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Drogas Lícitas e Ilícitas

Um crime chamado vape

Até hoje, nenhum estudo científico digno desse nome demonstrou que o cigarro eletrônico (vape) tem impacto no tratamento da dependência de nicotina. Leia no artigo do dr. Drauzio.

close em perfil de jovem fumando vape

“Armadilha para jovens” é o título de um artigo publicado na revista “Pesquisa Fapesp”. Nele, Mariana Ceci descreve de forma clara e precisa os problemas criados pela introdução clandestina dos cigarros eletrônicos (vapes) no mercado brasileiro.

A autora começa citando trechos de uma entrevista com a doutora ­Jacqueline Scholz, diretora do programa de tratamento ao tabagismo do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP (Incor), uma das pesquisadoras com a maior experiência entre nós.

Veja também: Cigarro eletrônico na adolescência

Ela afirma: “Sintomas que levavam anos para surgir em fumantes tradicionais, como acordar no meio da madrugada com vontade de fumar, aparecem nos consumidores de vapes apenas alguns meses após o início do uso”.

Em seguida, Mariana Ceci resume os principais estudos sobre a prevalência do uso de eletrônicos realizados no Brasil, que reproduzo abaixo em números arredondados:

1. Segundo o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) divulgado em junho de 2025, já experimentaram cigarros eletrônicos 11% dos adolescentes, proporção que cai para 9% entre os adultos. Na faixa de 18 a 24 anos, esse número sobe para 25%.

2. Na mesma faixa etária, continuaram a fumar eletrônicos 76% daqueles que o experimentaram.

3. De acordo com o Lenad, 91% dos brasileiros nunca experimentaram eletrônicos e 17% nem sabiam que eles existem.

4. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) calcula que há no Brasil cerca de 26,8 milhões de pessoas que fumam algum dispositivo que libera nicotina. A proporção é de dois fumantes de vapes para oito de cigarros comuns.

5. O uso de tabaco na gestação quase duplicou entre 2013 e 2019.

6. O Lenad considera a nicotina administrada pelos vapes a única droga – lícita ou ilícita – com maior proporção de usuários do sexo feminino, entre os adolescentes.

7. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) mostrou que 70% dos usuários estão na faixa de 15 a 24 anos.

Os eletrônicos foram lançados com a justificativa de que auxiliariam fumantes a se livrar dos malefícios do cigarro comum.

Quando li os primeiros artigos científicos usados para fazer tal afirmação, não encontrei justificativa, tantos eram os problemas na seleção dos participantes e os vieses estatísticos.

Ao redor de 2010, quando as grandes multinacionais começaram a adquirir as companhias que fabricavam eletrônicos, tive certeza de que estava diante de mais um crime cometido pela indústria tabaqueira, inconformada com a queda nas vendas dos maços de cigarros, distribuídos pelos supermercados, bares, vendas, bancas de jornal e ao lado dos doces que as crianças compram nas padarias.

Até hoje, nenhum estudo científico digno desse nome demonstrou que o eletrônico tem impacto no tratamento da dependência de nicotina.

Os dados da publicação da Fapesp evidenciam que a indústria faz com eles o que sempre fez: viciar crianças e adolescentes com a droga que causa a dependência química mais escravizadora que a medicina conhece.

Uma criança de 12 anos que cai em suas garras vai depender do fornecedor por anos, décadas, eventualmente pelo resto da vida – como tantos.

Também citado na revista da Fapesp, um estudo realizado no Incor, pelo grupo da doutora Jacqueline Scholz, mostrou que os eletrônicos podem conter doses de nicotina com as quais os fabricantes nem sonhavam obter com o cigarro comum.

Entre 417 participantes que fumavam exclusivamente vapes, 49 apresentavam concentrações médias de nicotina na saliva equivalentes às de quem fuma cerca de 20 ou mais cigarros comuns por dia. Em outros 15, essas concentrações médias equivaliam às de quem fuma 120 cigarros (seis maços) por dia.

Além de todas as complicações cardiopulmonares causadas pelo contato da fumaça com as vias respiratórias, uma criança ou um adolescente – fase da vida em que o lobo frontal e outros centros cerebrais ainda estão em formação – vai ter os circuitos de neurônios nessas áreas moldados sob a influência de altas doses da droga. As consequências são imprevisíveis.

O desafio que a indústria enfrenta para potencializar os lucros é o de pressionar a Anvisa para autorizar a comercialização dos eletrônicos. Dinheiro não lhes falta.

São experientes na prática do crime continuado de disseminar a dependência de nicotina, doença que a Organização Mundial da Saúde classifica como epidemia pediátrica.

 

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