicas e não culturais.

 

Veja também: O sexo redefinido

 

INFLUÊNCIA DOS HORMÔNIOS

 

Drauzio – O que acontece com o cérebro das mulheres se exposto a altas doses de hormônio masculino?

José Salomão Schwartzman – Quando se estudam indivíduos do sexo feminino cujo cérebro, por condições patológicas, foi exposto a doses muito altas de hormônio masculino, nota-se que, embora não sejam necessariamente homossexuais, do ponto de vista cerebral, funcionam mais como homens do que como mulheres.

 

Drauzio – E com o cérebro dos travestis que tomam hormônio feminino, o que acontece?

José Salomão Schwartzman – Quando tomam hormônio feminino em altas doses, eles mudam a programação cerebral. Isso prova a importância dos hormônios no mecanismo cerebral.

 

Drauzio – Quais são as implicações práticas desse conhecimento sobre a ação dos hormônios no cérebro?

José Salomão Schwartzman – Se pensarmos que os hormônios sexuais podem determinar que a pessoa terá melhor inteligência espacial ou, então, melhor habilidade verbal, a pergunta é se eles interferem no desempenho das mulheres que passam por enormes diferenças hormonais todos os meses. Parece que sim. Embora a conclusão não seja consensual, porque há resultados conflitantes, vários trabalhos mostram que a mulher chega ao ápice da habilidade verbal no meio do ciclo menstrual, ou seja, no período de maior produção de estrógeno, e que a atividade espacial é melhor quando o nível desse hormônio cai e ela passa a produzir mais progesterona.

Saber disso tem uma aplicação prática inquestionável na vida das mulheres. Digo para minhas alunas que não marquem a defesa de tese para o período em que o nível de estrógeno está em queda, nem a prova de direção quando ele está muito alto.

 

Drauzio – Existe certa lógica nisso. Na primeira fase do ciclo menstrual, o nível de estrógeno sobe para preparar a mulher para o sexo e aumentar a habilidade verbal é uma forma de capacitá-la melhor para a atividade sexual. Na segunda fase, produção maior de progesterona prepara a mulher para a gravidez e aí não faz diferença ter habilidade verbal exuberante.

José Salomão Schwartzman – É verdade. E, à medida que surgem evidências das características de cada gênero, vemos que elas têm muito a ver com a escolha da profissão. Por que existem tão poucos pilotos comerciais do sexo feminino? Acredito que, em parte, porque o mundo é mesmo machista, mas também porque pesa o fato de a inteligência espacial ser de extrema importância para alguém pilotar um jato comercial.

 

INTERAÇÃO SOCIAL

 

Drauzio – Em que tipo de atividade as mulheres são seguramente mais habilidosas do que os homens?

José Salomão Schwartzman – Elas são indiscutivelmente superiores nas habilidades verbais. Outro aspecto fundamental da diferença entre meninos e meninas, homens e mulheres, é o grau de interação social que o sexo feminino tem. Você nota isso nas crianças pequenas. Desde cedo, meninas têm atividade grupal muito mais intensa do que os meninos. Repare nas festas de aniversário. Meninos de 7, 8, 9 anos, cada um está entretido com uma atividade diferente. Um pula na cama elástica, outro anda de bicicleta ou sobe num trampolim e há o que não tira os olhos do jogo de videogame. Meninas da mesma idade estão todas em volta de uma boneca ou participando da mesma brincadeira.

Por isso, há quem diga que o cérebro feminino é o cérebro da empatia e o masculino, o cérebro sistemático. Homem lida melhor com sistemas, botões, equipamentos elétricos. Mulher domina a empatia social e é considerada quase telepata, porque consegue adivinhar, com frequência, o que o outro está pensando.

 

Drauzio – Essa habilidade feminina era atribuída a fatores culturais. No passado, as meninas eram mais reprimidas. Passavam o dia ouvindo que menina deve ficar quieta, prestar atenção, ser cuidadosa. Como consequência, acabavam desenvolvendo um tipo de habilidade diferente da dos meninos.

José Salomão Scwartzman – Não é essa a visão que se tem hoje. Parece que se trata mesmo de uma característica biológica. Antigamente, quando se dizia que menina gosta de brincar mais com bonecas e menino, com bolas e carrinhos, a explicação era que eram esses os brinquedos que recebiam desde pequenos. Não é verdade. Crianças bem pequenas demonstram claramente preferência por determinado brinquedo mesmo diante de uma oferta variada de objetos. Fazem isso por motivação interna. Isso ilustra por que existem mais meninos interessados em videogame do que meninas. Provavelmente, porque eles têm mais facilidade para mexer no aparelho e conseguem pontuação maior. Vários estudos mostram que, expostos ao mesmo número de horas de treinamento, os rapazes obtêm melhores resultados do que as moças nesse tipo de jogos desde o primeiro dia. A justificativa é o fato de o cérebro masculino ser sistemático e mais hábil em termos espaciais do que o cérebro feminino.

 

MORFOLOGIA DO CÉREBRO

 

Drauzio – O cérebro masculino tem entre 10 e 20 milhões de neurônios a mais do que o cérebro feminino. No entanto, como existem 100 bilhões de neurônios, pode-se dizer que essa diferença morfológica é bastante pequena.

José Salomão Schwartzman – A mulher tem menos neurônios do que o homem, mas tem mais conexões. Além disso, as estruturas que conectam os dois hemisférios cerebrais são maiores na mulher.

