Colite ulcerativa | Entrevista

Esta doença inflamatória pode acometer qualquer parte do intestino. Conheça os tratamentos nesta entrevista sobre colite ulcerativa.

Dr. Flavio Steinwurz é médico gastroenterologista. Presidente da Associação Brasileira de Colite Ulcerativa e Doença de Crohn (ABCD), diretor do Departamento de Gastroenterolgia da Associação Paulista de Medicina, integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein. postou em Entrevistas

Esta doença inflamatória pode acometer qualquer parte do intestino. Conheça os tratamentos nesta entrevista sobre colite ulcerativa.

Compartilhar

Publicado em: 17 de abril de 2012

Revisado em: 11 de junho de 2021

Esta doença inflamatória pode acometer qualquer parte do intestino. Conheça os tratamentos nesta entrevista sobre colite ulcerativa.

 

O tubo digestório começa na boca, onde se inicia a digestão dos alimentos triturados pelos dentes, umedecidos pela saliva e sob a ação de algumas enzimas (imagem 1). Depois de transformados num bolo pastoso, eles descem pela faringe e alcançam o esôfago, um tubo de paredes musculosas que os empurra  até o estômago por meio, de contrações involuntárias controladas pelo sistema nervoso autônomo. No estômago, em contato com o suco gástrico, tem início a digestão das proteínas.

Essas contrações, chamadas movimentos peristálticos, ocorrem também no estômago e intestinos durante o processo de digestão.

Dessa forma, o bolo alimentar passa do estômago para o duodeno, primeiro segmento do intestino delgado (os outros dois são o jejuno e o íleo). No duodeno, desembocam o colédoco, canal resultante da união do cístico (que vem da vesícula biliar) com o hepático (que vem do fígado) e com o canal de Wirsung, que traz do pâncreas enzimas importantes para a digestão.

Na junção entre o íleo e o intestino grosso situa-se a válvula ileocecal. Ceco (parte arredondada e de fundo cego), cólon, reto e canal anal constituem regiões integradas do intestino grosso, onde ocorre a formação das fezes, que serão eliminadas, e a reabsorção da água utilizada durante a digestão.

O cólon (daí a palavra colite) é uma estrutura que sobe pelo lado direito do abdômen, desde o ceco até a altura do fígado (cólon ascendente). Ao virar para a esquerda, transforma-se no cólon transverso, que corre horizontalmente até alcançar a região do baço. A partir desse ponto, começa a descer pelo lado esquerdo do abdômen. É o cólon descendente que termina no cólon sigmoide e este, no reto.

Colite ulcerativa é uma doença inflamatória que pode acometer qualquer parte do intestino, desde o duodeno até o reto.  Seus sintomas são comuns aos de inúmeras outras moléstias do sistema digestório. Por isso, o diagnóstico costuma ser tardio, o que pode causar complicações graves.

 

CARACTERÍSTICAS

 

Drauzio – Quais as principais características da inflamação provocada pelas doenças intestinais?

Flavio Steinwurz – Na verdade, a inflamação é uma defesa do organismo contra um agente agressor. Portanto, só se torna uma doença, quando essa defesa não é normal. No caso específico das doenças inflamatórias, ela é anômala, exagerada e acarreta lesões.

Costumo me valer de uma comparação bem simples para explicar o que acontece. Diante de uma formiga em nossa casa, o problema acaba se a espantarmos ou pisarmos nela. Jogar o computador em cima da formiga é um ato exagerado para livrarmo-nos de uma ameaça insignificante. No que se refere às doenças inflamatórias que acometem o intestino, a resposta da defesa é uma reação anormal que lesa o próprio intestino e causa feridas ou inflamações persistentes.

 

Drauzio – O que diferencia a colite inflamatória das demais doenças inflamatórias que acometem os intestinos?

Flavio Steinwurz – Entre as várias doenças inflamatórias que acometem o intestino, existem duas chamadas de inespecíficas – a colite ulcerativa e a doença de Crohn – de causa e cura desconhecidas. Como não se sabe qual é o fator que desencadeia essas enfermidades, não se pode considerá-las curáveis e elas recidivam. Ou seja, o máximo que se consegue com o tratamento é tirar o paciente da crise, mas ele permanece sujeito a novas crises no futuro.

Tanto a colite quanto a doença de Crohn caracterizam-se por inflamações crônicas e exuberantes, que persistem por períodos prolongados e, quando controladas, reaparecem em surtos de atividade de tempos em tempos. A diferença entre elas está no grau de inflamação. Na colite ulcerativa, ela é superficial, atingindo a mucosa do intestino grosso exclusivamente. Na doença de Crohn, pode acometer qualquer parte do tubo digestivo. Ela atravessa a mucosa e penetra as quatro camadas da parede intestinal, podendo provocar também fissuras fora do intestino que vão acarretar outras complicações.

