Estudos indicam que podem existir pessoas geneticamente resistentes à covid, mesmo quando expostas a práticas de maior risco.
O telefone tocou numa segunda-feira às 11 da noite.
– Meu marido acordou com febre, fez o teste PCR e deu positivo. O que eu devo fazer para não pegar?
Expliquei que seria preciso isolá-lo num quarto, os dois deviam usar máscara o tempo todo e guardar o máximo de distância um do outro.
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Ela quis saber se era fundamental manter o isolamento com rigor. Respondi que sim, o período em que a transmissão acontece com mais facilidade é o que vai de dois dias antes dos primeiros sintomas, a três dias depois do aparecimento deles.
Ela acrescentou meio sem graça:
– Pois é. Nós tivemos relações no sábado e no domingo.
A doença do marido evoluiu com comprometimento pulmonar, foi hospitalizado, mas não houve necessidade de transferi-lo para a UTI. Ela permaneceu assintomática, com testes repetidamente negativos.
Como explicar esses casos de contato íntimo com uma pessoa infectada, sem ocorrer transmissão? Alguns indivíduos são naturalmente resistentes ao Sars-CoV-2?
Esse fenômeno é descrito em outras viroses. Pessoas que dividem a cama com alguém resfriado ou gripado nem sempre ficam doentes. Num inquérito epidemiológico que realizamos na Casa de Detenção (Carandiru), encontramos uma travesti presa havia vários anos, que tivera mais de mil parceiros sexuais no ano anterior à pesquisa, com os quais tinha praticado sexo anal receptivo, desprotegido, a prática sexual de maior risco. Era HIV-negativa. O teste foi repetido e o resultado confirmado três vezes. Naquela época, a prevalência do HIV no presídio era de 13,7%.
Numa publicação na revista “Nature Immunology”, um grupo internacional de cientistas iniciou uma pesquisa para estudar pessoas geneticamente resistentes ao coronavírus. O objetivo é identificar os genes que as protegeram da infecção.
Outro mecanismo de resistência ao Sars-CoV-2 pode ser explicado pelo desenvolvimento de respostas imunológicas potentes, especialmente nas células que revestem as fossas nasais.
A dificuldade numa pesquisa com essas características é encontrar participantes que foram expostos, sem proteção, a uma pessoa infectada, por tempo prolongado, mantendo o teste negativo, como o da paciente que me ligou naquela segunda-feira.
No caso do estudo em questão, eles vão se concentrar em casos semelhantes: pessoas não vacinadas que dividem a casa e a cama com alguém infectado, situação definida em medicina como pares discordantes.
Em dez centros de pesquisa, um dos quais no Brasil, já foram recrutados 500 candidatos em potencial. Desde a publicação do estudo, no entanto, surgiram mais 600 que se apresentaram como voluntários. O objetivo é chegar a mil participantes. A dificuldade será saber se o parceiro infectado eliminava quantidades altas do vírus na época do contato.
Em pesquisas anteriores, outros grupos detectaram algumas mutações genéticas que são candidatas a exercer o papel de reduzir a suscetibilidade à infecção. Uma delas seria uma mutação rara no gene ACE2, que codifica o receptor no qual o coronavírus se ancora para penetrar na célula.
Esse tipo de mecanismo foi descrito nos anos 1990, quando foi achada uma mutação rara capaz de inativar um receptor (CCR5) na membrana dos linfócitos, que o HIV utiliza para entrar na célula. É provável que a travesti do teste negativo depois de tantos contatos sexuais apresentasse essa mutação. Na época, essa descoberta conduziu ao desenvolvimento de uma classe de medicamentos contra a aids. Amplamente noticiado nos jornais, foi o caso de um paciente com leucemia e aids, que recebeu um transplante de medula óssea de um doador que apresentava essa mutação em CCR5. O paciente adquiriu a mutação do doador e ficou curado da aids. Foi a primeira cura documentada da doença, no mundo.
Outro mecanismo de resistência ao Sars-CoV-2 pode ser explicado pelo desenvolvimento de respostas imunológicas potentes, especialmente nas células que revestem as fossas nasais. A presença de mutações nos genes dessas células poderia impedir que o vírus se instalasse e se replicasse para formar novas partículas virais.
As dificuldades de uma pesquisa como essa foram resumidas por Isabelle Meyts, imunologista pediátrica da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica: “se existir resistência genética ao Sars-CoV-2, deve haver apenas algumas pessoas com esses genes”.
No caso da aids, as mutações em CCR5 também eram raras, mas a identificação delas levou à descoberta de medicamentos que ajudaram a controlar a doença.