Dr. Drauzio descreve sua recente viagem pela região conhecida como Cabeça do Cachorro, que é banhada pelo Rio Negro e cercada pela floresta amazônica.
Pegue o mapa do Brasil. Olhe para o canto esquerdo da parte superior, na direção da Colômbia e da Venezuela. A linha de fronteira não desenha a cabeça de um cachorro?
A Cabeça do Cachorro é uma região maior do que Portugal. Lá estão as florestas mais preservadas do país. Sobrevoá-las é viver o êxtase.
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Do avião, a periferia de Manaus é mancha de construções com tentáculos que invadem a mata, como um tumor maligno. São casinhas de alvenaria que se agrupam atabalhoadas, enquanto outras se alinham em conjuntos residenciais. Entre elas, o teto das fábricas da zona franca.
Logo as casas se distanciam umas das outras e a floresta se espalha a perder de vista. São 360 graus de mata virgem; parece o oceano. No alto mar, entretanto, a paisagem é imutável, melancólica, em minutos, o olhar do viajante se aborrece, enquanto horas de observação da floresta só fazem aumentar seu encanto.
As incontáveis tonalidades do verde lembram um tapete uniforme. As copas das árvores se acotovelam sem deixar uma nesga de espaço vazio; dá a impressão de que uma flecha disparada do avião ficaria espetada no dossel. Inesperadamente, porém, a floresta majestosa estanca e abre espaço para caatingas e campinaranas de vegetação baixa.
À direita da aeronave, o Rio Negro segue seu curso, impávido, tão alheio à nossa presença quanto esteve há 2 mil anos, na chegada dos indígenas ou na invasão escravocrata dos homens brancos, quatro séculos atrás. Do lado oposto, os rios fazem a alegria da paisagem. Serpenteiam brincalhões para a esquerda e a direita, desaparecem entre as árvores para emergir mais à frente e formar lagos com margens que se estreitam em gargantas angustiadas, na tentativa infrutífera de deter o caminho das águas.
Sede de um município com 45 mil habitantes, é a maior cidade indígena do país, a única que adotou como oficiais outras três línguas: nhengatu, tucano e baníua. Nas ruas asfaltadas transitam motos, táxis e pedestres castigados pelo sol inclemente.
Mais acima, o Negro se transforma numa imensidão alagada em circunvoluções caprichosas, que se intrometem na mata como dedos monumentais, que se estendem por muitos quilômetros, decididos a esganar as nesgas de floresta que teimam em resistir ao abraço fatal. São as ilhas Anavilhanas, o segundo maior arquipélago fluvial do mundo que, em extensão, perde apenas para o de Mariurá localizado rio acima, nas proximidades de Barcelos, a antiga capital do estado.
Da nascente à foz, quando suas águas escuras se misturam relutantes com as do Solimões barrento para formar o Amazonas, o Negro percorre 1.700 km, quase a distância de São Paulo a Salvador. É um dos três maiores rios mundo; no Brasil, perde apenas para o Amazonas. O volume de água em seu leito é maior do que o de todos os rios europeus reunidos.
Na seca, emergem praias com os troncos e galhos retorcidos, que Frans Krajberg representou em esculturas; as águas baixam a ponto de encalhar nos bancos de areia a embarcação do navegador mais experiente. Na estação das chuvas, sobem 12 metros a 15 metros, inundam a mata e criam milhares de igapós e igarapés.
Do alto, o visitante desavisado é capaz de jurar que homem algum ousaria pôr os pés naquela imensidão inóspita. Erro grave, a floresta é habitada. Embora a densidade populacional seja de 0,25 habitante por quilômetro quadrado, existem centenas de povoados na Cabeça do Cachorro. Neles, vivem 23 etnias indígenas, distribuídas em agrupamentos com meia dúzia de famílias e aldeias com centenas de moradores.
Mil quilômetros rio acima, a topografia plana do Baixo e do Médio Rio Negro é surpreendida pela serra de Curicuriari, com as montanhas que desenham a Bela Adormecida, nome escolhido por lembrar a silhueta de uma mulher deitada, com as mãos cruzadas sobre o peito.
É o cartão-postal de São Gabriel da Cachoeira, construída pelos indígenas antes da chegada dos brancos na margem direita do Negro, a 1.100 quilômetros de Manaus, distância de São Paulo a Porto Alegre.
Sede de um município com 45 mil habitantes, é a maior cidade indígena do país, a única que adotou como oficiais outras três línguas: nhengatu, tucano e baníua. Nas ruas asfaltadas transitam motos, táxis e pedestres castigados pelo sol inclemente. Cerca de 80% são indígenas que migraram das calhas dos afluentes do Negro.
São Gabriel foi nosso destino para filmar com a produtora Uzumaki um documentário sobre a vida na cidade, a saúde indígena e o papel do Exército, única presença do Estado nos confins da Cabeça do Cachorro, temas da próxima coluna.