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A cultura dos chimpanzés | Artigo

Publicado em 15/04/2011
Revisado em 11/08/2020

Habilidades e costumes apresentados por grupos de primatas demonstram que é possível reconhecer a existência de uma cultura dos chimpanzés.

 

A cultura como privilégio exclusivo da espécie humana tem sido contestada.

Nos últimos anos, é crescente o número de biólogos que admitem a existência de traços culturais bem definidos em animais geneticamente mais próximos de nós. Para eles, se todas as características macroscópicas e microscópicas dos seres vivos surgiram, como previu Charles Darwin, em obediência aos mecanismos de competição e seleção natural, como justificar que a cultura tenha origem pontual apenas na espécie humana? Seria ela um dom divino?

Chimpanzés, animais com mais de 98% de identidade genética com o homem, apresentam habilidades e comportamentos específicos das comunidades em que nasceram e foram criados. Por exemplo, os chimpanzés da Floresta Nacional de Tai, na Costa do Marfim, têm o costume de quebrar sementes arremessando contra elas pedras levantadas à altura da cabeça com as duas mãos. Essa habilidade não é encontrada em nenhuma outra comunidade da Costa do Marfim, embora pedras e as mesmas sementes estejam disponíveis em todos os lugares.

Há pelo menos 30 anos ficou demonstrado que a habilidade de usar ferramentas, anteriormente considerada particularidade inequívoca de nossa espécie, é comum em diversos primatas não humanos. A célebre primatologista Jane Goodall observou que os chimpanzés da reserva Gombe, na Tanzânia, introduzem bastões de cerca de 60 centímetros em formigueiros e esperam os insetos subirem até a metade do bastão para retirá-los com uma das mãos e levá-los à boca – técnica que lhes permite caçar algumas centenas de formigas em cada manobra.

Em Tai, o mesmo tipo de caça é feito com bastões de 30 centímetros que o chimpanzé introduz no formigueiro, espera poucos segundos e leva diretamente à boca para retirar os insetos. Este método permite caçar apenas um quarto das formigas obtidas por minuto pela técnica anterior, mas em duas décadas de observação de campo nenhum pesquisador encontrou animais de Tai caçando no estilo de Gombe ou vice-versa.

Richard Wrangham, da Universidade de Harvard, autor de diversos livros sobre primatologia, estudou os sons vocais de chimpanzés (os animais mais barulhentos da floresta, depois do homem) em cativeiro. Apesar das diferentes origens genéticas dos animais, ele identificou sons característicos em cada colônia estudada que só poderiam ser explicados pelo aprendizado coletivo.

 

Veja também: Leia artigo sobre pesquisas com chimpanzés

 

Em trabalho recentemente publicado na revista “Nature”, um grupo de primatologistas analisou os dados obtidos nos sete campos de observação de chimpanzés mais pesquisados até hoje. Foi possível reunir, nos diversos grupos, 39 comportamentos distintos – do uso de ferramentas a gestos empregados nos relacionamentos sociais – que não poderiam ser explicados por diferenças genéticas ou ecológicas. Essa diversidade é tão evidente que, muitas vezes, os especialistas conseguem identificar a origem de um chimpanzé baseados somente em seu comportamento social.

Tais achados da primatologia moderna, profundamente alicerçada na observação dos animais em seu hábitat, deram origem ao grande debate atual: existiriam de fato culturas distintas entre os chimpanzés? A identificação de traços culturais em outros primatas poderia esclarecer as origens da cultura humana?

A discussão não é nova, surgiu em 1958 quando Kawamura e Kawai, da Universidade de Kioto, verificaram que macacos da ilha de Koshima eram capazes de lavar, num córrego das proximidades, as batatas-doces sujas de areia distribuídas por eles. O comportamento foi definido pelos autores como “pré-cultural” e passou a constar dos livros de texto como demonstrativo da existência de cultura nos animais.

Na década de 1990, no entanto, outros investigadores questionaram a definição com base no argumento de que essa habilidade dos macacos levou anos para se disseminar entre os componentes do grupo, sugerindo mais reinvenção individual do que propriamente o aprendizado coletivo característico dos agrupamentos humanos.

As críticas desencadearam discussões teóricas e grande volume de trabalhos científicos recentemente resumidos na revista “Science“. A existência do processo de aprendizado por imitação, tão crucial à cultura humana, é controverso nos demais primatas. Embora haja consenso de que ele possa ocorrer nos chimpanzés, parece ser fenômeno raro, o que tornaria difícil admitir a emergência da cultura nesses animais.

A maioria das pessoas considera a cultura uma característica tipicamente humana que envolve linguagem, expressões artísticas, utilização de ferramentas e hábitos do cotidiano. Alguns biólogos, entretanto, admitem que qualquer comportamento comum a uma população aprendido com um dos componentes do grupo pode ser classificado como traço cultural. Nesse caso, os dialetos dos pássaros cantores ou a forma de gritar de um orangotango na floresta seriam considerados expressões culturais.

Os antropólogos costumam ser muito mais exigentes na definição. Para eles, o conceito de cultura deve incluir necessariamente a linguagem e sistemas de comportamento complexos, só encontrados na espécie humana.

Chamemos ou não de cultura essas características de comportamento dos primatas, nelas provavelmente residem as raízes da cultura humana. A explosão de luz num quadro de Van Gogh, a harmonia dos sons numa cantata de Bach e o arranjo das palavras nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas” não aconteceram da noite para o dia: representam as manifestações mais avançadas de uma longa história de evolução.

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