Novas drogas para tratar a obesidade levantam questões importantes sobre as formas de enfrentar a epidemia de obesidade. Leia no artigo do dr. Drauzio.
Tive um professor de endocrinologia que vivia em luta contra a balança. Foi um de meus melhores professores. Estudioso, treinado nos Estados Unidos num tempo em que o acesso aos centros internacionais não estava ao alcance dos médicos brasileiros.
Passávamos alguns meses sem vê-lo, e ele aparecia com 20 quilos a menos, o rosto sulcado e a roupa folgada. Meses mais tarde, recuperava o peso e a aparência de antes. Ouvi dele numa das aulas: “Quando um paciente com obesidade disser que engorda só de olhar para o prato, não é verdade. Digo por experiência própria”.
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Essa era a ideia que a medicina fazia da obesidade há 50 anos: simples questão de força de vontade.
Atribuir ao doente a culpa pela doença que o aflige é tradição milenar na sociedade. A hanseníase era considerada manifestação da ira divina contra os ímpios; a tuberculose, uma punição divina à vida devassa; a aids, um anátema contra os promíscuos.
Frutos da ignorância, tais preconceitos foram descontruídos pela ciência. No caso da obesidade, a desconstrução começou no final dos anos 1970, com os primeiros passos para a elucidação dos mecanismos moleculares dos circuitos cerebrais envolvidos nas sensações de fome e saciedade. A complexidade das reações metabólicas responsáveis pelo controle do peso corpóreo e a disseminação mundial da epidemia de obesidade criaram a necessidade de entender por que tanta gente engordava com facilidade e sofria tanto para emagrecer.
A World Obesity Foundation estima que o impacto do excesso de peso e da obesidade na economia mundial alcançará U$ 4,32 trilhões em 2035 caso a tendência atual se mantenha.
As drogas introduzidas nos anos 1980, cheias de efeitos indesejáveis, pouco ajudaram – várias foram retiradas do mercado. A única estratégia com resultados consistentes foi a cirurgia bariátrica, procedimento radical e irreversível que exige hospitalização e longo processo adaptativo.
Nos últimos anos, foram descritos diversos fatores que interferem com o equilíbrio fome/saciedade, seus mecanismos de ação e a genética dos circuitos de neurônios encarregados de estimular ou inibir o apetite em animais.
Uma das descobertas mais promissoras foi o desenvolvimento de medicamentos classificados como agonistas do receptor GLP-1, no controle da glicemia em pessoas com diabetes tipo 2.
São drogas que estimulam a liberação de insulina pelas células pancreáticas, diminuem a velocidade de esvaziamento gástrico, promovem e prolongam a ação dos sinais de saciedade enviados do intestino para o cérebro. Graças a essas propriedades, os agonistas GLP-1 não raro provocam emagrecimentos da ordem de 15% a 20% do peso corpóreo. Pela primeira vez na história, surgem drogas eficazes para tratar obesidade. O sucesso comercial foi tão grande que os estoques mundiais se esgotaram, deixando à míngua os pacientes com diabetes.
Esses medicamentos serão capazes de reduzir os níveis de obesidade da população e os custos das suas complicações: hipertensão arterial, infarto do miocárdio, AVC, câncer, amputações, insuficiência renal e outras?
Acho pouco provável. Os agonistas GLP-1 são muito caros. Com mais da metade dos brasileiros adultos com IMC na faixa de excesso de peso ou obesidade, haverá recursos no SUS para distribuí-los? Sem eles, não estaremos acentuando a desigualdade social?
Os ensaios clínicos têm mostrado que a interrupção do tratamento está associada ao ganho do peso perdido. Se esses estudos forem confirmados, os medicamentos deverão ser mantidos pelo resto da vida? Os pacientes suportarão os gastos e os efeitos colaterais dessa administração contínua durante anos consecutivos? Quais as consequências do efeito “sanfona” de repetição gerado pelas interrupções seguidas de reinícios? O que acontecerá com as pessoas que sofrem de transtornos alimentares, como bulimia ou anorexia nervosa? A confiança no emagrecimento medicamentoso não será um estímulo para o sedentarismo e os exageros à mesa?
É um grande avanço dispor de drogas que ajudam a perder peso, mas para enfrentar a epidemia de obesidade é preciso que sejam de baixo custo e com poucos efeitos colaterais. Estamos distantes. Até lá, continua valendo a mensagem: “Não dá para passar o dia sentado, comendo tudo o que nos oferecem”.