Além disso, na colite ulcerativa, a lesão é continua na área do intestino agredida pela inflamação, ao passo que, na doença de Crohn, existem ilhas de áreas saudáveis, sem doença. As lesões são salteadas, ou seja, há áreas de intestino normal e áreas doentes.

 

Drauzio – Como evolui a colite ulcerativa?

Flavio Steinwurz – As lesões da colite ulcerativa são contínuas, mas podem estar limitadas a certos segmentos do intestino grosso. Conforme a região em que aparecem, recebem denominações especiais: proctite (final do reto), retossigmoide (reto e sigmoide), hemicolite esquerda (parte esquerda do intestino) e colite universal ou pancolite, a mais desagradável de todas, que toma todo o intestino grosso.

Dependendo da extensão e das características da doença, o quadro pode ser mais ou menos grave. Será menos exuberante, se as feridas forem pequenas e superficiais. Quando as úlceras são grandes e, às vezes, confluentes, isto é, uma ferida se junta com a outra, podem provocar mais sangramento. Alem disso, a simples presença desses ferimentos irrita a mucosa intestinal e acelera o intestino, causando diarreia.

 

SINTOMAS

 

Drauzio — Quais são os principais sintomas da colite ulcerativa?

Flavio Steinwurz — Sangramento é o principal sintoma da colite ulcerativa. Os outros são diarreia com sangue, com muco e, eventualmente com pus, se houver infecção, além de cólicas, em razão do aumento das contrações  intestinais. Por causa da diarreia, muitas vezes, o paciente deixa de alimentar-se adequadamente, pois sempre que come tem vontade de evacuar e acaba perdendo peso.

 

Drauzio – Essa relação entre a alimentação e a necessidade de ir ao banheiro é muito importante na colite ulcerativa…

Flavio Steinwurz – Normalmente, quando comemos, todos temos vontade de evacuar, porque o intestino se movimenta após a refeição, mas é um reflexo simples, tênue. Nos indivíduos com colite, esse reflexo é intenso e ele tem urgência de ir banheiro. Muitas vezes, num restaurante, precisam sair rapidamente da mesa. Quando voltam, têm medo de continuar comendo e sentir de novo a premência para evacuar. O resultado é que acabam emagrecendo. Emagrecem pela doença em si, que provoca diarreia e sangramento, e pela dificuldade em alimentar-se adequadamente.

 

Drauzio – Como estabelecer a diferença entre a diarreia comum, dessas que podemos adquirir no dia a dia, e a diarreia característica da colite antes de se formarem as úlceras?

Flavio Steinwurz – Os sintomas de todas as diarreias são similares. O que diferencia a diarreia da colite ulcerativa das outras é, principalmente, a cronicidade. Em geral, as diarreias infecciosas são autolimitadas, têm curso curto. Em três ou quatro dias, uma semana, estão controladas. Por isso, a duração da crise é outro dado importante para diferenciar a diarreia da colite ulcerativa das provocadas pela síndrome do intestino irritável ou, ainda, por momentos de muita tensão.

A diarreia da colite é persistente. O indivíduo passa um mês com intestino solto, com presença de muco e sangue nas fezes e urgência para evacuar muito importante, inclusive durante a noite. Além disso, perde peso, o que raramente acontece nas diarreias comuns.

E mais: na diarreia das doenças funcionais relacionadas com a emoção, o problema aparece durante o dia, com o estresse, com o trabalho. As crises provocadas pelas feridas e inflamação da colite ulcerativa não conhecem dia e noite e o paciente é obrigado a levantar-se também de madrugada para ir ao banheiro.

 

DIAGNÓSTICO

 

Drauzio – Como é feito o diagnóstico de colite ulcerativa?

Flavio Steinwurz – Basicamente, o diagnóstico é feito por via endoscópica no consultório se o médico dispuser do aparelho de retossigmoidoscopia. Esse exame consiste na introdução de um tubo rígido de30 cm a40 cm no reto que permite definir a presença ou não de colite. Para realizá-lo, não há necessidade de preparo, mas se a pessoa fizer uma pequena lavagem antes, melhor.

Apesar de no Brasil, quase 100% das colites ulcerativas acometerem o reto, para saber a real extensão do processo inflamatório é obrigatório recorrer à colonoscopia, exame mais sofisticado, feito sob sedação e que necessita de preparo. A vantagem da colonoscopia  é que utilizando um tubo flexível, o médico consegue ver todo o intestino grosso, desde o reto até sua junção com o íleo terminal do intestino delgado.

