A São Paulo de hoje difere muito da de antigamente e acumula problemas de infraestrutura, mas também fez conquistas importantes.
Tio Amador, hoje com 91 anos, disputou na juventude campeonato de natação no rio Tietê. Eu nasci no Brás durante a Segunda Guerra Mundial, bairro povoado por tantos italianos, portugueses e espanhóis que, quando mudamos da rua Rio Bonito para a Henrique Dias, a vizinhança comentava: “Mudaram-se uns brasileiros”. Não era bem verdade; meu pai nasceu durante uma viagem de meus avós à Espanha tornada involuntariamente longa pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, mas havia sido registrado no Brasil por meios provavelmente ilegais naquele tempo, porque meu avô quis evitar a qualquer preço que o filho fosse cidadão espanhol.
No início do século 20, esse avô chegou a São Paulo aos 12 anos de idade, sozinho, com a obrigação de ganhar o sustento da mãe viúva e dos cinco irmãos menores, na Galícia. Na cidade que se industrializava, trabalhou duro, casou e constituiu família. Ficou tão agradecido ao país e à cidade que o acolheu que proibia minha avó de falar espanhol com os filhos de medo que um dia eles cismassem de se mudar para a Espanha.
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Evito contar para as crianças de hoje que, aos 6 anos, eu saía escondido com os amigos da Henrique Dias pelas ruas e terrenos baldios que levavam ao campo do São Paulo, no Canindé, na área em que hoje fica o estádio da Portuguesa, para não imaginarem que fui contemporâneo do padre Anchieta. Passávamos pelo campo do Serra Morena, parávamos fascinados diante do enorme distintivo tricolor na sede do querido São Paulo e seguíamos por uma picada no mato até a beirada do Tietê (onde seria construída a Marginal) para pescar peixinhos com uma lata de cera Parquetina furada feito peneira.
Nos dias quentes, os homens chegavam das fábricas, jantavam e colocavam as cadeiras na calçada para contar histórias do frio e da fome que passavam nas aldeias onde nasceram e de como Mussolini foi pendurado de cabeça para baixo num posto de gasolina. As casas eram acanhadas, de cômodos em sua maioria, e a molecada passava o dia solta, só entrava para as refeições e na hora de recolher-se à noite. Não se ouvia falar em drogas, e os bandidos da cidade eram conhecidos pelo nome: Sete Dedos, Meneghetti, Promessinha.
Essa visão idílica de São Paulo com menos de 2 milhões de habitantes, lembrada com nostalgia pela tranquilidade e pelo romantismo dos bondes, é consequência da mais traiçoeira característica da memória humana: a de apagar as lembranças dolorosas.
Aos 6 anos, acordei com os olhos inchados, e meu pai me levou ao médico: foi minha primeira visita a um pediatra; só os filhos dos mais ricos gozavam desse privilégio. No final dos anos 1960, quando fiz internato no Hospital das Clínicas, ao tirarmos a história das pacientes, a primeira pergunta era quantos filhos haviam tido; a segunda, quantos estavam vivos. Existia uma enfermaria só para crianças desnutridas. Em cada plantão do pronto-socorro de pediatria, morriam cinco ou seis crianças com diarreia, desidratação, pneumonia, sarampo, difteria e até paralisia infantil. A cidade pacata, sem trânsito, ávida por mão de obra barata não conseguia organizar serviços de saúde nem infraestrutura de habitação e saneamento básico na velocidade necessária para receber as levas de imigrantes nordestinos, que inchavam a periferia atrás de uma vida mais digna.
Pessoalmente, guardo lembranças inesquecíveis, mas não tenho saudade de São Paulo provinciana, em que as crianças não conheciam médico nem recebiam vacinas, esgoto e água tratada eram luxo, e, quando pobre comia frango, o povo dizia que um dos dois estava doente.
Em sua ânsia de progresso, São Paulo cresceu verticalmente para absorver e considerar paulistas todos que estivessem dispostos a trabalhar com vontade, seguindo nossa vocação cosmopolita de não lhes perguntar de onde vinham. Quatrocentos e cinquenta anos depois de sua fundação, nossa região metropolitana chega aos 18 milhões de habitantes, produz 15% das riquezas do país (perde apenas para o Estado de São Paulo) e constitui o maior centro financeiro da América Latina.
A população aumentou pelo menos nove vezes desde quando eu era criança, e os problemas se multiplicaram: faltam empregos, transporte coletivo, escolas, postos de saúde, habitações, espaços para lazer, segurança nas ruas, cadeias. Passamos horas engarrafados no caminho para casa, mas pouquíssimos emigram ou retornam para suas origens. Parece que a cidade fica impregnada na alma de seus habitantes com tal intensidade, que eles não se adaptam mais a lugar nenhum.
Não me surpreendem nossos problemas; o que acho estranho é como a cidade ainda funciona de modo que os serviços aqui disponíveis não encontram paralelo no Brasil. O que aconteceria com Londres, Paris e Nova York se tivessem multiplicado por dez suas populações no intervalo de uma única geração?
Pessoalmente, guardo lembranças inesquecíveis, mas não tenho saudade de São Paulo provinciana, em que as crianças não conheciam médico nem recebiam vacinas, esgoto e água tratada eram luxo, e, quando pobre comia frango, o povo dizia que um dos dois estava doente.
São muito mais fascinantes os desafios da cidade de hoje: integrarmos essa massa de crianças da periferia em escolas de boa qualidade para lhes dar oportunidades idênticas às dos filhos da classe média, reduzirmos o número de gestações não desejadas que atormentam a população de baixa renda por falta de acesso aos métodos contraceptivos, encontrarmos caminhos modernos para cuidar da saúde pública, das habitações e do transporte coletivo e oferecermos trabalho digno para os jovens antes que os traficantes o façam.
Muitos acham São Paulo feia, caótica, perigosa, poluída. Talvez seja, mas quantas cidades no mundo reúnem tamanha diversidade cultural, tanta gente dedicada ao trabalho criativo, tanta inteligência concentrada?