Estima-se que sejam realizados anualmente até 1,5 milhão de abortos inseguros no país. Maior risco, claro, fica para as mulheres pobres. Leia entrevista.
Nessa entrevista, resolvemos abordar questões sobre os direitos sexuais e reprodutivos, que incluem o direito de tomar decisões sobre a reprodução, de ter acesso à informação e à saúde pública e de exercer a sexualidade livre de violência, discriminação e coerção. Assim, vamos tratar de temas relacionados à pílula do dia seguinte, aos métodos contraceptivos hormonais, à laqueadura e à interrupção da gravidez, assuntos constantemente requisitados pelo público do nosso site e redes sociais e que despertam muitas dúvidas nas leitoras.
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A discussão sobre a descriminalização do aborto sempre gera controvérsias. Cada pessoa tem uma opinião, que varia de acordo com suas crenças e valores. Sem consenso, optamos por deixar tudo como está, permitindo que mulheres das periferias brasileiras morram em decorrência de abortamentos inseguros.
Por esse motivo, a questão do aborto tem que ser focada tão somente no grave problema de saúde pública que a criminalização acarreta. O procedimento feito de maneira insegura é a quarta causa de mortes maternas no Brasil e pode estar incluído também entre as segunda e terceira causas: hemorragias e infecções puerperais (período pós-parto), sendo responsável pela morte de 220 mulheres a cada 100 mil abortos em condições de risco em todo o mundo.
Apesar da ilegalidade, estima-se que sejam realizados anualmente entre 750 mil e 1,5 milhão de abortos inseguros no país, a maioria sem acompanhamento de profissional qualificado ou em local sem condições de higiene, o que aumenta em até 350 vezes o risco de morte.
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No entanto, para o Brasil chegar à descriminalização, será necessário ultrapassar as barreiras de um Código Penal de 1940, que foi influenciado por valores religiosos, apesar de nosso Estado ser laico. Para a psiquiatra Carmen Fusco, mestre e doutora em Saúde Coletiva pela Unifesp e autora da tese “Aborto inseguro: determinantes sociais e iniquidades em saúde em uma população vulnerável” cujos dados ilustram esta matéria, a primeira medida que deve ser implantada é uma política de redução de danos, assim como a adotada pelo Uruguai em 2000 e que em quatro anos (de 2004 a 2008) conseguiu reduzir em 100% o número de óbitos maternos causados por abortamento (o país acabou por aprovar a lei de despenalização do aborto em 2012).
“Aqui no Brasil muitas mulheres conseguem obter o misoprostol, um medicamento ilegal. Muitas vezes elas o utilizam de maneira incorreta, sem acompanhamento profissional, e isso traz consequências sérias à saúde da mulher”, afirma Fusco.
A pesquisadora, que passou sete anos estudando o tema em uma favela da zona norte da cidade de São Paulo, ressalta que as experiências internacionais têm indicado que, quando aliada a políticas de planejamento familiar e de redução de danos, a descriminalização do aborto é capaz de reduzir de forma expressiva a mortalidade materna.
Atualmente, 97% dos abortos inseguros ocorrem em países em desenvolvimento, como o Brasil. “A população brasileira, sobretudo a que se encontra em situação de pobreza, seria diretamente beneficiada pela descriminalização do aborto. Enquanto não há modificação na lei, a mulher precisa ser inserida em um programa de redução de danos e receber orientação eficaz sobre planejamento familiar”, afirma a pesquisadora.
Portal DV – A senhora passou sete anos em uma pesquisa em uma favela no bairro da Freguesia do Ó, na zona norte da cidade de São Paulo. Como foi conduzido o estudo?
Carmen Fusco – Entrevistamos 375 mulheres, com idades entre 15 e 54 anos. Dessas, 93 já haviam abortado ao menos uma vez na vida, o que resultou em 144 abortos, um número bastante elevado. Dessas 93 mulheres, 51 provocaram 82 abortamentos inseguros e outras 42 declararam ter sofrido 62 abortos espontâneos. Nós acreditamos que dentro desse último número haja abortos provocados, só que com receio de serem punidas, elas acabam declarando-os como espontâneo. Fazendo uma média entre os números, temos 1,55 aborto por mulher, ou seja, muitas já provocaram mais de um aborto.
Portal DV – É possível traçar um perfil da mulher que faz abortos inseguros no Brasil?
