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Podemos apostar na imunidade de rebanho? | Coluna

pessoas andam pela avenida Paulista. Imunidade de rebanho é arriscado
Publicado em 18/07/2020
Revisado em 10/08/2020

Quantas mortes são aceitáveis para chegarmos à imunidade de rebanho? Cem mil? Quinhentos mil?

 

Desde que chegou ao país, a pandemia de Covid-19 fez os brasileiros se familiarizarem com expressões e conceitos de epidemiologia (área da Medicina que estuda a distribuição e os determinantes dos problemas de saúde), como taxa de transmissão, curva epidemiológica e crescimento exponencial.

Nos últimos dias, voltou à mídia um termo que já havia sido colocado de lado: imunidade de rebanho, também conhecida como imunidade coletiva. Ela ocorre quando, em determinada comunidade, a quantidade de pessoas que entraram em contato com um agente infeccioso, como um vírus, ou tomaram a vacina contra ele desenvolve imunidade e, assim, acaba oferecendo uma espécie de barreira de proteção aos não imunes. Com isso, o agente tem dificuldade de circular e o número de casos diminui.

Veja também: Artigo do dr. Drauzio sobre a epidemia no Brasil

Alguns países, como Reino Unido e Suécia, chegaram a cogitar o uso dessa estratégia no início da pandemia, permitindo que os menos suscetíveis a desenvolver um quadro grave de Covid-19, como jovens sem doença crônica, circulassem sem restrições. Os governos mudaram de ideia quando o número de mortes começou a aumentar significativamente, revelando a necessidade de toda a população adotar as medidas de prevenção da doença, como distanciamento social e uso de máscaras.

Então por que o tema voltou recentemente às manchetes de veículos de comunicação?

No fim de junho de 2020, foi publicado na revista científica “Science” um estudo sugerindo que a taxa estimada anteriormente para atingir-se a imunidade coletiva para Covid-19, de cerca de 70%,  é muito alta, e que seriam suficientes cerca de pouco mais de 40% de infectados para obtê-la.

“Não podemos esquecer que esse é um modelo matemático, e não um estudo populacional”, ressalta Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP), em live a este Portal, em 15/7/20. Isso significa que o modelo não foi observado em uma população real.

O médico epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP Paulo Lotufo também faz a mesma observação. “O estudo é um exercício intelectual, sem qualquer outra aplicação”, afirma.

É importante dizer que nem os próprios autores do estudo sugerem que se afrouxem as medidas de prevenção em busca de uma suposta imunidade coletiva; essa interpretação sequer é mencionada no estudo.

 

Imunidade

 

Outro ponto é que ainda não conhecemos todos os elementos envolvidos na produção da imunidade da Covid-19. Não sabemos se os anticorpos produzidos para combater o Sars-CoV-2, vírus causador da doença, são de fato neutralizantes, ou seja, se eles protegem contra uma reinfecção. Também não sabemos se essa imunidade é duradoura, pois a Covid-19 é uma doença nova, conhecida há poucos meses.

Outro estudo, publicado na revista “Nature”, sugere que os linfócitos T, importantes células de defesa do organismo, também tenham papel na imunidade contra a Covid-19. Essa pode ser uma boa notícia, mas ainda são necessários mais estudos para compreendermos todos os mecanismos envolvidos nessa proteção.

Sem vacina ou tratamento específico para a doença e sem sabermos como se dá a imunidade contra o novo coronavírus e quanto tempo ela dura não podemos contar com a imunidade coletiva, ao menos por enquanto.

 

Brasil

 

Dourado enfatiza, também, que mesmo que seja necessária uma porcentagem menor de infectados para obtermos a imunidade coletiva, ainda não sabemos se há alguma população do mundo que tenha atingido esse número, já que a forma atual para estimar o número de imunizados (testes sorológicos) detecta apenas a imunidade por anticorpos.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos calcula que a taxa de letalidade da Covid-19 seja de cerca de 0,5% a 1%, dependendo de fatores como acesso à saúde de qualidade e idade da população.

Vamos supor que de fato sejam precisos 40% de infectados para termos a imunidade coletiva. O Brasil tem 210 milhões de habitantes, portanto estaríamos contando com 84 milhões de infectados. Seguindo a taxa de letalidade de 0,5%, considerada otimista por muitos pesquisadores, teríamos 420 mil mortos.

Além disso, para se atingir a imunidade coletiva não há um número fixo, ela depende da taxa de transmissão do vírus, que varia de acordo com nossas interações e comportamentos. Em cidades grandes, em que há aglomerações frequentes, essa taxa tende a ser mais alta do que em locais com baixa circulação de pessoas, por exemplo.

Da mesma forma, a imunidade coletiva pode chegar antes, se a taxa de transmissão diminuir, ou mais tarde, caso ela aumente. Se deixarmos o vírus circular livremente, sem adotar as medidas de prevenção, demoraremos mais tempo para vencer a pandemia e teremos muito mais óbitos.

Lembremos, ainda, que a Covid-19 é evitável, e que já sabemos como controlá-la até que a ciência descubra uma vacina. A ideia de que quase toda a população irá fatalmente contrair o vírus, independentemente do que façamos, é temerária no caso de uma doença com essa taxa de letalidade.

Não podemos considerar como política pública de enfrentamento da pandemia uma estratégia que exija o sacrifício de milhares de pessoas. Quantas mortes são aceitáveis para que possamos circular sem restrições? Cem mil? Quinhentas mil? Em um país que preze pela vida de seus cidadão, nenhuma.

 

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