Pesquisa sobre drogas no Espírito Santo: 21,8% dos jovens já experimentaram substâncias - Portal Drauzio Varella
Página Inicial
Coluna da Luana Viana

Pesquisa sobre drogas no Espírito Santo: 21,8% dos jovens já experimentaram substâncias

Estudo inédito com mais de 4 mil estudantes da Grande Vitória mostra aumento do consumo de vapes, álcool e drogas ilícitas entre adolescentes capixabas

Quando 63% dos adolescentes de uma região afirmam já ter consumido álcool, não estamos diante de um dado estatístico qualquer. A pesquisa realizada pela Rede Abraço, em parceria com o Laboratório de Estudos sobre Violência, Saúde e Acidentes da Ufes (LAVISA) e a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), entrevistou 4.614 estudantes (de 14 a 19 anos) de 63 escolas públicas e privadas da Região Metropolitana da Grande Vitória e trouxe à tona números que não podem ser ignorados.

O estudo revela que 21,8% dos adolescentes capixabas já experimentaram algum tipo de droga – lícita ou ilícita. Esse percentual representa milhares de jovens que, em plena fase de desenvolvimento neuropsíquico, já tiveram contato com substâncias que podem comprometer seu futuro. E há um recorte que merece atenção especial: entre as meninas, o índice sobe para 23,5%. 

“Quanto mais cedo se começa, mais tempo a pessoa fica exposta à substância, prejudicando sua saúde a longo prazo”, explica a professora e dra. Franciéle Marabotti, responsável pela condução da pesquisa.

Vapes, narguilés e o retorno de velhos problemas com nova roupagem

Se o Brasil foi bem-sucedido em reduzir as taxas de tabagismo nas últimas décadas por meio de campanhas educativas, restrição de vendas e taxação de produtos, hoje assistimos ao retorno do problema com uma embalagem mais atraente e tecnológica. Os cigarros eletrônicos – ou vapes, como são popularmente conhecidos – e os narguilés conquistaram quase um quarto dos estudantes da Grande Vitória: 22,9% já experimentaram esses dispositivos, sendo 25% entre as meninas.

“É uma tendência nacional. A prevalência de uso de vape é maior do que a do cigarro tradicional. E ele pode ser especialmente prejudicial para os adolescentes porque o consumo tende a se perpetuar ao longo da vida adulta”, me alerta a doutora, em uma conversa que tivemos durante o evento de lançamento do estudo.

O dado se torna ainda mais sério quando cruzado com a informação de que os principais locais de obtenção são lojas, bares e estabelecimentos comerciais. Mesmo com a proibição da comercialização de cigarros eletrônicos no Brasil desde 2009 – e reiterada em 2024 pela Anvisa – a fiscalização é insuficiente e os adolescentes não encontram barreiras reais para adquirir esses produtos. Entre as motivações citadas estão “diversão com amigos”, “redução de estresse” e “relaxamento” – justificativas que revelam jovens em busca de válvulas de escape para pressões emocionais.

O álcool como porta de entrada naturalizada

Outro dado inquietante é sobre o consumo de álcool. Quando 63% dos adolescentes afirmam já ter bebido ao menos uma dose, fica evidente que existe uma naturalização social que facilita o acesso e banaliza os riscos.

“A pesquisa mostrou que adolescentes que consomem álcool e drogas convivem com pais, irmãos ou cuidadores que também fazem uso dessas substâncias”, destaca a pesquisadora.

Entre os que já consumiram álcool, 27% relataram ter ficado bêbados uma ou duas vezes, e quase 9% afirmaram ter tido problemas com família, amigos, faltado à escola ou se envolvido em brigas devido ao consumo. A preferência é por bebidas destiladas, e 39,2% conseguiram comprar álcool no comércio local – padarias, bares, lojas – sem qualquer impedimento, apesar da proibição legal.

Um retrato local que espelha uma crise nacional

Os números da pesquisa feita em Grande Vitória, embora regionais, não são uma anomalia capixaba – são, muito provavelmente, o reflexo de uma realidade que se replica em diferentes cantos do Brasil. Quando confrontamos os dados locais com levantamentos nacionais, as semelhanças são inquietantes e sugerem que o Espírito Santo pode estar apenas evidenciando um problema que outras regiões ainda não mapearam com a mesma profundidade.

Segundo o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), o consumo abusivo de álcool no Brasil atingiu 20,8% da população em 2023, com aumento expressivo de internações entre pessoas acima de 55 anos. A pandemia de Covid-19 agravou dramaticamente o cenário, marcando os anos com as maiores taxas de óbitos por alcoolismo e doenças hepáticas – interrompendo uma tendência de queda registrada entre 2014 e 2019.

O III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, realizado pela Fiocruz, corrobora os achados capixabas: 66,4% da população de 12 a 65 anos já consumiu álcool, índice bastante próximo aos 63% encontrados entre os adolescentes da Grande Vitória. Entre as drogas ilícitas, a maconha lidera com 7,7% da população relatando consumo – número que se aproxima dos 17,6% de experimentação no estudo local quando consideramos a faixa etária específica da adolescência.