Carmen Fusco – As mulheres que provocaram mais abortos inseguros já tinham uma quantidade de filhos maior do que consideravam ideal, número que geralmente gira em torno de dois. A maioria era de mulheres de etnia negra, de cor preta, com renda menor que meio salário mínimo, menos de quatro anos de estudo e não casadas. O que eu pude perceber durante o estudo é que muitas dessas mulheres optaram pelo aborto por não terem condições financeiras para sustentar o filho, o que foi estatisticamente comprovado.
Portal DV – Em qual época da vida as meninas optam por realizar o aborto?
Carmen Fusco – Existem dois picos: um é na primeira gestação e outro na terceira gravidez. Na primeira gestação, pelos motivos óbvios, geralmente elas não estão casadas.
Já para as mulheres mais velhas, imagino que estejam em um segundo casamento e não queiram mais filhos, ou por opção ou por não ter condições de sustentá-lo. Pudemos constatar também que as meninas que iniciam a vida sexual mais cedo, entre 11 e 16 anos, têm maior probabilidade de fazer aborto.
Portal DV – E como as mulheres das pesquisas enxergam o aborto?
Carmen Fusco – No grupo das mulheres que provocaram aborto, 56% declararam-se a favor e 44% contrárias. E mesmo assim, as que eram a favor justificavam que o procedimento só era aceito em casos de estupro ou da mãe não ter condições econômicas para criar outro filho. Na pesquisa, elas declararam desejar ter em média dois filhos, mas nem todas conseguiram manter-se dentro dessa meta. Já a porcentagem de homens não favoráveis à ideia do aborto é bem maior: 86% dos parceiros das mulheres que provocaram o aborto, mesmo que a favor do procedimento, acabaram por abandoná-las.
Portal DV – Por que essas mulheres escolheram recorrer ao aborto, em vez de optar por usar um método anticoncepcional?
Carmen Fusco – A falta de perspectivas e o uso irregular de contraceptivos acabam tornando o abortamento um regulador de fecundidade. Não é questão de escolha. Geralmente as pessoas procuram uma solução para o problema que têm, não imaginam que poderiam evitá-lo. Essa falta de conhecimento se dá porque não há uma política de planejamento familiar adequada. A distribuição de camisinhas e de outros métodos anticoncepcionais não é suficiente, e muitas jovens nem sabem que eles estão disponíveis nos postos de saúde. Muitas garotas deixam de tomar os contraceptivos distribuídos pelo SUS porque elas não conseguem se adaptar a eles. É preciso uma ação mais eficaz, um acompanhamento mais próximo. Durante a pesquisa, 70% das entrevistadas declararam que não usaram nenhum método contraceptivo à época das gestações que resultaram em aborto.
Portal DV – Muitas pessoas associam a descriminalização do aborto com a banalização do procedimento. Acham que oferecer o serviço no SUS vai influenciar muitas mulheres a trocar a contracepção pelo aborto. Esse raciocínio faz sentido?
Carmen Fusco – Não, não faz! O que a gente tenta fazer é se basear no que existe. Em nenhum país em que o aborto foi legalizado isso ocorreu. Em Cuba, por exemplo, houve um aumento no número de procedimentos no início, que depois diminuiu, assim como caiu o número de óbitos maternos, que passou de 120 mortes para sete a cada 100 mil nascidos vivos.
Portal DV – Por que a senhora acha que o aborto deve ser visto como uma questão de saúde pública?
Carmen Fusco – Primeiro precisamos diferenciar o aborto seguro do inseguro. Esse procedimento é o segundo mais executado na ginecologia mundialmente e não traria risco à saúde se fosse induzido em hospitais ou centros obstétricos. Mas essa não é a realidade no Brasil. Em países com leis restritivas como as daqui, ele ainda é realizado em condições precárias e por pessoas que não têm formação médica.
A ilegalidade do aborto torna-o arriscado à saúde e à vida e, consequentemente, uma questão de saúde pública. Coloca em risco a vida de mulheres de populações em situação de pobreza, que não têm condições financeiras para pagar por procedimentos mais seguros, como fazem as mulheres com poder aquisitivo mais elevado, que têm acesso a clínicas clandestinas mais sofisticadas ou que podem fazer o abortamento fora do país. Durante a pesquisa, 94% das mulheres com abortos provocados declararam complicações pós-procedimento e 83% referiram internação em algum dos abortamentos.