 

Drauzio – Que implicação isso tem?

José Salomão Schwartzman – A implicação é que o cérebro da mulher é menos especializado do que o do homem no seguinte sentido: funções superiores, como a linguagem e a inteligência espacial, têm evidente preferência por um hemisfério ou por outro no cérebro do homem. Por exemplo, no hemisfério esquerdo do cérebro masculino estão localizadas as estruturas responsáveis pela linguagem e, no hemisfério direito, as responsáveis pela inteligência espacial.

Já a mulher utiliza os dois hemisférios para falar. Isso traz algumas vantagens e algumas desvantagens. Se ela ocupar uma região do hemisfério direito com a fala, provavelmente terá sacrificado parte da área reservada para a inteligência espacial.

E mais: sob o ponto de vista médico, mulheres que tiveram acidente vascular cerebral ou traumatismo craniano estão mais sujeitas do que os homens a apresentar um distúrbio de linguagem. No entanto, recuperam-se melhor.

Diante dessas evidências, é inadmissível que estudos e estatísticas não levem em consideração o sexo das pessoas que participam da amostra, porque a história natural das doenças é diferente nos homens e nas mulheres. Predominantemente, os laboratórios utilizam ratos machos para testar medicamentos. Hoje, porém, existe a hipótese de que nem toda a substância que é eficaz para o macho funciona da mesma forma na fêmea.

 

Drauzio – As meninas nascem com maturação do sistema nervoso central superior ao homem, diferença que se mantém nos primeiros anos de vida. Elas têm também maior habilidade verbal. Tais características não justificariam que fossem matriculadas mais cedo nas escolas?

José Salomão Schwartzman – Quando meninos e meninas de seis, sete anos são colocados na mesma série e submetidos ao mesmo tipo de exigência pedagógica, os resultados dos dois sexos são distintos. As notas e o índice de aprovação são sempre superiores nas meninas, não porque sejam necessariamente mais inteligentes, mas porque são privilegiadas em áreas como a da linguagem, que têm peso muito grande na atual proposta de ensino. Por isso, até se fala na possibilidade de criar escolas separadas para meninos e meninas, o que representaria um retrocesso do ponto de vista social, mas o nível de exigência em sala de aula deveria respeitar as características biológicas de cada sexo. Nos países desenvolvidos, essa nova abordagem já começa ser foco de atenção dos educadores e pedagogos.

 

SELEÇÃO NATURAL

 

Drauzio  Partindo do pressuposto que existe uma arquitetura de sinapses entre os neurônios que se estabelece de forma diferente na mulher e no homem, é possível perceber como reagem as crianças pequenas diante de um estímulo estressante?

José Salomão Schwartzman – Nunca pensei nisso, mas posso dizer que nos adultos havia diferença muito grande na forma de homens e mulheres reagirem ao estresse. Os homens eram mais sensíveis. Parece que isso está mudando. Por outro lado, doenças ligadas ao estresse – doenças cardiovasculares, hipertensão arterial – que acometiam tipicamente o sexo masculino, hoje, passam a ser de competência também das mulheres.

Embora reajam de forma diferente, curiosamente em aspectos que parecem irrelevantes como a maneira de dissipar o calor do corpo aquecido – as mulheres são mais intolerantes ao ar-condicionado –, as características parecem baseadas na estrutura biológica de cada sexo.

 

Drauzio – Henry Ford, um dos pioneiros da indústria automobilística, sem querer estabelecer um critério de valores, dizia que as mulheres tinham a característica de chorar no ambiente de trabalho, mas admitiam que não sabiam fazer uma coisa e estavam dispostas a aprender, enquanto os homens não admitiam a ignorância e faziam tudo errado. 

José Salomão Schwartzman – Essas diferenças são evidentes no dia a dia. É clássica a cena do casal perdido nas ruas de uma cidade, o marido dirigindo o automóvel e a mulher tentando localizar onde estão no mapa. Ela vira o mapa de cabeça para baixo e de um lado para o outro e ele não pede ajuda a terceiros. Talvez esse comportamento masculino esteja relacionado com a necessidade de ser superior, de não demonstrar fraqueza, que foi inculcada nele por conta dos milhões de anos em que tal atitude era absolutamente fundamental para a sobrevivência da espécie. Na época das cavernas, quem tinha inteligência espacial levava vantagem. Caso contrário, saía para caçar e não voltava trazendo comida. Podemos dizer que o homem acerta melhor o alvo hoje por seleção natural. Os que não acertavam na primeira tentativa eram devorados.

Também sobreviveram as mulheres que eram capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Elas ficavam na caverna tomando conta da prole, cuidando que algum animal não entrasse pela porta, avivando o fogo e vendo se estava escurecendo lá fora. Até a acuidade visual acabou diferente nos dois sexos. O campo visual da mulher é mais amplo na penumbra. Já o homem enxerga melhor sob luz intensa. Essas habilidades devem estar associadas ao passado de caçador e de guardiã da caverna.

 

Drauzio – Como dizia o geneticista Dobzanski, não há fenômeno biológico que não encontre explicação na evolução das espécies. Sem a seleção natural, nada teria lógica nem explicação.

José Salomão Schwartzman – Fora desse contexto, fica difícil entender por que o cérebro dos homens e das mulheres funciona de maneira diferente

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