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Endocrinologia

Veto do CFM a terapias para jovens trans: o que diz a resolução? 

Publicado em 21/05/2025
Revisado em 20/05/2025

A resolução que proíbe o uso de bloqueadores da puberdade preocupa entidades médicas, associações e famílias; entenda as mudanças.

 

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, no mês passado, uma resolução que proíbe a prescrição de bloqueadores hormonais para crianças e adolescentes com incongruência de gênero – termo utilizado para descrever a discordância entre o sexo biológico atribuído ao nascer e a identidade de gênero. A nova regra também eleva a idade mínima para a realização de outros procedimentos relacionados à transição. A medida gerou forte reação de entidades médicas, organizações LGBTQIA+ e defensores de direitos humanos.

Diante de uma denúncia contra a medida apresentada por organizações ligadas ao tema, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento para apurar a legalidade da resolução. Entidades também entraram com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando a suspensão e o restabelecimento das normas anteriores. Segundo o processo, o ato do CFM aumenta a vulnerabilidade social das crianças e adolescentes trans. O relator do caso é o ministro Cristiano Zanin.

O Portal Drauzio ouviu especialistas e famílias afetadas para entender as mudanças promovidas pela resolução e seus possíveis impactos na vida de crianças e adolescentes trans.

 

O que diz a resolução do CFM?

 A Resolução CFM nº 2.427/2025, publicada em 8 de abril, atualiza os critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência ou disforia de gênero (desconforto e sofrimento vivido por pessoas nessa condição), substituindo a Resolução CFM nº 2.265/2019. As três principais alterações são:

 

Proibição do bloqueio puberal

A nova regra proíbe os médicos de prescreverem bloqueadores hormonais – medicamentos que interrompem temporariamente a puberdade. Anteriormente, esse tratamento poderia ser iniciado nos primeiros sinais da puberdade, com o objetivo de permitir que a criança ou adolescente tivesse tempo para explorar sua identidade de gênero sem o impacto de mudanças corporais irreversíveis.

 

Restrições à terapia hormonal

A terapia hormonal – que utiliza estrogênio ou testosterona para promover características físicas femininas ou masculinas – agora só pode ser iniciada a partir dos 18 anos. Antes da nova resolução, era permitida a partir dos 16 anos.

 

Cirurgias de transgenitalização 

A idade mínima para cirurgias de afirmação de gênero, como a neovulvovaginoplastia (construção de uma neovagina e de uma neovulva, que envolve a remoção de testículos e pênis) e histerectomia com ooforectomia bilateral (remoção de útero e ovários, resultando em esterilidade permanente), subiu de 18 para 21 anos.

        Veja também: Como funciona a hormonioterapia para mulheres trans

 

Quais as justificativas do CFM

Na resolução, o CFM reconhece que os tratamentos melhoram a qualidade de vida e redução de quadros de depressão, ansiedade e outros problemas bastantes prevalentes entre a população trans. Porém, alega que ainda faltam evidências robustas sobre seus efeitos de longo prazo. Diz ainda que países como Inglaterra, Noruega e Finlândia vêm revendo suas diretrizes por entenderem que mais pesquisas são necessárias. 

A entidade também menciona estudos sobre o aumento de casos de arrependimento em alguns países. O órgão ainda cita que a exposição a bloqueadores da puberdade podem afetar a resistência óssea, crescimento adequado e fertilidade por causa da supressão da  produção de hormônios sexuais. Fala ainda sobre possíveis danos irreversíveis de tratamentos (especialmente com a terapia hormonal e cirurgia), como a capacidade reprodutiva.

Críticas de entidades médicas

Em nota conjunta, cinco entidades médicas – entre elas a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia e a Sociedade Brasileira de Urologia – criticaram a resolução. Segundo elas, apesar de existirem lacunas no conhecimento, a produção científica na área vem crescendo, com mais de 2.800 estudos publicados em 2024 na base de dados PubMed. ‘’Proibir este caminho não deve ser a solução proposta para melhorar o cuidado oferecido às pessoas transgênero.’’ 

