Doação de sangue | Entrevista

Dra. Maria Angélica Soares é médica, coordenadora do Hemocentro do Hospital São Paulo da UNIFESP, Universidade Federal do Estado de São Paulo. postou em Entrevistas

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Publicado em: 9 de janeiro de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Todos sabemos que é importante, mas quando chega nossa vez, encontramos uma desculpa. Conheça os critérios para doar sangue e torne-se um doador.

 

Ninguém está livre de precisar de uma transfusão de sangue. Ninguém está livre de sofrer um acidente, de passar por uma cirurgia ou por um procedimento médico em que a transfusão seja absolutamente indispensável.

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Como não existe sangue sintético produzido em laboratórios, quem precisa de transfusão tem de contar com a boa vontade de doadores, uma vez que nada substitui o sangue verdadeiro retirado das veias de outro ser humano.

Todos sabemos que é importante doar sangue. Mas, quando chega a nossa vez, sempre encontramos uma desculpa – “Hoje está frio ou não estou disposto; nesses últimos dias tenho trabalhado muito e ando cansado; será que esse sangue não me vai fazer falta…” – e vamos adiando a doação que poderia salvar a vida de uma pessoa.

Sempre é bom repetir que o sangue doado não faz a menor falta para o doador. Consequentemente, nada justifica que as pessoas deixem de doá-lo. O processo é simples, rápido e seguro.

 

COMPONENTES DO SANGUE

 

Drauzio – Quais são os elementos do sangue que dão frações úteis para os bancos de sangue?

Maria Angélica Soares – Uma das coisas mais importantes que aconteceram nos últimos anos desde o advento da bolsa plástica de coleta de sangue (antigamente o sangue era coletado em frascos de vidro), foi a possibilidade de dividir o sangue em porções de acordo com a finalidade a que se destinam.

Primeiro, separa-se o concentrado de hemácias, ou seja, o concentrado de glóbulos vermelhos, entre todos os componentes, o mais conhecido. Ele é utilizado em pessoas com anemia, que sofreram acidentes ou passaram por cirurgias.

Depois, retira-se o concentrado de plaquetas, componente fundamental no tratamento de câncer, nas quimioterapias e nos transplantes, principalmente no transplante de medula óssea. O terceiro componente é o plasma. Embora menos utilizado atualmente, ele é fundamental para alguns problemas de coagulação. O quarto é o crioprecipitado, menos utilizado ainda, porque hoje contamos com a possibilidade de fabricar fatores específicos para hemofílicos e pessoas com alterações graves de coagulação.

Portanto, numa única doação de sangue podemos obter quatro componentes diferentes que são utilizados em quatro situações clínicas importantes, cada um deles com uma característica própria de armazenamento e duração.

 

Drauzio – Do ponto de vista laboratorial, como são separados esses quatro componentes?

Maria Angélica Soares – A pessoa doa 400ml, 450ml, um pouco menos de meio litro de sangue. A bolsa vai para o laboratório onde passa por um processo de centrifugação, ou seja, é colocada numa centrífuga semelhante às que existem em casa. À medida que o aparelho gira, as partículas mais pesadas do sangue, isto é, os glóbulos vermelhos, depositam-se no fundo, e o componente líquido mais leve, ou plasma, fica sobrenadante na parte superior. Imagine um copo de suco muito grosso em que as partículas mais pesadas se depositam no fundo e o líquido ocupa a parte superior. É mais ou menos isso o que acontece com o sangue doado.

A seguir, o concentrado de hemácias é guardado na geladeira e o plasma submetido à nova centrifugação para separar as plaquetas que vão parar no fundo da bolsa. Esse plasma pode ser ainda congelado a fim de obter o quarto elemento, o crioprecipitado.

É importante explicar que essas bolsas são ligadas umas às outras, o que facilita a separação dos componentes. Em algumas situações, porém, o sangue não é fracionado, é mantido como sangue total.

 

Drauzio – Quanto tempo leva esse processo?

Maria Angélica Soares – São necessárias em média seis horas para realizar esse processamento inicial. No dia seguinte, depois de prontos todos os testes, o componente fracionado será transfundido para o receptor. Para ter uma ideia, as plaquetas duram apenas cinco dias e acabam depressa nos bancos de sangue.

 

Drauzio – Quanto tempo duram as hemácias?

Maria Angélica Soares – Trinta e cinco ou quarenta e dois dias, dependendo da bolsa utilizada, que precisa ter características especiais para a conservação dos componentes, principalmente das hemácias. No Brasil, a maioria dos bancos de sangue utiliza bolsas que duram 35 dias.

 

Drauzio – No passado, todas as transfusões eram feitas com sangue total, o que era um enorme desperdício.