O estudo da Fiocruz também alertou para o aumento preocupante do uso não-prescrito de medicamentos controlados, como benzodiazepínicos e opiáceos – tendência que encontra eco nos 16,7% de adolescentes capixabas que relataram uso de tranquilizantes sem prescrição médica, muitas vezes obtidos dentro da própria casa.

Essa convergência entre dados regionais e nacionais nos leva a uma conclusão desconfortável: se o Espírito Santo apresenta esses números, quantos outros estados brasileiros estão enfrentando a mesma realidade sem ter dados robustos para dimensionar o problema? A pesquisa da Rede Abraço possivelmente descortina uma crise de saúde pública que se estende por todo o território nacional – e que permanece subnotificada em muitas regiões.

A feminização do consumo e outras tendências preocupantes

Um dos aspectos mais relevantes do estudo é a confirmação da feminização do uso de drogas. Em praticamente todas as substâncias pesquisadas – álcool, cigarro eletrônico, maconha –, as meninas apresentam índices iguais ou superiores aos meninos. Esse fenômeno não é exclusivo do Espírito Santo e tem sido observado em diversos estudos nacionais e internacionais, mas merece atenção especial por indicar que as estratégias preventivas precisam considerar as especificidades de gênero.

Porém, a doutora pondera: “As meninas entre 11 e 14 anos experimentam drogas mais cedo, os meninos mais tarde. Mas na idade adulta, há uma prevalência maior de uso entre os homens”.

O uso de medicamentos tranquilizantes sem prescrição médica também preocupa: 16,7% dos estudantes já fizeram uso dessas substâncias, e 33,5% deles receberam os medicamentos de alguém da própria família. A dra. Franciéle Marabotti destaca que essa negligência parental nem sempre é consciente. A automedicação, problema grave no Brasil, leva pais e responsáveis a fornecerem, com boas intenções, remédios para dormir ou ansiedade sem compreender que são medicamentos controlados que exigem prescrição médica. 

A pesquisa também evidencia que, embora mais de 90% dos estudantes tenham recebido algum tipo de ação educativa sobre drogas – seja na escola, na família ou em outros espaços –, 54,1% afirmaram que buscariam informações sobre o tema na internet caso precisassem. 

“O que mais me surpreendeu foi entender o quanto a fragilização do cuidado parental impacta: adolescentes que não recebem esse cuidado, apresentaram prevalências maiores de uso de álcool, maconha e outras drogas, lícitas ou ilícitas”, comenta a pesquisadora.

Rede Abraço

Diante desse cenário, iniciativas como o Programa Rede Abraço, criado pelo Governo do Espírito Santo em 2013 e reformulado em 2019, ganham relevância estratégica. Com 11 anos de atuação, o programa, que atua com foco na prevenção, tratamento, reinserção social e pesquisas sobre drogas no Espírito Santo, já atendeu mais de 22 mil pessoas e realizou mais de 110 mil atendimentos. 

Os três Centros de Acolhimento e Atenção Integral sobre Drogas (CAADs), localizados em Vitória, Cachoeiro de Itapemirim e Linhares, funcionam como serviços de porta aberta, sem necessidade de agendamento – um modelo que facilita o acesso e reduz barreiras burocráticas.

Em 2025, o programa trouxe inovações importantes, como o Centro de Prevenção Comunitária, inaugurado em março, e o Projeto Horizontes, voltado para crianças e adolescentes de 6 a 18 anos em situação de vulnerabilidade. Além disso, em parceria com a Secretaria de Educação, foi lançado um material didático pedagógico inédito no país para que 250 professores de 408 escolas estaduais trabalhem a temática de prevenção em sala de aula.

O que os dados nos dizem sobre o futuro

Os números apresentados pela pesquisa são um chamado à ação. Não bastam campanhas educativas pontuais ou ações isoladas. É preciso reconhecer que o uso de drogas na adolescência é sintoma de questões mais profundas: ansiedade, pressão social, falta de perspectivas, ausência de espaços de escuta e acolhimento.

Se 54% dos adolescentes buscariam informações sobre drogas na internet, é porque as fontes tradicionais – escola, família, serviços de saúde – não estão conseguindo estabelecer canais de diálogo efetivos. Se quase 40% conseguem comprar álcool sem dificuldade no comércio local, é porque a fiscalização é falha e a sociedade naturaliza o consumo.

Os dados coletados pela Rede Abraço oferecem subsídios importantes para a formulação de políticas públicas baseadas em evidências. Agora é preciso que gestores, educadores, profissionais de saúde e a sociedade como um todo os encarem não como estatísticas distantes, mas como um retrato de milhares de jovens capixabas que precisam de apoio, orientação e, principalmente, de fatores de proteção que fortaleçam suas escolhas.

A adolescência é, por natureza, um período de experimentação e busca por identidade. Cabe aos adultos e gestores públicos garantir que essa experimentação não se traduza em caminhos sem volta.

Compartilhe