A nota ressalta que diretrizes internacionais recomendam o início da terapia hormonal a partir dos 16 anos e que adiar esse tratamento por mais dois anos pode causar prejuízos emocionais e psiquiátricos. ‘’Pode ainda levar ao uso de hormônios sem aconselhamento médico, algo comum nesta população por uma histórica dificuldade de acesso aos serviços de saúde.” 

As entidades também criticam a generalização de dados de arrependimento vindos de países com práticas menos criteriosas, apontando que estudos sérios mostram taxas de arrependimento inferiores a 1%. Fala ainda que outras pesquisas recentes mostram que a redução da densidade mineral óssea durante os anos de bloqueio puberal é recuperada após a suspensão da medicação.

        Veja também: Serviços de saúde voltados à população trans no Brasil

 

Cenário no Brasil é diferente de outros países

Diversos países começaram a revisar seus protocolos de atendimento a crianças e adolescentes trans em todo o mundo. O dr. Cristiano Túlio Maciel Albuquerque, endocrinologista pediátrico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que uma parcela da comunidade científica acha que houve um abuso de diagnósticos e de liberação de protocolos nos últimos anos, principalmente em países menos rigorosos. Porém, explica que esse não é o caso do Brasil, onde o tratamento é rigidamente controlado e restrito a centros especializados – aqui, há apenas cinco locais credenciados. 

O médico atua no Hospital Infantil João Paulo II, em Belo Horizonte, que desde 2021 tem um ambulatório voltado a crianças e adolescentes trans. Em quase quatro anos, ele conta que cerca de 400 jovens foram atendidos no local. Desse total, apenas metade revelou ser caso de transgeneridade e apenas nove receberam o bloqueio puberal. 

“O procedimento só é realizado, mesmo sob rigoroso controle de pesquisa, em casos de intensa disforia de gênero. Ou seja, quando o paciente apresenta histórico de automutilação, depressão, ansiedade, fobia social e dificuldade extrema de sair de casa devido à condição. Nesses casos, a simples possibilidade de vivenciar a puberdade do sexo biológico com o qual não se identifica já provoca uma sensação de pânico na criança”, esclarece o médico.

O especialista diz  que, por causa da politização do assunto, foi criada a percepção de que haveria um aumento descontrolado de diagnósticos no Brasil, o que não é verdade. “Nós temos menos pacientes em acompanhamento por bloqueio puberal do que de doenças raríssimas. Não é uma coisa maciça, é muito restrita, muito controlada. Em toda a história do Brasil, não chegamos a 150 crianças em bloqueio puberal, em todos os centros”, afirma.

Para o médico endocrinologista Carlos André Tonelli, professor da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), a resolução desconsidera o impacto da puberdade sobre a saúde mental de jovens trans. “Se uma pessoa é obrigada a passar por uma puberdade que não deseja, o processo de transição posterior se torna mais complicado”, afirma o médico, que atende cerca de 80 pacientes trans atualmente.

O dr. Tonelli fala que o bloqueio puberal não tem nenhum efeito colateral e o tratamento já é usado há mais de 30 anos. ‘’Então, você pode fazer isso aí sem problema nenhum, nenhum prejuízo para a criança. Na verdade, com o bloqueio da puberdade você está apenas protelando e atrasando esse processo de transformação para se definir depois.’’ A resolução, no entanto, “tira do médico um arsenal que poderia ser usado de maneira benéfica’’, completa.

Faltou diálogo, segundo especialistas

A endocrinologista Elaine Maria Frade Costa, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Regional São Paulo (SBEM-SP) , acha que poderia ter havido mais diálogo entre o CFM e representantes de categorias médicas e profissionais que atuam diretamente nos centros de referência, algo que não aconteceu desta vez. Na resolução anterior, que ela ajudou a elaborar, houve reuniões mensais com representantes de diversas sociedades médicas, garantindo um processo técnico, ético e baseado em consenso.