Maria Angélica Soares – E não era só por isso. Os frascos eram de vidro, caíam, quebravam e perdia-se todo o sangue. Hoje, ele fica armazenado em bolsas plásticas dentro de geladeiras especiais, com controle constante de temperatura. Nos últimos anos, a vigilância tem ficado cada vez mais severa o que é bom para garantir a qualidade dos componentes sanguíneos que serão transfundidos.

 

TESTES PREVENTIVOS

 

Drauzio – Quando e quais são feitos os testes na amostra de sangue?

Maria Angélica Soares – Retirada a bolsa, não se desconecta a agulha para colher amostras de sangue nos tubos para os testes necessários. São testes para doenças infecciosas como AIDS, hepatites C e B, doença de Chagas e para o HTLV, um vírus menos frequente, mas importante nas transfusões. Para a AIDS, particularmente, são feitos dois testes.

Há dois anos, fazia-se também a TGP, uma enzima hepática para indicar a ocorrência de outros tipos de hepatite. Atualmente, a legislação brasileira dispensou esse procedimento.

São feitos também testes para sífilis – infelizmente, muito doador tem a doença, não sabe e, portanto, nunca se tratou – e para determinar o grupo sangüíneo e se o fator RH é positivo ou negativo.

Esses testes têm a finalidade de proteger quem vai receber o sangue. São de triagem e não de diagnóstico. No entanto, havendo qualquer dúvida, ninguém diz “Olhe, seu teste de HIV deu positivo”. O doador é chamado a repetir o exame a fim de confirmar o resultado. Muitas vezes, isso é confundido com erro, mas é apenas uma triagem inicial.

 

Drauzio – Vamos lembrar que é o vírus HTLV é meio aparentado com o vírus da AIDS.

Maria Angélica Soares – Aparentado, mas não igual. Um aparentado distante, digamos.

 

PRÉ-REQUISITOS PARA A DOAÇÃO

 

Drauzio – Como é feita a doação?

Maria Angélica Soares – A pessoa precisa levar um documento de identificação e preencher um cadastro. Depois, faz um teste para ver se está com anemia. Basta um furinho no dedo para determinar o hematócrito (quantidade de hemácias no volume total de sangue) e saber se está em condições de doar sangue. Às vezes, não está anêmica, mas o meio litro de sangue que será retirado poderá fazer-lhe falta. Em seguida, mede-se a pressão arterial, o pulso e a temperatura.

O próximo passo é uma entrevista chamada triagem clínica cuja finalidade é avaliar os antecedentes patológicos e os possíveis fatores de risco daquele candidato à doação. Essa entrevista é baseada numa portaria, numa legislação que rege a doação de sangue no Brasil. Não é um interrogatório para investigar a vida das pessoas. São perguntas para proteger quem está doando e para conscientizar o doador de que a pessoa que vai receber o sangue precisa ficar bem e não ter problemas depois.

É importante lembrar que, apesar de feita a sorologia (testes para as doenças infecciosas), existem ainda doenças, como certos tipos de hepatite, para as quais não há triagem e que podem representar risco para o receptor. Há, ainda, janelas imunológicas – o teste demora algum tempo depois da infecção para ficar alterado – que precisam ser respeitadas, por menores que sejam elas.

No Brasil, existe ainda um procedimento que se chama auto-exclusão. A pessoa passou pela entrevista e vai doar o sangue. Se não conseguiu ou não quis ser totalmente sincera na entrevista e achar que seu sangue não deve ser utilizado para transfusão porque oferece algum risco, tem a oportunidade de fazê-lo de maneira sigilosa naquele momento. Basta assinalar num papel ou registrar eletronicamente que aquela bolsa deve ser excluída. É uma oportunidade que a pessoa tem de voltar atrás sem se expor ao profissional que a está entrevistando.

 

Drauzio – Quanto tempo toma essa entrevista?

Maria Angélica Soares – Uns cinco minutos. O pessoal é treinado e as perguntas são objetivas. É sim ou não. Algumas situações impedem a doação só naquele momento. Eventualmente, uma vacina ou medicação. Nesse caso, a pessoa é convidada a voltar dias mais tarde.

 

COLETA DO SANGUE

 

Drauzio – Como se coleta o sangue para a doação?

Maria Angélica Soares – Preenchidos esses requisitos, começa a coleta de sangue propriamente dita. Em no máximo dez minutos, é feita a punção na veia do braço, recolhe-se o sangue na bolsa e nos dois tubinhos que vão ser encaminhados para os testes. Aguarda-se um pouco, o doador vai tomar um lanche para repor líquido e é dispensado. Apenas uma minoria apresenta algum sintoma, um pouco de tontura ou de enjoo, em geral na primeira doação. O emocional é muito importante nessa hora. É comum a pessoa estar preocupada com o familiar doente. Por isso, suas dúvidas precisam ser esclarecidas antes da doação.