Existem também testes que ajudam a mensurar a atividade e confirmar a presença da doença. O exame de sangue revela se a pessoa está com anemia e deficiência de ferro por causa do sangramento ou, ainda, com deficiência de albumina, uma proteína essencial à formação dos tecidos, que se perde como consequência da ferida no intestino e da produção intensa de muco.  Da mesma forma, ajudam os exames de hemossedimentação e proteína C-reativa que se alteram muito nos processos inflamatórios.

Além disso, atualmente, está sendo usado um marcador sorológico chamado ANCA, para auxiliar a estabelecer o diagnóstico diferencial, nos casos em que surja alguma dúvida.

 

Drauzio – Há algumas décadas, os médicos demoravam muito para fazer o diagnóstico de colite ulcerativa. Atualmente, nossos colegas estão preparados para reconhecer logo a doença nos casos de diarreia prolongada?

Flavio Steinwurz – Acredito que os médicos estão cada vez mais preparados, mesmo porque a colite ulcerativa é uma doença comum na clínica médica. Evidentemente, em alguns lugares, a diarreia e o sangramento podem ser sintomas atribuídos ao nervosismo ou às hemorroidas, mas não é o que acontece na grande maioria dos casos. Desde que haja condições de o paciente realizar exames de retossogmoidoscopia e colonoscopia, quando procurou o médico, o diagnóstico será logo determinado.

 

TRATAMENTO

 

Drauzio – Em que consiste o tratamento da colite ulcerativa?

Flavio Steinwurz – O tratamento clássico, utilizado há muitos e muitos anos, é feito com sulfa ou derivados da sulfa. Faz bastante tempo que a sulfa-salazina é usada no tratamento de doenças reumáticas, da artrite reumatoide, por exemplo.  Essa experiência mostrou que alguns pacientes, que também apresentavam diarreia com sangue, melhoravam da diarreia substancialmente, quando tomavam esse remédio. Estudando esses casos, a conclusão foi que o quadro reumático articular era extraintestinal, decorrente da colite ulcerativa e que a sulfa, medicamento eficaz na reumatologia, também funcionava nas colites.

Mais tarde se descobriu que a sulfa tem dois compostos: a messalazina ou ácido 5-aminossalicílico, que é mais ativo, e um composto que carrega essa droga até o intestino, para que não seja degradada pelo ácido clorídrico e pelas enzimas do estômago. O passo seguinte, então, foi produzir um remédio só com o ácido 5-aminossalicílico ou messalazina, com revestimento para protegê-lo, a fim de que chegasse íntegro às porções finais do intestino onde exerce seu efeito e provocasse menos efeitos colaterais adversos.

Outra opção de tratamento, quando os derivados de sulfa não apresentam bons resultados, é prescrever corticoides, pois as cortisonas atuam na forma ativa e aguda da doença com bastante rapidez e eficiência.

 

Drauzio – A resposta ao tratamento costuma ser rápida? O paciente apresenta logo regressão dos sintomas?

Flavio Steinwurz – A grande maioria tem resposta muito rápida. Cerca de uma semana depois do início do tratamento, há regressão do quadro diarreico, desaparecimento do sangramento, melhora da dor abdominal, recuperação do peso e do apetite e fim da urgência para evacuar. Ocorre que alguns pacientes tornam-se dependentes dos corticoides, ou seja, quando tomam esse remédio ficam ótimos, mas, se as doses são reduzidas, voltam a ter crises. Para esses, existe o recurso oferecido pelos imunossupressores, remédios destinados aos pacientes com colite ulcerativa, que desenvolveram dependência aos corticoides ou não responsivos ao tratamento convencional.

 

COMPLICAÇÕES

 

Drauzio – A colite ulcerativa pode evoluir mal e apresentar complicações?

Flavio Steinwurz – Em alguns casos, que felizmente são raros, a colite pode evoluir para quadros graves de colites fulminantes, com sangramento volumoso, de difícil controle. O paciente precisa ser internado para tomar medicação por via endovenosa e repor o sangue que perdeu.

Podem ocorrer também complicações extraintestinais, isto é, complicações de pele e de fígado, entre outras, que regridem com a melhora da doença.

Uma complicação que merece ser destaque é o megacólon tóxico, uma inflamação acompanhada de quadro infeccioso grave. Trata-se de infecção que pode atingir a corrente sanguínea e causar septicemia. Esses casos precisam de atenção muito rápida e de abordagem específica com antibióticos.

Por fim, é preciso lembrar que quadros longos de pancolite ou colite universal, aquela que acomete o intestino grosso inteiro, com mais de oito, dez anos de história, aumentam muito a probabilidade de câncer de intestino. Por isso, como prevenção, esses pacientes devem fazer colonoscopia anualmente, com biópsias, mesmo que doença esteja em remissão por período prolongado.