A dra. Elaine reiterou que todo o trabalho com pessoas trans no Brasil é baseado no acompanhamento contínuo desses pacientes, sejam menores ou maiores de idade. Por isso, para ela, a proibição desse acompanhamento impacta diretamente muitos deles. ‘’Sabemos que, na adolescência, a questão de gênero, quando não é ouvida nem acompanhada por profissionais, pode gerar consequências psicológicas negativas. O índice de tentativa de suicídio entre adolescentes dessa população é elevado. Quando se proíbe qualquer tipo de procedimento, o impacto psicológico tende a ser ainda mais grave,’’ afirma.

        Veja também: Homens trans: como é o acesso aos serviços ginecológicos no Brasil?

O impacto sobre as famílias

A resolução do Conselho Federal de Medicina afetou diversas famílias de crianças e adolescentes trans que se preparavam para realizar os procedimentos médicos. Entre os pais, o sentimento predominante é de preocupação com a saúde dos filhos, que estão em acompanhamento há anos.

É o caso de Thamirys Nunes, de 35 anos, mãe de uma menina trans de 10 anos, acompanhada desde os quatro anos pelo Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), da Universidade de São Paulo (USP) e  especializado no acompanhamento de crianças trans. A menina – que é atendida por uma equipe multidisciplinar com pediatra, psicólogos, psiquiatra e nutricionista – estava prestes a iniciar o bloqueio puberal.

“Ela vivenciaria a puberdade e os impactos das mudanças corporais, mas tudo isso mudou. A realidade é outra, mais cruel e injusta. Estão impondo sofrimento desnecessário aos jovens trans, sabendo que há recursos seguros e que possibilitaram uma diminuição de disforia, aumento de autoestima e maior qualidade de vida. Me questiono por que tudo isso.’’

Thamirys disse que vai lutar em todas as instâncias para que os direitos da sua filha e de todas as crianças, adolescentes e jovens trans sejam mantidos. 

Luciana Aparecida Pedro de Andrade, 51 anos, seguiu o mesmo caminho e recorreu à Justiça para tentar garantir o tratamento de sua filha, que usa bloqueadores para a puberdade desde os 9 anos. Ela completou 16 anos em maio deste ano e esperava iniciar a hormonização.

“Há seis anos ela aguardava ansiosamente por essa etapa extremamente significante, que começaria de fato a dar a ela uma estrutura feminina e uma identidade de como ela realmente quer ser vista. Agora, com a resolução, ela está com medo de isso não acontecer’’, relata a mãe. 

A adolescente, que também é acompanhada por profissionais de diversas áreas, está tendo que lidar com a ansiedade. De acordo com Luciana, o psiquiatra da jovem teve que aumentar a dose de ansiolítico por causa da situação. 

Fernando Piedade Gonçalves, 48 anos, é pai de uma jovem de 18 anos, que teve sua cirurgia de redesignação sexual cancelada após a resolução. O procedimento já estava aprovado e com pré-operatório realizado, restando apenas a data da cirurgia. Gonçalves relatou que a filha ficou profundamente abalada com a notícia e teme que isso afete o estado emocional.

A jovem, segundo Gonçalves, enfrentou sofrimento psíquico intenso por causa da condição ao longo da vida. O tratamento hormonal, iniciado há poucos anos, deu uma melhora significativa na saúde mental, e a cirurgia de redesignação era outro passo importante para seu bem-estar e identidade. Ele conta que optou por buscar apoio jurídico imediato com uma advogada especializada para garantir o procedimento. 

“A trajetória dela foi marcada por diversas crises. Eu, na minha condição de pai e mãe – porque a mãe a abandonou – não tenho como negar em fazer tudo por ela”, conta o pai.

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