Uílton e Julinho CDHU nasceram no mesmo dia e cresceram inseparáveis. Veja na crônica do dr. Drauzio a história de dois amigos e uma paixão arrebatadora.
Uílton e Julinho CDHU nasceram no mesmo dia e cresceram inseparáveis na mesma quebrada.
Uílton vivia com dois irmãos, uma prima, a tia, a mãe e a avó, numa casinha mal acabada. Guardava uma imagem vaga do pai, preso no ano em que ele nasceu e assassinado ao ganhar a liberdade. Julinho morava no terceiro andar do conjunto habitacional, com a mãe e duas irmãs.
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Na adolescência, a ocupação era a escola de manhã. As tardes, passavam em rodinhas ociosas, iguais a tantas que se espalham pela periferia para falar de moto, jeans de marca, óculos escuros da hora e das meninas da vizinhança.
Aos 14 anos, começaram a fumar maconha e a faltar nas aulas. Aos 16, furtaram uma bicicleta, vendida na biqueira da rua de trás da CDHU.
Depois desse roubo, Uílton virou assaltante e tomou rumo ignorado, Julinho hesitou seguir-lhe os passos para poupar desgosto à mãe trabalhadora, intenção louvável que três anos mais tarde sucumbiria aos encantos de uma mulher: Marisa Quebra Salto, assim conhecida pelas sapatadas desferidas contra uma desafeta na boate em que trabalhavam.
Julinho estava no ônibus, quando a morena entrou equilibrada no salto alto, saia curta e blusa com um nó acima do umbigo. Orou com tanta fé para que ela sentasse a seu lado, que Deus se apiedou dele.
A abordagem não foi encorajadora:
— Aonde vai levar tanta beleza?
— Não é da tua conta.
Deus é testemunha do suplício que Uílton havia enfrentado para resistir à paixão que afinal veio à luz naquela noite de chuva. Paixão na verdade despertada no instante em que a viu pela primeira vez, na janela, com o cabelo molhado.
Jamais sonhara com uma mulher daquelas, capaz de deixar um homem trêmulo, como ele, naquela hora. Puxou todos os assuntos que lhe vieram à mente. A morena, muda, com o olhar fixo no para-brisa do coletivo.
Quando Quebra Salto deu sinal para descer na Avenida Rio Branco, ele tentou a cartada derradeira: alegou que o local era escuro e perigoso, estava decidido a acompanhá-la como cão de guarda. Ela achou engraçado.
Com o salário de motoqueiro, Julinho sentiu que não teria chance com a mulher, que não lhe saía da cabeça. Começou a transportar droga para o pessoal da biqueira.
Uma noite, apareceu na boate de tênis fosforescente, colar de ouro para fora da camisa e um envelope com dez cápsulas lotadas de cocaína.
No mês seguinte, alugaram um quarto e sala de fundos, no Capão Redondo. Ele no tráfico, ela em casa, aprisionada pelos ciúmes do companheiro.
Julinho caiu num flagrante. No Cadeião de Pinheiros, encontrou o amigo de infância que aguardava transferência para o Semi-Aberto, depois de cumprir seis anos no fechado. Membro da facção que comandava o presídio, Uílton recomendou o companheiro para os superiores.
As facilidades que a proteção do Partido proporcionou a Julinho, não lhe amenizaram a dor da separação da mulher, martírio daqueles dias idênticos.
O Semi-Aberto de Uílton cantou em 15 dias. Receoso de que a penúria forçasse Marisa a voltar à vida noturna, Julinho pediu ao amigo o favor de entregar a ela, 3 mil reais que o pessoal da biqueira lhe devia.
Quando Uílton bateu na porta da casa de fundos, Marisa apareceu na janela, de cabelo molhado.
Pela grade, ele explicou quem era, deixou o dinheiro e saiu sem aceitar o café.
Dias depois, recebeu um telefonema do amigo preso, que lhe pedia para entregar pessoalmente a cesta básica que a facção encaminharia para Marisa todos os meses. Achou desculpa para fugir do compromisso, mas o amigo foi insistente, não confiava em outra pessoa.
Durante seis meses, as cestas foram levadas sem que ele cruzasse a soleira da porta. Na sétima entrega, chovia. Marisa pediu que entrasse. Na sala, tirou-lhe a camisa molhada, jogou-a sobre a tábua de passar roupa e começou a enxugá-lo com a toalha de banho.
Deus é testemunha do suplício que Uílton havia enfrentado para resistir à paixão que afinal veio à luz naquela noite de chuva. Paixão na verdade despertada no instante em que a viu pela primeira vez, na janela, com o cabelo molhado.
Num domingo, a quadrilha planejou assaltar um posto de gasolina, serviço fácil, com o vigia mancomunado. Combinaram encontrar-se às 11 da noite num bar da vizinhança.
Quando Uílton chegou, o bar estava fechado. Esperou na porta. Dez minutos depois, dois vultos cruzaram a rua. Levou cinco tiros. Caído, ouviu um deles dizer: “Não leva a mal, parceiro”.