 

Drauzio – Tem gente que passa mal só de ver o próprio sangue. Às vezes, isso acontece no laboratório, quando vão colher um tubinho de 10 ml apenas. É comum encontrar pessoas que se sentem mal durante a doação?

Maria Angélica Soares – Na verdade, as pessoas nem veem o sangue que está sendo coletado. A bolsa fica fora do alcance da visão. Além disso, o pessoal que faz a punção é treinado para conversar com o doador e distraí-lo. Às vezes, porém, algumas pessoas passam mal. Em geral, são as que não se alimentaram direito antes da doação. Existe o mito de que se deve doar sangue em jejum, como é exigido em grande parte dos exames feitos nos laboratório. Está errado. A pessoa deve comer antes de doar sangue.

Voltando aos doadores que sentem algum mal-estar, geralmente os postos de coleta têm cadeiras gostosas e flexíveis como as dos dentistas que levantam para retornar um pouquinho de sangue ou, então, lhes é oferecido um copo de suco para melhorar a hidratação.

 

EXIGÊNCIAS PARA A DOAÇÃO

 

Drauzio – Muita gente se recusa a doar sangue porque acha que lhes fará falta o meio litro que será tirado. O que representa esse meio litro no volume total de sangue que circula pelo organismo?

Maria Angélica Soares – Uma das exigências para a doação de sangue é o doador pesar pelo menos 50 kg, porque está estabelecido que se pode retirar no máximo 9ml de sangue por quilo de peso. Portanto, com 50 kg, ele pode doar uma bolsa com 450 ml sem nenhuma repercussão negativa para o organismo.

Observe, por exemplo, o que acontece com as plaquetas, elementos sanguíneos importantes para a coagulação. Elas funcionam como tampões iniciais quando ocorre um sangramento. É como se um dique tivesse arrebentado e fossem colocadas pedras para conter a água. As plaquetas são repostas imediatamente na circulação, porque o baço é um reservatório enorme de plaquetas. São repostas tão depressa que há procedimentos para coletar apenas as plaquetas do sangue de uma pessoa. A mesma coisa acontece com a reposição dos glóbulos vermelhos, que se recompõem em pouco tempo.

Por isso, ninguém chega e vai diretamente doar sangue. Na triagem inicial, são observados critérios excludentes como peso, pressão arterial, hematócritos para identificar casos de anemia.

 

Drauzio – Qual é o volume médio de sangue que uma pessoa tem no corpo?

Maria Angélica Soares – De quatro a cinco litros de sangue aproximadamente.

 

Drauzio – Na verdade, vocês só colhem um décimo do volume de sangue existente…

Maria Angélica Soares – Exatamente.

 

CRITÉRIOS PARA A DOAÇÃO

 

Drauzio – Quais são as pessoas que não podem ou não devem doar sangue?

Maria Angélica Soares – A lista não é pequena. Não podem doar sangue as pessoas:

  • Que tiveram hepatite depois dos 10 anos de idade. Antes dessa idade, a doença não é empecilho, porque provavelmente se trata de hepatite A, cujo vírus é eliminado por completo do organismo;
  • Que tiveram hepatite B ou C, os portadores do vírus da AIDS ou de outra doença infecciosa transmitida pelo sangue;
  • Com diabetes que usam insulina ou anti-hipoglicemiantes por via oral; mulheres grávidas ou que estão amamentando;
  • Com febre, peso abaixo de 50kg, com mais de 65 anos ou que tiveram perda  inexplicada de 10% do peso em um mês;
  • Com epilepsia ou crises de asma;
  • Que tenham se submetido a grandes cirurgias, recebido transfusão, feito tatuagem ou colocado piercing há menos de um ano.

 

Drauzio – Por que tatuagem e piercing impedem a doação?

Maria Angélica Soares – Não é nada contra a tatuagem ou o piercing em si. Infelizmente, há casos de transmissão de algumas doenças por esses tipos de procedimento. Hoje, o prazo é só de um ano, mas chegou a ser de dez anos, porque as técnicas eram por demais artesanais.

Por que um ano agora? Porque esse tempo é suficiente para um teste revelar que houve contaminação pelo vírus da hepatite, por exemplo. A pessoa pode não estar doente, mas o teste ser positivo e o sangue não servir para a doação.

 

Drauzio – Pessoas hipertensas podem doar sangue?

Maria Angélica Soares – Podem, desde que a hipertensão esteja controlada.

 

Drauzio – Existem alguma outra situação que impeça o indivíduo de doar sangue?

