A memória do prazer | Artigo - Portal Drauzio Varella
Publicado em 18/04/2011
Revisado em 11/08/2020

A repetição do estímulo liberador de dopamina torna o cérebro resistente à sua ação. Usuários de droga deixam de produzir dopamina com estímulos naturais, perdendo a memória do prazer para atividades como ir ao cinema. 

 

A dependência de drogas ou de comportamentos compulsivos envolve mecanismos cerebrais de adaptação muito semelhantes. Nos dois últimos artigos desta coluna, explicamos que os circuitos de neurônios encarregados de reconhecer sensações agradáveis ao organismo convergem para uma área do cérebro que funciona como centro da recompensa.

Uma vez ativado repetidamente por uma substância química ou sensação de prazer induzida por determinado comportamento, os neurônios localizados nesse centro vão ativar os circuitos que convergem para o centro da busca, área do cérebro capaz de induzir alterações comportamentais que levem à repetição do prazer obtido anteriormente.

Hoje vamos falar das evidências que ligam os mecanismos de memória e aprendizado à dependência de drogas ou de comportamentos compulsivos como jogo, sexo ou cleptomania. São eles que explicam por que enfrentar os primeiros dias de abstinência de uma droga como a cocaína ou o álcool, por exemplo, não é o mais difícil, o martírio é permanecer abstinente pelo resto da vida.

Classicamente a memória costuma ser dividida em dois grupos: aquelas das quais temos plena consciência e as que geralmente estão esquecidas. De forma consciente, um usuário de cocaína ou um apostador de corrida de cavalo pode lembrar da sensação de euforia proporcionada pela recompensa obtida e ir atrás da repetição dela. Isso talvez explique por que as pessoas jogam ou cheiram cocaína, mas não justifica a dependência química ou comportamental que elas desenvolvem pelo resto de suas vidas. E que persiste, mesmo quando o prazer deixou de existir, como é o caso do dependente de cocaína que desenvolve delírios persecutórios toda vez que usa a droga ou do jogador que perde a roupa do corpo.

Nas memórias não conscientes armazenadas em centros cerebrais especializados, como o hipocampo, está a explicação do lado compulsivo do comportamento que conduz às recaídas, tão conhecidas dos dependentes de drogas e de certos comportamentos.

Uma vez atendi a um rapaz incapaz de entender como conseguia passar um mês inteiro sem fumar crack, para recair sempre no dia 30, quando recebia o salário mensal. Outro, resistia sem problemas à abstinência, desde que não passasse em frente a uma farmácia aberta à noite. As crises de cólicas intestinais, náuseas e palpitação que os usuários de cocaína em abstinência sentem ao ver a droga ou ao encontrar alguém sob seu efeito constituem outra evidência de que muitas recaídas estão associadas à ausência de percepção consciente.

O grupo de Nora Volkow, de Nova York, em relato à revista “Science”, mostrou que a simples estimulação elétrica de uma área do cérebro situada no lobo frontal, atrás dos globos oculares, induzia crises de ansiedade pela droga em ex-usuários de cocaína. Da mesma forma, ratos dependentes de cocaína ficam desesperados atrás dela quando se lhes estimula o hipocampo através de uma corrente elétrica.

Outro tipo de memória não consciente que interfere com o comportamento compulsivo é o fenômeno da sensibilização. Quando um rato recebe doses diárias de anfetamina, morfina ou cocaína, por uma ou duas semanas, cada dose sucessiva provoca uma resposta mais intensa: o animal balança a cabeça e se movimenta mais depressa pela gaiola, e mais dopamina (o neurotransmissor mais importante para a sensação de prazer) se acumula em seu cérebro. Essa resposta exagerada persiste mesmo quando o rato é deixado em abstinência por um ano (a metade da vida de um rato).

Terry Robinson, da Universidade de Harvard, diz que a sensibilização altera os circuitos de neurônios envolvidos nos processos normais de incentivo, motivação, recompensa e busca. E que a alteração da circuitaria não é mera consequência da ação química da droga na estrutura desses circuitos, mas de um processo dependente do contexto em que ocorreu a experiência.

Assim, se isolarmos um desses ratos sensibilizados por anfetamina, por exemplo, e se administrarmos uma nova dose da droga, mas numa gaiola diferente, na qual ele nunca tenha estado, o fenômeno de sensibilização desaparece e o animal responde como se fosse virgem ao uso de anfetamina.

Embora cada droga ou comportamento compulsivo utilize circuitos de neurônios e provoque prazeres específicos, todos provocam liberação de dopamina nas áreas relacionadas com a recompensa que o prazer traz. A repetição compulsiva do estímulo liberador de dopamina reduz a sensibilidade a ela, tornando o cérebro mais resistente à sua ação. Por esse mecanismo, usuários de droga ou portadores de distúrbios comportamentais obsessivo-compulsivos deixam de produzir dopamina aos estímulos naturais e não sentem mais prazer em ir ao cinema, ver uma paisagem ou estar com a família.

Como diz Robinson: “O único estímulo suficientemente intenso para ativar-lhes a liberação de dopamina nos circuitos envolvidos na motivação é o uso da droga”.

O conhecimento dos processos envolvidos no aprendizado e na memória são decisivos para entendermos por que a repetição intermitente de uma experiência que traz prazer, como o uso de uma droga ou a prática de uma atividade inocente como um jogo de cartas, pode se transformar numa compulsão que coloca a vida em risco.

Como diz o neurologista Daniele Riva, a elucidação desses mecanismos permitirá compreender melhor por que um sistema de tanta complexidade como o cérebro humano é incapaz de encontrar estabilidade independentemente da cultura e da sociedade. Sem controles culturais o cérebro é um sistema caótico.

Compartilhe