 

COMPONENTE EMOCIONAL

 

Drauzio – No passado, atribuía-se a colite ulcerativa a causas psicológicas. Eu mesmo estudei essa doença na cadeira de Psiquiatria. Existe alguma relação entre o psiquismo e a prevalência de colite? 

Flavio Steinwurz – Achava-se que o indivíduo com colite ulcerativa tinha um perfil psicológico típico de colite. Era ansioso, complicado. Isso não é verdade. No entanto, é fácil entender que o portador de uma doença crônica que dificulta seu convívio social, tem urgência para ir ao banheiro e evacua sangue, está sujeito a um componente emocional grande nos momentos de crise, componente relacionado com a doença em si e com o aparecimento dos sintomas.

Sempre me perguntam se o componente emocional pode causar a crise. Acredito que sim, porque corpo e mente funcionam juntos. No indivíduo com diabetes, os níveis de açúcar sobem quando ele está tenso e o mesmo acontece com os alérgicos, que têm os sintomas agravados sob estresse. No entanto, não vejo relação direta de causa e efeito: “Fiquei nervoso e vou ter uma crise de colite” ou “Tive a crise de colite, porque estava nervoso”.

 

Drauzio – Também não deve ser fácil para a pessoa, toda a vez que come alguma coisa, ser obrigada a sair correndo para o banheiro. Esse funcionamento exagerado do intestino deve gerar uma insegurança muito grande e criar sérias dificuldades para o relacionamento social.

Flavio Steinwurz – A primeira preocupação desses indivíduos, quando vão a um restaurante, é localizar onde fica o banheiro. Eles temem o risco de passar por situações constrangedoras. Existem pacientes com quadros agudos que levam uma muda de roupa quando saem de casa. Não é de se esperar, portanto, que eles não vivam em estado de tensão permanente.

 

PERGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL

 

Carlos André Sanches de Souza – Sertãozinho/SP – Como reeducar os hábitos alimentares para contornar o problema de colite?

Flavio Steinwurz – Na verdade, no que se refere à alimentação, não há nada que contorne o problema, mas certos cuidados podem não agravar o quadro de colite ulcerativa.

Quando está em crise, com diarreia, para não estimular ainda mais o intestino, o paciente não deve comer condimentos picantes, nem alimentos que contenham muitas fibras insolúveis, como cascas das frutas, verduras e alguns tipos de cereais. É bom evitar também leite e derivados que podem aumentar o processo de fermentação e causar desconforto. Não há hábitos alimentares que melhorem a doença, há alimentos que não pioram as crises.

 

Drauzio – Bebida alcoólica é contraindicada?

Flavio Steinwurz – Depende da bebida. Curiosamente, nos casos de colite ulcerativa, as bebidas fermentadas – cerveja, vinho, champanhe – devem ser evitadas não pelo teor alcoólico, mas porque a fermentação pode aumentar a diarreia. Já os destilados são permitidos.

 

Lílian Cardoso de Oliveira – Belo Horizonte/MG – Depois do diagnóstico de colite, as pessoas podem levar vida normal?

Flavio Steinwurz – O tratamento tem dois objetivos básicos: tirar o paciente da crise e mantê-loem remissão. Como esse objetivo é alcançado na grande maioria dos casos, as pessoas podem levar vida absolutamente normal.

 

Luiza Daniela Zerman – Rio Grande/RS – Como são as manifestações extraintestinais da colite ulcerativa?

Flavio Steinwurz – A colite ulcerativa é uma doença que pode ter manifestações extraintestinais. As mais comuns são as articulares (dor nas juntas, artralgias, artrites), mas podem ocorrer também manifestações dermatológicas, como o eritema nodoso (nódulos vermelhos principalmente nas pernas, mas às vezes nos braços, que são muito doloridos) e o pioderma gangrenoso, cuja principal característica é o aparecimento de feridas que começam brancas e depois vão ficando pretas, com infecção e pus, bastante dolorosas, que deixam cicatrizes e exigem tratamento enérgico.

A colite pode provocar, ainda, alterações oculares como esclerites e uveítes e complicações no fígado, que felizmente são raras.

 

Adriana Vieira – Santos/SP – Qual a importância do exame de fezes para a colite?

Flavio Steinwurz – Na colite ulcerativa, o exame de fezes não tem importância nenhuma. Ele passa a ter importância para estabelecer o diagnóstico diferencial ou para saber se não há outra patologia associada. Para exemplificar, uma das possibilidades é a amebíase. A colite amebiana causa feridas que também provocam sangramento e pode confundir o diagnóstico.

Veja mais

Sair da versão mobile