Maria Angélica Soares – Pessoas que estão fazendo regimes violentos para emagrecer, com problemas de tireoide ou quadros clínicos graves não devem doar sangue. Cada caso, porém, será discutido e avaliado pelo médico do setor. No entanto, a maioria das pessoas não tem nada, está bem de saúde e, portanto, pode doar sangue sem problema.

É comum sermos consultados se o uso de medicamentos impede a doação. Em si a medicação não funciona como empecilho, mas é preciso saber por que ela está sendo utilizada. Quem está tomando antibiótico não deve doar, porque tem uma infecção. Já a aspirina (AAS) e os anti-inflamatórios não interferem. No entanto, no momento de fracionar a bolsa de sangue doado pelas pessoas que tomam aspirina, nós do banco de sangue teremos o cuidado de desprezar as plaquetas  por causa da ação anticoagulante do medicamento.

 

Drauzio – Qual é o intervalo mínimo entre uma doação e outra?

Maria Angélica Soares – Para os homens é de dois meses; para as mulheres, três meses e dos 60 até os 65 anos, seis meses.

 

RAZÕES PARA A DOAÇÃO

 

Drauzio – O que leva uma pessoa a doar sangue?

Maria Angélica Soares – Muitas vezes, a primeira doação está vinculada a algum conhecido doente, em geral, a laços de parentesco. Depois, vendo que nada de extraordinário acontece, a pessoa volta a doar novamente.

Em alguns casos, os testes laboratoriais realizados servem como motivação para a pessoa doar sangue, o que está errado. Doação de sangue não é triagem clínica de check-up. Existem locais em que se pode fazer de forma anônima os testes das hepatites B e C e para o HIV, por exemplo.

Nós que trabalhamos com doação de sangue estamos empenhados em mudar esse tipo de mentalidade na população brasileira. Não é fácil, mas estamos conseguindo. Nosso objetivo é convencer as pessoas saudáveis a procurem os bancos de sangue voluntariamente.

 

Drauzio – Quer dizer que, na maioria das vezes, as pessoas começam a doar sangue porque são requisitadas quando um parente internado no hospital precisa de transfusão?

Maria Angélica Soares – Há alguns anos, no Brasil, estamos tentando fazer com que a doação seja voluntária, como é em alguns países mais adiantados. Na verdade, atualmente, em alguns postos de coleta, os doadores voluntários são em número maior do que os doadores relacionados e está aumentando o número de doadores fidelizados, ou seja, daqueles que voltam periodicamente ao banco de sangue para fazer a doação.

É importante destacar que, muitas vezes, a primeira doação está relacionada com a necessidade de um parente, de um amigo ou com uma convocação pela mídia. Quando ocorreu, por exemplo, a catástrofe num shopping center de Osasco (SP), o número de doações de sangue cresceu muito naquele dia e nos dois ou três dias subsequentes. As pessoas estavam sensibilizadas pelo acontecimento, havia muita gente machucada sendo removida para vários hospitais, inclusive para hospitais de São Paulo. Esse fato pode até ter despertado a vontade de fazer novas doações.

De qualquer modo, é preciso sempre lembrar que precisamos de sangue. Esfriou, cai a doação. Meses de férias, fim de ano, algum fato que quebre a rotina são motivos suficientes para diminuir o número de doadores.

 

IMPORTÂNCIA DA DOAÇÃO

 

Drauzio – Por que é importante doar sangue? Para que serve esse sangue doado?

Maria Angélica Soares – As pessoas podem pensar – Por que vou doar sangue se não houve um World Trade Center nem outra catástrofe por aqui?

É preciso doar porque os hospitais grandes onde são tratados todos os tipos de pacientes necessitam de sangue disponível em qualidade e quantidade adequada. Se não houver sangue num hospital, as cirurgias serão canceladas.  Pacientes submetidos a cirurgias cardíacas, transplantes de rins, de fígado e de medula óssea, entre outras, necessitam muito de sangue e de plaquetas e será enorme o ônus se tais procedimentos forem adiados. Se o doente fizer quimioterapia, por exemplo, e não receber o suporte da transfusão, poderá não superar a fase de tratamento.

As pessoas precisam entender que devem doar sangue não só atendendo ao apelo de que os estoques estão acabando. É preciso pensar que os estoques têm de estar nos níveis adequados para o primeiro atendimento caso aconteça um imprevisto, uma catástrofe.

Sangue não sobra. Ninguém deve imaginar que o tipo de seu sangue é comum e que por isso não precisa doar. Precisa, sim, porque esse sangue vai fazer falta para alguém que necessita dele para viver.

 

Drauzio – O sangue doado tem sempre utilidade.

Maria Angélica Soares – No dia seguinte à doação, se os testes forem negativos, ele estará no braço de alguém ajudando a salvar uma vida.

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